Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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existencialidade

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

Existenzialität

A presença [Dasein  ] sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades a própria presença [Dasein] as escolheu, mergulhou nelas ou ali simplesmente cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada presença [Dasein] em si mesma. A questão da existência só poderá ser esclarecida sempre pelo próprio existir. A compreensão de si mesma que assim se perfaz, nós a chamamos de compreensão existenciária . A questão da existência é um "assunto" ôntico da presença [Dasein]. Para isso não é necessária a transparência teórica da estrutura ontológica da existência. A questão acerca dessa estrutura pretende desdobrar e discutir o que constitui [NH: em todo caso, de modo algum uma filosofia existencial] a existência. Chamamos de EXISTENCIALIDADE o conjunto dessas estruturas. A análise da EXISTENCIALIDADE [48] não possui o caráter de uma compreensão existenciária e sim de uma compreensão existencial . Em sua possibilidade e necessidade, a tarefa de uma analítica existencial da presença [Dasein] já se acha prelineada na constituição ôntica da presença [Dasein]. STMSCC: §4

À medida, porém, que a existência determina a presença [Dasein], a analítica ontológica desse ente sempre necessita de uma visualização prévia da EXISTENCIALIDADE. Entendemos a EXISTENCIALIDADE como a constituição de ser de um ente que existe. Na ideia dessa constituição de ser já se encontra, pois, a ideia de ser em geral. Desse modo, a possibilidade de se realizar uma analítica da presença [Dasein] sempre depende de uma elaboração prévia da questão sobre o sentido de ser em geral. STMSCC: §4

A analítica existencial, por sua vez, possui, em última instância, raízes existenciárias, isto é, ônticas. Só existe a possibilidade de uma abertura da EXISTENCIALIDADE da existência, e com isso a possibilidade de se captar qualquer problemática ontológica suficientemente fundamentada, caso se assuma existenciariamente o próprio questionamento da investigação filosófica como uma possibilidade de ser da presença [Dasein], sempre existente. Assim esclarece-se também o primado ôntico da questão do ser. STMSCC: §4

Por outro lado, se a presença [Dasein] tiver apreendido sua possibilidade de não só tornar transparente para si mesma sua existência, mas também de questionar o sentido da EXISTENCIALIDADE em si mesma, isto é, de investigar preliminarmente o sentido de ser em geral e, nessa investigação, alertar-se para a historicidade essencial da presença [Dasein], então será inevitável perceber que a questão do ser, apontada em sua necessidade ôntico-ontológica, caracteriza-se em si mesma [58] pela historicidade. É, portanto a partir do sentido de ser mais próprio que caracteriza o próprio questionar como questionamento histórico que a elaboração da questão do ser deve encontrar a orientação para indagar acerca de sua própria história, isto é, de determinar-se por fatos históricos. Pois, somente apropriando-se positivamente do passado é que ela pode entrar na posse integral das possibilidades mais próprias de seu questionamento. Segundo seu modo próprio de realização, a saber, a explicação preliminar da presença [Dasein] em sua temporalidade e historicidade, a questão sobre o sentido do ser é levada, a partir de si mesma, a se compreender como questão referente a fatos históricos . STMSCC: §6

Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes – é ontologia. Ao esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia fundamental, que possui como tema a presença [Dasein], isto é, o ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da questão sobre o sentido de ser em geral [NH: ser – de modo algum um gênero; o ser não é para o ente em sua generalidade; o "em geral" = katholou   = no todo de: ser dos entes; sentido da diferença]. Da própria investigação resulta que o sentido metodológico a da descrição fenomenológica é interpretação. O logos   da fenomenologia da presença [Dasein] possui o caráter de hermeneuein. Por meio deste hermeneuein anunciam-se o sentido próprio de ser e as estruturas fundamentais de ser que pertencem à presença [Dasein] como compreensão de ser. Fenomenologia da presença [Dasein] é hermenêutica no sentido originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar. Desvendando-se o sentido de ser e as estruturas fundamentais da presença [Dasein] em geral, abre-se o horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein]. A hermenêutica da presença [Dasein] torna-se também uma "hermenêutica" no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. E, por fim, visto que a presença [Dasein], enquanto ente na possibilidade da existência possui um primado [77] ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica da presença [Dasein] como interpretação ontológica de si mesma adquire um terceiro sentido específico – embora primário do ponto de vista filosófico –, o sentido de uma analítica da EXISTENCIALIDADE da existência. Trata-se de uma hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da presença [Dasein] como condição ôntica de possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada na hermenêutica da presença [Dasein], a metodologia das ciências históricas do espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido derivado. STMSCC: §7

