Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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compreensão vulgar

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

No âmbito de uma discussão de princípio não se deve ficar preso apenas a teses apreendidas doxograficamente. A discussão deve orientar-se pela tendência real da problemática, mesmo que esta não ultrapasse uma COMPREENSÃO VULGAR. Resulta claro de suas Meditações (sobretudo da I e VI) que Descartes   não somente quis colocar o problema do “eu e mundo”, mas que pretendeu dar-lhe uma solução radical. As discussões anteriores visaram mostrar que a orientação fundamental pela tradição, desprovida ontologicamente de qualquer crítica positiva, impossibilitou que ele liberasse uma problemática ontológica originária da presença [Dasein  ]. Essa orientação turvou-lhe a visão do fenômeno do mundo, forçando a ontologia do “mundo” a entrar na ontologia de um ente intramundano determinado. STMSC: §21

Para se assegurar que, no último passo da interpretação da consciência, a saber, da delimitação existencial do poder-ser próprio testemunhado na consciência, se tenha acesso à COMPREENSÃO VULGAR da consciência, faz-se necessária uma comprovação explícita do nexo entre os resultados da análise ontológica e as experiências cotidianas da consciência. STMSC: §58

Se já o caráter ontológico de seu próprio ser encontra-se distante da presença [Dasein] devido ao predomínio da compreensão ontológica decadente (ser simplesmente dado), o que não dizer então dos fundamentos originários desse ser? Não é, pois, de admirar que, à primeira vista, a temporalidade não corresponda ao que é acessível à COMPREENSÃO VULGAR como “tempo”. O conceito de tempo que pertence à sua experiência vulgar bem como a problemática daí decorrente não podem, portanto, sem um exame, constituir critérios adequados para uma interpretação do tempo. A investigação deve, sobretudo, familiarizar-se, preliminarmente, com o fenômeno originário da temporalidade para, a partir dele, esclarecer a necessidade e a espécie de origem da COMPREENSÃO VULGAR do tempo e também a razão de seu predomínio. STMSC: §61

O anteceder-a-si-mesma funda-se no porvir. O já-ser-em… anuncia em si o vigor de ter sido. O ser-junto-a encontra sua possibilidade na atualização. O que foi dito não permite, de modo algum, apreender o “ante” de “anteceder” (Vor im Vorweg) e o “já” de “já-ser-em” a partir da COMPREENSÃO VULGAR de tempo. O “ante” (Vor) não significa o “antes” no sentido de “agora-ainda-não, mas depois”; da mesma forma, o “já” não significa um “agora-não-mais, mas antes”. Se estas expressões “ante” (Vor) e “já” possuíssem este significado temporal  , que aliás também podem possuir, então com temporalidade da cura estar-se-ia dizendo que cura é alguma coisa que se dá “antes” e “depois”, “ainda não” e “não mais”. Nesse caso, a cura seria concebida como um ente que ocorre e transcorre “no tempo”. O ser de um ente com caráter de presença [Dasein] tornar-se-ia, portanto, algo simplesmente dado. Se isso é impossível, então o significado temporal das expressões mencionadas deve ser outro. “Ante” (Vor) e “anteceder” (vorweg) indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de maneira que possa dar-se um ente em que está em jogo seu poder-ser. O projetar-se “em virtude de si-mesmo”, fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu sentido primário é o porvir. STMSC: §65

Porvir[Zukunft  ], vigor de ter sido e atualidade mostram os caracteres fenomenais do “para si mesma”, “de volta para”, “deixar vir ao encontro de”. Os fenômenos para…, ao…, junto a… manifestam a temporalidade como o puro e simples ekstatikon. Temporalidade é o “fora de si” em si e para si mesmo originário. Chamaremos, pois, os fenômenos caracterizados de porvir, vigor de ter sido e atualidade, de ekstases da temporalidade. Ela, sobretudo, não é um ente que só sai de dentro de si. Mas a sua essência é temporalização na unidade das ekstases. O característico do “tempo” acessível à COMPREENSÃO VULGAR consiste, entre outras coisas, justamente em que, no tempo, o caráter ekstático da temporalidade originária é nivelado a uma pura sequência de agora, sem começo nem fim. De acordo com seu sentido existencial, esse nivelamento funda-se, porém, numa determinada temporalização possível, pela qual a temporalidade temporaliza impropriamente este “tempo”. Se, portanto, o “tempo” acessível à compreensibilidade da presença [Dasein] se comprova como não originário e, além disso, como oriundo da temporalidade própria, então justifica-se, segundo a sentença a potiori fit denominatio, a designação da temporalidade agora liberada como tempo originário. STMSC: §65