A presença [Dasein] se determina como ente sempre a partir de uma possibilidade que ela é e, de algum modo, isso também significa que ela se compreende em seu ser. Este é o sentido formal   da constituição existencial da presença [Dasein]. Nele, porém, encontra-se a indicação de que, para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser [NH: melhor: de sua compreensão do ser] deve ser desenvolvida a partir da EXISTENCIALIDADE de sua existência. Isso porém não quer dizer construir a presença [Dasein] a partir de uma determinada ideia possível de existência. Ao contrário, no ponto de partida da análise, não se pode interpretar a presença [Dasein] pela diferença de um modo determinado de existir. Deve-se, ao invés, descobri-la pelo modo indeterminado em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se dá. Esta indiferença da cotidianidade da presença [Dasein] não é um nada negativo, mas um caráter fenomenal positivo deste ente. É a partir deste modo de ser e com vistas a este modo de ser que todo e qualquer existir é assim como é. Denominamos esta indiferença cotidiana da presença [Dasein] de medianidade. STMSCC: §9

Não se deve, porém, tomar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como um simples "aspecto". Pois a estrutura da EXISTENCIALIDADE está incluída a priori   na cotidianidade e até mesmo em seu modo impróprio. De certa forma, nele está igualmente em jogo o ser da presença [Dasein], com o qual ela se comporta e relaciona no modo da cotidianidade mediana, mesmo que seja apenas fugindo e se esquecendo dele. STMSCC: §9

Todas as explicações resultantes da analítica da presença [Dasein] são conquistadas a partir de sua estrutura existencial. Denominamos os caracteres ontológicos da presença [Dasein] de existenciais porque eles se determinam a partir da EXISTENCIALIDADE. Estes devem ser nitidamente diferenciados das determinações ontológicas dos entes que não têm o modo de ser da presença [Dasein], os quais chamamos de categorias . Esta expressão é tomada aqui em seu significado ontológico primário. A antiga ontologia retirava dos entes, que vêm ao encontro dentro do mundo, a base exemplar de sua interpretação do ser. Considerava a via de acesso ao ser o noein   e o logos. No logos, o ente vem ao encontro. Mas o ser deste ente só pode ser apreendido num logos (deixar e fazer ver) privilegiado, de tal maneira que este ser se torne compreensível antecipadamente como aquilo que ele é e já se dá sempre em todos os entes. kategoreisthai é dizer previamente o ser em toda discussão (logos) sobre o ente. A palavra kategoreisthai significa: acusar publicamente, dizer na cara de alguém, diante de todos. Numa perspectiva ontológica, a palavra significa: dizer na cara dos entes o que, como ente, cada um deles é, ou seja, deixar e fazer todos verem o ente em seu ser. O que se vê e se torna visível neste deixar ver são as kategoriai. Elas abarcam as determinações a priori dos entes ditos e discutidos no logos de várias [88] maneiras. Existenciais e categorias são as duas possibilidades fundamentais de caracteres ontológicos. O ente, que lhes corresponde, impõe, cada vez, um modo diferente de se interrogar primariamente: o ente é um quem (existência) ou um que (algo simplesmente dado no sentido mais amplo). Somente depois de se esclarecer o horizonte da questão do ser é que se poderá tratar da conexão entre esses dois modos de caracteres ontológicos. STMSCC: §9

Numa fala ôntica, usamos muitas vezes a expressão "compreender alguma coisa" no sentido de "estar a cavaleiro de…", "estar por cima de…", "poder alguma coisa". O que se pode no compreender, assumido como existencial, não é uma coisa, mas o ser como existir. Pois no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença [Dasein] enquanto poder-ser. A presença [Dasein] não é algo simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela é possibilidade de ser. Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade. A possibilidade essencial da presença [Dasein] diz respeito aos modos caracterizados de ocupação com o "mundo", de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma. A possibilidade de ser, que a presença [Dasein] existencialmente sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode "se passar". Como categoria modal do ser simplesmente dado, [203] a possibilidade designa o que ainda não é real e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior a realidade e a necessidade. Como existencial, a possibilidade é, ao contrario, a determinação ontológica mais originária e mais positiva da presença [Dasein]; assim como a EXISTENCIALIDADE, numa primeira aproximação, ela só pode ser trabalhada como problema. O solo fenomenal que permite a sua visão oferece o compreender como o poder-ser capaz de propiciar aberturas. STMSCC: §31

A fala é constitutiva da existência da presença [Dasein], uma vez que perfaz a constituição existencial de sua abertura. A escuta e o silêncio pertencem à linguagem falada como possibilidades intrínsecas. Somente nestes fenômenos é que se torna inteiramente nítida a função constitutiva da fala para a EXISTENCIALIDADE da existência. De início, trata-se de elaborar a estrutura da fala como tal. STMSCC: §34

Contudo, nessa demonstração da decadência não se evidencia um fenômeno que fala diretamente contra a determinação pela qual se indicou e caracterizou a ideia formal de existência? Será que a presença [Dasein] pode ser compreendida como no ente em cujo ser está em jogo o poder-ser, se justamente em sua cotidianidade a presença [Dasein] se perdeu a si mesma e, na decadência, "vive" fora de si mesma? A decadência no mundo só constituirá, porém, uma "prova" fenomenal contra a EXISTENCIALIDADE da presença [Dasein], caso se admita a presença [Dasein] como um eu-sujeito isolado, como um si-mesmo pontual, do qual ela parte e se move. Nesse caso, o mundo seria um objeto. A decadência no mundo sofreria assim uma transformação em sua interpretação ontológica, tornando-se algo simplesmente dado nos moldes de um ente intramundano. Se, no entanto, mantivermos o ser da presença [Dasein] na constituição de ser-no-mundo, revelar-se-á que enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a favor da EXISTENCIALIDADE da presença [Dasein]. Na decadência, trata-se apenas de poder-ser-no-mundo, embora no modo [244] da impropriedade. A presença [Dasein] só pode decair porque nela está em jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade. STMSCC: §38

A presença [Dasein] existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de EXISTENCIALIDADE e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença [Dasein], em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente [246] que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está à mão quanto o ser-com os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao "mundo" e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio. STMSCC: §39

A fim de se apreender ontologicamente a totalidade do todo estrutural, deve-se questionar, em primeiro lugar, se o fenômeno da angústia e o que nela se abre podem propiciar fenomenalmente, de maneira igualmente originária, o todo da presença [Dasein], de modo a satisfazer com esses dados a visão indagadora da totalidade. Todo o seu acervo pode ser registrado através de uma enumeração formal: enquanto disposição, o angustiar-se é um modo de ser-no-mundo; a angústia se angustia com o ser-no-mundo lançado; a angústia se angustia por poder ser-no-mundo. Em sua completude, o fenômeno da angústia mostra, portanto, a presença [Dasein] como ser-no-mundo que existe faticamente. Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são EXISTENCIALIDADE, facticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas determinações ontológicas da presença [Dasein] é que se poderá apreender ontologicamente o seu ser como tal. Como se deve caracterizar essa unidade em si mesma? STMSCC: §41