A tentação de se passar por cima da finitude do porvir originário e próprio e, com isso, da temporalidade, considerando-a “a priori  ” impossível, nasce da constante imposição da COMPREENSÃO VULGAR de tempo. Se esta, com razão, só conhece um tempo infinito, isto ainda não prova que ela já compreenda este tempo e a sua “infinitude”. O que significa o tempo “prossegue e passa”? O que significa “no tempo” em geral e, de maneira específica, “no” e “do futuro”? Em que sentido “o tempo” é infinito? Estas perguntas devem ser esclarecidas para que as objeções vulgares contra a finitude do tempo originário não permaneçam infundadas. Este esclarecimento, porém, só pode realizar-se caso se alcance um questionamento adequado de finitude e in-finitude. Este, por sua vez, surge de uma visão compreensiva do fenômeno originário do tempo. O problema não pode ser, portanto: como é que o tempo infinito e “derivado”, “no qual” nasce e perece o ser simplesmente dado, torna-se temporalidade finita e originária, mas sim como o tempo im-próprio provém da temporalidade finita e própria, e como ela, sendo imprópria, temporaliza um tempo in-finito a partir do tempo finito. Somente porque o tempo originário é finito é que o tempo “derivado” pode temporalizar-se como m-finito. Na ordem da apreensão compreensiva, a finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o “tempo sem fim” para contrapô-lo à finitude. STMSC: §65

Se a própria historicidade deve esclarecer-se a partir da temporalidade e, originariamente, a partir da temporalidade própria, então na essência desta tarefa está só poder ser desenvolvida através de uma construção CH: projeto fenomenológica. A constituição ontológico-existencial da historicidade deve ser conquistada por oposição à interpretação vulgar que encobre a história da presença [Dasein]. A construção existencial da historicidade possui determinados suportes na COMPREENSÃO VULGAR da presença [Dasein] e deve ser guiada pelas estruturas existenciais até aqui obtidas. STMSC: §72

A exposição do problema existencial da historicidade numa ontologia fundamental articula-se do seguinte modo: a COMPREENSÃO VULGAR da história e o acontecer da presença [Dasein] (§73); a constituição fundamental da historicidade (§74); a historicidade da presença [Dasein] e a história do mundo (§75); a origem existencial da historiografia a partir da historicidade da presença [Dasein] (§76); o nexo da presente exposição do problema da historicidade com as pesquisas de Dilthey   e as ideias do Conde Yorck (§77). STMSC: §72

§73. A COMPREENSÃO VULGAR da história e o acontecer da presença [Dasein] STMSC: §73

Chamamos de historicidade própria da presença [Dasein] o que foi até aqui caracterizado como historicidade, de acordo com o acontecer próprio da decisão antecipadora. A partir dos fenômenos de transmissão e retomada, enraizados no porvir, tornou-se claro por que o acontecer da história em sentido próprio tem seu peso no vigor de ter sido. Todavia permanece ainda mais enigmático o modo em que esse acontecer, entendido como destino, deve constituir todo o “nexo” do nascimento até a morte da presença [Dasein]. Que esclarecimento propicia o remeter à decisão? O decisivo não será sempre apenas uma “vivência” singular na sequência de todo o contexto da vida? Será que o “nexo” do acontecer em sentido próprio consiste de uma sequência ininterrupta de decisões? Por que a questão sobre a constituição do “nexo da vida” até hoje não encontrou uma resposta satisfatória? Será que, na pressa de chegar a uma resposta, a investigação não deixou de examinar, preliminarmente, a legitimidade da questão? Do percurso seguido na analítica existencial ficou bastante claro que a ontologia da presença [Dasein] sempre cai vítima das seduções da COMPREENSÃO VULGAR de ser. Metodologicamente, esse perigo só pode ser enfrentado procurando-se a origem da questão tão “evidente” da constituição do nexo da presença [Dasein] e determinando-se o horizonte ontológico em que ela se move. STMSC: §74