Porque, em sua essência, o ser-no-mundo é cura, pode-se compreender, nas análises precedentes, o ser junto ao manual como ocupação e o ser como co-presença dos outros nos encontros dentro do mundo como preocupação. O ser-junto a é ocupação porque, enquanto modo de ser-em, determina-se por sua estrutura fundamental, que é a cura. A cura caracteriza não somente a EXISTENCIALIDADE, separada da facticidade e decadência, como também abrange a unidade dessas determinações ontológicas. A cura não indica, portanto, primordial ou exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo. A expressão "cura de si mesmo", de acordo com a analogia   de ocupação e preocupação, seria uma tautologia. A cura não pode significar uma atitude especial para consigo mesma porque essa atitude já se caracteriza ontologicamente como anteceder-a-si-mesma; nessa determinação, porém, já se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto a. STMSCC: §41

A dependência caracterizada, não dos entes, mas do ser em relação à compreensão de ser, isto é, a dependência da realidade e não do real em relação à cura, assegura que a analítica da presença [Dasein] possa prosseguir sem resvalar numa interpretação não crítica que, guiada pela ideia de realidade, sempre de novo tenta se impor. Somente a orientação pela EXISTENCIALIDADE, interpretada ontologicamente de modo positivo, pode garantir que, no decorrer da análise da "consciência" (Bewusstsein  ) e da "vida", não se tome por base nenhum sentido indiferente de realidade. STMSCC: §43

Que não se possa conceber o ente, dotado do modo de ser da presença [Dasein], a partir de realidade e substancialidade, isso exprimimos com a seguinte tese: a substância do homem é a existência. A interpretação da EXISTENCIALIDADE como cura e a sua delimitação frente à realidade não significam, porém, o fim da analítica existencial. Ao contrário, permitem apenas que os imbricamentos problemáticos com a questão do ser e seus possíveis modos, assim como o sentido de tais modificações, possam emergir de maneira ainda mais aguda: o ente como ente só é acessível se uma compreensão de ser se dá; a compreensão de ser como ente só é possível se o ente possui o modo de ser da presença [Dasein]. STMSCC: §43

Como é a visão prévia que, até aqui, orientou o procedimento ontológico? Determinamos a ideia de existência como o poder-ser que compreende, e onde está em jogo seu próprio ser. Sendo porém sempre meu, o poder-ser é livre para a propriedade e a impropriedade ou ainda para um modo de indiferença. Tomando como ponto de partida a cotidianidade mediana, a interpretação limitou-se à análise da existência indiferente e imprópria. Na verdade, por essa via, foi possível e necessário alcançar uma determinação concreta da EXISTENCIALIDADE da existência. Entretanto, a caracterização ontológica da constituição existencial ainda guardou uma falta essencial. Existência significa poder-ser, mas também um poder-ser próprio. Enquanto não se incorporar a estrutura existencial do poder-ser próprio à ideia de existência, a visão prévia, orientadora de uma interpretação existencial, ressentir-se-á de originariedade. STMSCC: §45

O fundamento ontológico originário da EXISTENCIALIDADE da presença [Dasein] é a temporalidade. A totalidade das estruturas do ser da presença [Dasein] articuladas na cura só se tornará existencialmente compreensível a partir da temporalidade. A interpretação do sentido ontológico da presença [Dasein], contudo, não pode parar aí. A análise existencial e temporal   desse ente necessita de confirmação concreta. As estruturas ontológicas da presença [Dasein], anteriormente conquistadas, devem ser, retroativamente, liberadas em seu sentido temporal. A cotidianidade desvela-se como modo da temporalidade. E, mediante essa retomada da análise preparatória dos fundamentos da presença [Dasein], o próprio fenômeno da temporalidade tornar-se-á mais transparente. Ela possibilitará compreender por que a presença [Dasein], no fundo de seu ser, é e pode ser histórica e, enquanto histórica, pode construir uma historiografia. STMSCC: §45