Trata-se apenas de delimitar o âmbito de fenômenos que, do ponto de vista ontológico, está necessariamente implicado ao se falar de historicidade da presença [Dasein]. Em razão da transcendência do mundo, que se funda no tempo, uma história do mundo já está sempre “objetivamente” presente no acontecer do ser-no-mundo , existente, sem que seja apreendida historiograficamente. E porque a presença [Dasein] fática se afunda na decadência das ocupações, ela compreende, de imediato, sua história como história do mundo. E, ademais, porque a COMPREENSÃO VULGAR do ser compreende indiferenciadamente o “ser” como ser simplesmente dado, ela experimenta e interpreta o ser da história do mundo no sentido do que, sendo simplesmente dado, vem, torna-se vigente e desaparece. STMSC: §75

Quanto mais “naturalmente” a ocupação que se ocupa do tempo conta com o tempo, tanto menos ela se atém ao tempo pronunciado como tal, perdendo-se no instrumento ocupado que sempre tem seu tempo. Quanto mais “naturalmente”, ou seja, menos tematicamente, a ocupação determina e indica o tempo, tanto mais o ser junto àquilo de que se ocupa na atualização e decadência diz logo, quer verbalmente ou não – agora, então, outrora. Para a COMPREENSÃO VULGAR do tempo, este se mostra, portanto, como uma sequência de agora, sempre “simplesmente dados”, que, igualmente, vêm e passam. O tempo é compreendido como o um após outro, como o “fluxo” dos agora, como “correr do tempo”. O que implica essa interpretação do tempo do mundo nas ocupações? STMSC: §81

Pode-se obter a resposta, retornando-se à estrutura plena e essencial do tempo do mundo e comparando-a com o que a COMPREENSÃO VULGAR do tempo conhece. Expôs-se a possibilidade de datação como primeiro momento essencial do tempo ocupado. Ela se funda na constituição ekstática da temporalidade. Em sua essência, o “agora” é agora, em que… Compreendido na ocupação, embora não apreendido como tal, o agora que se pode datar é sempre apropriado ou inapropriado. A significância pertence à estrutura do agora. Por isso chamamos o tempo ocupado de tempo do mundo. Na interpretação vulgar do tempo como sequência de agora, falta tanto a possibilidade de datação como a significância. A caracterização do tempo como mera série de um após outro não permite que essas duas estruturas “venham à luz”. A interpretação vulgar do tempo as encobre. A constituição ekstática e horizontal da temporalidade, na qual se fundam a possibilidade de datação e a significância do agora, é nivelada por esse encobrimento. Os agora são, por assim dizer, enquadrados nessas remissões e se enfileiram simplesmente um ao outro para constituir a série de um após outro. STMSC: §81

Onde, porém, se funda esse nivelamento do tempo do mundo e encobrimento da temporalidade? No próprio ser da presença [Dasein] que, à guisa de preparação, interpretamos como cura. Lançada e decadente, a presença [Dasein] está, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, perdida nas ocupações. Nessa perdição anuncia-se, contudo, a fuga encobridora da presença [Dasein] de sua existência própria, já caracterizada como decisão antecipadora. Na fuga das ocupações reside a fuga da morte, ou seja, o desviar o olhar do fim do ser-no-mundo. Esse desviar o olhar de… é, em si mesmo, um modo de ser para o fim que, ekstaticamente, é porvir. Enquanto um desviar o olhar da finitude, a temporalidade imprópria da presença [Dasein] decadente e cotidiana deve desconhecer o porvir próprio e, assim, também a temporalidade em geral. É justamente quando o impessoal dirige a COMPREENSÃO VULGAR da presença [Dasein] que se consolida a “representação” da “infinitude” do tempo público, que se esquece de si. O impessoal nunca morre porque, sendo a morte sempre minha e apenas compreendida existenciariamente em sentido próprio na decisão antecipadora, o impessoal nunca pode morrer. Nunca morrendo e compreendendo equivocadamente o ser-para-o-fim, o impessoal dá uma interpretação característica à fuga da morte. Até o fim, ele “sempre ainda tem tempo”. Aqui se anuncia um ter tempo, no sentido de poder-perder: “agora ainda isso, então isso, e só mais isso e então…” O que, aqui, se compreende não é a finitude do tempo. Ao contrário, a ocupação empenha-se em agarrar o máximo possível do tempo que ainda vem e “continua passando”. Publicamente, o tempo é algo que cada um sempre toma e pode tomar. A sequência nivelada dos agora permanece inteiramente desconhecida, no que respeita à sua proveniência da temporalidade da presença [Dasein] singular, na convivência cotidiana. Como isso poderia afetar “o tempo”, ao menos em seu curso, se já não existe um homem simplesmente dado “no tempo”? O tempo continua a passar da mesma forma que ele já “era” quando um homem “entrou para a vida”. Impessoalmente, apenas se conhece o tempo público que nivela e que pertence a todo mundo, isto é, a ninguém. STMSC: §81

Em contrapartida, no horizonte da COMPREENSÃO VULGAR do tempo, a temporalidade permanece inacessível. O tempo-agora, no entanto, não apenas deve orientar-se, primordialmente, pela temporalidade, no que respeita à ordenação possível, mas ele mesmo só se temporaliza na temporalidade imprópria da presença [Dasein]. É por isso que, com referência à derivação do tempo-agora a partir da temporalidade, justifica-se referir-se a esse tempo como tempo originário. STMSC: §81

A temporalidade ekstática e horizontal temporaliza-se, primordialmente, a partir do porvir. A COMPREENSÃO VULGAR do tempo, ao contrário, vê o fenômeno fundamental do tempo no agora e no puro agora que, moldado em toda sua estrutura, se costuma chamar de “presente”. Daí se pode depreender que, em princípio, deve ficar fora de qualquer possibilidade esclarecer e, sobretudo, derivar desse agora o fenômeno ekstático e horizontal do instante que pertence à temporalidade própria. De modo correspondente, não se confundem o porvir ekstático, o “então” datável da significância e o conceito vulgar de futuro, no sentido de simples agora que ainda não advieram e que estão em advento. Tampouco coincidem o vigor de ter sido, ekstaticamente compreendido, o “outrora” datável da significância e o conceito de passado, no sentido dos puros agora passados. O agora já não fica grávido do agora-ainda-não. Ao contrário, a atualidade surge do porvir na unidade ekstática e originária de temporalização da temporalidade. STMSC: §81

A história que, em sua essência, é história do espírito, transcorre “no tempo”. Portanto, “o desenvolvimento da história cai no tempo”. Hegel  , todavia, não se contenta em expor a intratemporalidade do espírito como um fato, mas ele busca a possibilidade de compreender que o espírito cai no tempo, o qual é “o sensível, o totalmente abstrato”. O tempo também deve, por assim dizer, poder acolher o espírito. E este, por sua vez, deve ser aparentado com o tempo e com a sua essência. Duas coisas devem ser, pois, discutidas: 1. Como Hegel delimita a essência do tempo? 2. O que pertence à essência do espírito para que ele possa “cair no tempo”? A resposta a essas duas questões serve simplesmente para um maior esclarecimento desta interpretação da presença [Dasein] como temporalidade. Ela não pretende tratar, mesmo de forma relativamente completa, os problemas que necessariamente se apresentam em Hegel e tampouco almeja “criticar” Hegel. Ressaltar a ideia já exposta da temporalidade por oposição ao conceito hegeliano do tempo justifica-se, sobretudo, porque o conceito hegeliano de tempo expõe a elaboração conceituai mais radical e bem pouco considerada da COMPREENSÃO VULGAR de tempo. STMSC: §82

O “lugar sistemático” em que se desenvolve uma interpretação filosófica do tempo pode servir como critério para a concepção fundamental de tempo que a orienta. A primeira interpretação legada pela tradição e que trata amplamente da COMPREENSÃO VULGAR do tempo encontra-se na Física de Aristóteles  , ou seja, no contexto de uma ontologia da natureza. “Tempo” relaciona-se com “lugar” e “movimento”. Fiel à tradição, a análise hegeliana do tempo tem seu lugar na segunda parte da Enciclopédia das ciências filosóficas, intitulada: Filosofia da Natureza. A primeira seção trata da mecânica. O seu primeiro capítulo é dedicado à discussão de “espaço e tempo”. Espaço e tempo são o “abstrato que está um fora do outro”. STMSC: §82

Não é necessária uma discussão mais detalhada para se esclarecer que, com a sua interpretação, Hegel se move totalmente na direção da COMPREENSÃO VULGAR de tempo. A caracterização hegeliana do tempo a partir do agora pressupõe que o agora permaneça encoberto e nivelado em toda a sua estrutura, a fim de poder ser intuicionado como algo simplesmente dado, embora “ideal  ”. STMSC: §82