Embora jamais se descaracterize, quem apela também não oferece a menor possibilidade de tornar o apelo familiar para uma compreensão da presença [Dasein] orientada "mundanamente". Quem apela o apelo – isso pertence à sua caracterização fenomenal – mantém afastada de si toda possibilidade de tornar-se conhecido. É contra o seu modo de ser deixar-se atrair pela observação e discussão. A indeterminação e impossibilidade de determinação próprias de quem apela não é um nada negativo, mas um traço positivo. Ele anuncia que quem apela só se empenha em fazer apelo…, que ele só escuta assim e, por fim, que ele não aceita tagarelices a seu respeito. Mas então o fenômeno não exigiría que se abandonasse a questão de quem é que apela? Sim, assim seria quando se escuta existenciaria-mente o fato do apelo da consciência. Não, porém, para a análise existencial da facticidade do apelo e da EXISTENCIALIDADE da escuta. STMSCC: §57

É na EXISTENCIALIDADE da presença [Dasein], como um poder-ser no modo da preocupação em ocupações, que se prelineia, ontologicamente, o para quê da decisão. Todavia, enquanto cura, a presença [Dasein] se determina por facticidade e decadência. Aberta em seu "pre [das Da  ]", ela se mantém, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. "Propriamente" isso vale justamente para a decisão enquanto verdade própria. Ela se apropria propriamente da não-verdade. A presença [Dasein] já está e, talvez sempre esteja, na indecisão. Esse termo designa apenas o fenômeno já interpretado como abandono à interpretação predominante do impessoal. A presença [Dasein] é "vivida" como o impessoal-si-mesmo pela ambiguidade do senso comum, característica do público em que ninguém se decide e que, no entanto, já sempre incide. A decisão significa deixar-se receber o apelo a partir da perdição no impessoal. A indecisão do impessoal permanece também predominante, embora não seja capaz de alcançar a existência decidida. Enquanto conceito inverso à decisão em sua [380] compreensão existencial, a indecisão não significa uma qualidade ôntica e psíquica, no sentido de sobrecarga de repressões. O decisivo também continua referido ao impessoal e a seu mundo. A possibilidade disto ser compreendido depende do que se abre na decisão, já que só a decisão propicia à presença [Dasein] a transparência própria. Na decisão está em jogo o poder-ser mais próprio da presença [Dasein] que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente determinadas. O decisivo não se retira da "realidade" mas descobre o faticamente possível, a tal ponto que o apreende como o poder-ser mais próprio, possível no impessoal. A determinação existencial da presença [Dasein] decidida a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do fenômeno existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. STMSCC: §60

Com a decisão antecipadora, a presença [Dasein] tornou-se fenomenalmente visível no tocante à sua possível propriedade e totalidade. A situação hermenêutica, que até aqui havia permanecido insuficiente para a interpretação do sentido ontológico da cura, conseguiu alcançar a originariedade exigida. Originariamente, ou seja, no tocante a seu poder-ser todo em sentido próprio, a presença [Dasein] já se acha na posição prévia; mediante o esclarecimento do poder-ser mais próprio, ganhou determinação a visão prévia orientadora, isto é, a ideia de existência; com a elaboração concreta da estrutura ontológica da presença [Dasein], torna-se de tal modo clara a sua especificidade ontológica frente a todo e qualquer ser simplesmente dado que a concepção prévia da EXISTENCIALIDADE da presença [Dasein] adquire articulação suficiente para orientar, com segurança, a elaboração conceituai dos existenciais. STMSCC: §63

Mas ainda assim de onde se deve retirar o que constitui "propriamente" a existência da presença [Dasein]? Sem uma compreensão existenciária, [395] toda análise da EXISTENCIALIDADE permanece sem solidez. Será que a interpretação da propriedade e totalidade da presença [Dasein] não tem por base uma concepção ôntica da existência que, não obstante possível, não precisa, obrigatoriamente, impor-se a toda e qualquer concepção de existência? A interpretação existencial nunca pretenderá exercer poder sobre as possibilidades e obrigações existenciárias. Mas não deverá ela justificar a si mesma no que tange às possibilidades existenciárias com as quais ela oferece um solo ôntico para a interpretação ontológica? Se, de modo essencial, o ser da presença [Dasein] é poder-ser e ser-livre para as suas possibilidades mais próprias, e se ele só existe na liberdade e não-liberdade para estas possibilidades, poderá então a interpretação ontológica basear-se em outras possibilidades senão as ônticas (modos de poder-ser) e projetá-las sobre a sua possibilidade ontológica? E se, na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se interpreta a partir da perdição no "mundo" das ocupações? Nesse caso, a determinação das possibilidades ôntico-existenciárias, conquistada em contracorrente à perdição, e a análise existencial que nelas se funda não constituiriam o modo de abertura adequado a esse ente? A violência do projeto não se tornaria, assim, cada vez, uma liberação do teor fenomenal não distorcido da presença [Dasein]? STMSCC: §63

Isso deve ser suficiente para o esclarecimento do sentido existencial da situação hermenêutica de uma analítica originária da presença [Dasein]. Ao expor a decisão antecipadora, a presença [Dasein] colocou-se na posição prévia, no que diz respeito à sua totalidade própria. A propriedade do poder-ser-si-mesma garante, para a visão prévia, a EXISTENCIALIDADE originária que, por sua vez, assegura uma conceitualização existencial adequada. STMSCC: §63

A unidade dos momentos constitutivos da cura, EXISTENCIALIDADE [NH: existência: 1) para todo o ser da presença [Dasein]; 2) somente para o "compreender"], facticidade e decadência, possibilitou uma primeira delimitação ontológica da totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. A estrutura da cura chegou à seguinte fórmula existencial: anteceder-a-si-mesmo-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (um ente intramundano que vem ao encontro). Embora articulada, a totalidade da estrutura da cura não resulta de um ajuntamento. Tivemos de avaliar esse resultado ontológico quanto à possibilidade de satisfazer as exigências de uma interpretação originária da presença [Dasein]. Da reflexão resultou que não se tematizou nem toda a presença [Dasein] e nem o seu poder-ser próprio. A tentativa de apreender fenomenalmente toda a presença [Dasein] pareceu fracassar justamente na estrutura da cura. O anteceder-a-si-mesmo apresentou-se como um ainda-não. Para uma consideração genuinamente existencial, o anteceder-a-si-mesmo desvelou-se como o que está pendente, mas no sentido de ser-para-o-fim que, no fundo de seu ser, toda presença [Dasein] é. Também esclarecemos que, no apelo da consciência, a cura faz apelo à presença [Dasein] para o seu poder-ser mais próprio. Entendida originariamente, o compreender do apelo revelou-se como decisão antecipadora. Ele abriga em si um poder-ser todo da presença [Dasein] em sentido próprio. A estrutura da cura não fala contra um possível ser-todo mas é a condição de possibilidade desse poder-ser existenciário. No encaminhamento da análise, tornou-se claro que os fenômenos existenciais de morte, consciência e dívida estão ancorados no fenômeno da cura. A articulação da totalidade do todo estrutural é ainda mais rica e, por isso, torna também mais urgente a questão existencial da unidade dessa totalidade. STMSCC: §64

O esclarecimento da EXISTENCIALIDADE do si-mesmo tem como ponto de partida "natural" a auto-interpretação cotidiana da presença [Dasein] que, ao dizer-eu, pronuncia-se a respeito de "si-mesma". Isso não implica necessariamente uma verbalização. Dizendo "eu", esse a ente quer dizer si-mesmo [NH: esclarecer melhor: dizer-eu e ser-si-mesmo]. Considera-se o conteúdo desta expressão absolutamente simples. Cada vez, ele significa apenas eu e nada mais. Sendo simples, o "eu" também não é uma determinação de outras coisas. Não é, em si-mesmo, um predicado mas o "sujeito" absoluto. Aquilo que se pronuncia e endereça no dizer-eu é enfrentado como mantendo-se sempre o mesmo. Os caracteres de "simplicidade", "substancialidade" e "personalidade" que Kant  , por exemplo, colocou à base de sua doutrina "Dos paralogismos da Razão Pura" brotam de uma autêntica experiência pré-fenomenológica. A questão é se o que é experimentado onticamente pode ser ontologicamente interpretado através das chamadas "categorias". STMSCC: §64

Sem dúvida, a interpretação ontológica do "eu" não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, "sendo-no-mundo". O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. "Eu" significa o ente em que está em jogo o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o "eu" pronuncia-se a cura na fala "fugaz" do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu poder-ser próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um "sujeito" mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do poder-ser próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no poder-ser si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença [Dasein] como cura. A partir dela é que se esclarece a consistência do si-mesmo enquanto pretensa permanência [406] do sujeito. Mas o fenômeno do poder-ser próprio abre também uma visão para a consistência do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A consistência do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da consistência do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a EXISTENCIALIDADE do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSCC: §64

A cura não precisa fundar-se num si-mesmo mas, como constitutivo da cura, a EXISTENCIALIDADE propicia a constituição ontológica da autoconsistência da presença [Dasein]. Em plena correspondência com o conteúdo estrutural da cura, pertence-lhe, também, o estar faticamente em decadência na consistência do que não é si-mesmo. Concebida plenamente, a estrutura da cura inclui o fenômeno do si-mesmo. O seu esclarecimento cumpre-se na interpretação do sentido da cura que, como tal, foi determinado enquanto totalidade ontológica da presença [Dasein]. STMSCC: §64

O anteceder-a-si-mesma funda-se no porvir. O já-ser-em… anuncia em si o vigor de ter sido. O ser-junto-a encontra sua possibilidade na atualização. O que foi dito não permite, de modo algum, apreender o "ante" de "anteceder" (Vor im Vorweg) e o "já" de "já-ser-em" a partir da compreensão vulgar de tempo. O "ante" (Vor) não significa o "antes" no sentido de "agora-ainda-não, mas depois"; da mesma forma, o "já" não significa um "agora-não-mais, mas antes". Se estas expressões "ante" (Vor) e "já" possuíssem este significado temporal, que aliás também podem possuir, então com temporalidade da cura estar-se-ia dizendo que cura é alguma coisa que se dá "antes" e "depois", "ainda não" e "não mais". Nesse caso, a cura seria concebida como um ente que ocorre e transcorre "no tempo". O ser de um ente com caráter de presença [Dasein] tornar-se-ia, portanto, algo simplesmente dado. Se isso é impossível, então o significado temporal das expressões mencionadas deve ser outro. "Ante" (Vor) e "anteceder" (vorweg) indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de maneira que possa dar-se um ente em que está em jogo seu poder-ser. O projetar-se "em virtude de si-mesmo", fundado no porvir, é um caráter essencial da EXISTENCIALIDADE. O seu sentido primário é o porvir. STMSCC: §65

Do mesmo modo, o "já" (Schon) significa o sentido ontológico, existencial e temporal de um ente que, em sendo, já é sempre lançado. Somente porque a cura se funda no vigor de ter sido é que a presença [Dasein], enquanto ente-lançado, pode existir. "Enquanto" existe faticamente, a presença [Dasein] nunca é passado mas sempre o ter sido, no sentido de "eu sou o ter sido". E ela só pode ser o ter sido, enquanto ela é. Em contraposição, chamamos de passado o ente que não é mais simplesmente dado. Por isso, a presença [Dasein], em existindo, nunca pode ser constatada como um fato simplesmente dado que surge e passa "com o tempo" e, aos poucos, torna-se passado. Ela sempre só "se encontra" como fato-lançado. Na disposição, a própria presença [Dasein] sobrevém-a-si como o ente que, ainda sendo, já foi, ou seja, é contínua e constantemente o ter sido. O sentido existencial primário da facticidade reside no vigor de ter sido. Com as expressões "ante" (Vor) e "já" (Schon), a formulação da estrutura da cura indica o sentido temporal de EXISTENCIALIDADE e facticidade. STMSCC: §65