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Wahl: A SEGUNDA TRÍADE: O POSSÍVEL E O PROJECTO — A ORIGEM, O AGORA, A SITUAÇÃO, O INSTANTE

quarta-feira 23 de março de 2022

Capítulo II da Parte II (As Categorias das Filosofias da Existência) do livro "As Filosofias da Existência", tradução portuguesa de I. Lobato e A. Torres, 1962.

Estudamos aquilo a que chamamos as três primeiras categorias filosóficas da existência: a própria ideia de existência, a ideia de ser, a ideia de transcendência.

Procuraremos estudar agora uma segunda série de categorias que se relacionam com o tempo, e teremos pois ocasião de falar primeiro do papel da ideia de tempo nas filosofias da existência. Depois passaremos às categorias temporais, considerando em primeiro lugar o possível e o projecto, em segundo lugar a ideia de origem tal como a vemos particularmente em Jaspers  , e, em terceiro lugar, três ideias que são as ideias de agora, de situação e de instante.

Falaremos primeiro da ideia de tempo em geral.

Já tínhamos visto, a propósito de Kierkegaard  , que a existência consiste essencialmente em «ir sendo»; mas, logo em seguida, somos conduzidos a opor a ideia de Kierkegaard, e, de uma maneira mais generalizada, existencial do «ir sendo», à ideia do «ir sendo» tal qual a concebe o hegelianismo; porque o tempo tal qual o concebe Hegel   é um «ir sendo» contínuo e é um «ir sendo» explicável e racional. O tempo de Kierkegaard é um «ir sendo» descontínuo, feito de crises; e é um «ir sendo» que não é explicável, que contém coisas irredutivelmente novas, produtos das nossas decisões. Para Hegel, o tempo é o «ir sendo» da Ideia. Para Kierkegaard, é o ser em «ir sendo» do próprio indivíduo. Para Hegel, o tempo leva-nos ao absoluto que se revelará no fim dos tempos e que, além disso, revelando-se no fim dos tempos, estará também presente no início dos tempos, de modo que o tempo leva-nos a um eterno que ultrapassa o tempo. Para Kierkegaard há como que um centro do tempo que é o momento paradoxal em que o eterno se fez homem, o momento da encarnação, momento que, em rigor, não pode ser pensado, que é um enigma, um mistério e um escândalo.

Disse-se de várias filosofias contemporâneas, particularmente do pragmatismo, que são temporalismos. Poder-se-ia também aplicar este nome à filosofia de Bergson  , e pode-se aplicá-lo igualmente às filosofias da existência. [Nota: Reflectindo sobre o título do trabalho de Heidegger, Sein und Zeit  , poder-se-ia pensar que para Heidegger o ser se identifica com o tempo. E sem dúvida ele pensa que para o estudo do único ser que conhecemos profundamente, o ser humano, cuja essência é a preocupação, chegamos à ideia de que a essência deste ser, graças à qual podemos talvez chegar à ideia da essência de qualquer ser, é o tempo. Contudo; ele nâo afirma que ser e tempo sejam idênticos; mas pode afirmar que o tempo é o horizonte a partir do qual podemos aperceber o ser. E, segundo o que escreveu em Holzwege  , o ser revela-se diversamente segundo as épocas do tempo.]

Mas, uma vez que falamos de tempo, devemos opor imediatamente, nalguns pontos, Kierkegaard aos seus sucessores, principalmente a Jaspers e a Heidegger. Na realidade, eles acrescentam às considerações de Kierkegaard, que encerram, de qualquer modo, o indivíduo na sua subjectividade e na relação desta subjectividade com Deus, a ideia que eles chamam Geschichtlichkeit  , isto é a historicidade profunda. Já tivemos ocasião de dizer (p. 32) que é preciso distinguir entre o que significa o termo alemão Geschichte e o que significa o termo alemão Historie. A história é simplesmente a narração da sequência dos acontecimentos (Historie), tomados por assim dizer de uma maneira plana e como que se sucedendo uns aos outros, enquanto a historicidade é o próprio princípio do tempo histórico, é o facto de que um existente está profundamente numa situação temporal  . Assim, Jaspers e Heidegger acrescentam à ideia que tinha Kier-kegaard do indivíduo a ideia da sua historicidade profunda.

Que é esta historicidade para Jaspers? É, diz ele, a unidade do ser que eu sou e da existência. È uma unidade do Daseim, e da existência. E uma unidade da necessidade e da liberdade. Eu estou, efectivamente, num certo lugar no espaço e no tempo. É o que será significado pela ideia de situação que temos de estudar; eu devo tomar sobre mim esta situação, devo assumi-la, e é isto que me dará a consciência da minha historicidade profunda.

Podemos agora passar à consideração da primeira categoria temporal, que será a do possível e do projecto e que será, por isso mesmo, também a do futuro.

Efectivamente, o momento essencial do tempo, para os filósofos, é o futuro. O indivíduo não é, em rigor: tem de ser, é uma tarefa à qual ele próprio se dá. Em Hegel havia já, sem dúvida, afirmações que se orientavam neste sentido da preeminência do futuro, mas esta afirmação toma uma outra tonalidade, uma outra acentuação em Kierkegaard e nos seus sucessores pelo próprio facto de que este futuro é o futuro do indivíduo, o futuro sentido subjectivamente.

O primeiro momento do tempo, para usar a expressão de Heidegger, o «primeiro êxtase do tempo», é o futuro [Nota: É preciso levar em conta, sem dúvida, o facto de que Sartre   não está, neste ponto, de acordo com o pensamento de Heidegger. Ligando-se de preferência a Husserl  , Sartre mantém que o momento essencial do tempo é o presente, que é a partir do presente que formamos o passado e o futuro. Mas convém igualmente notar que o presente tal qual o concebe Sartre se está, constantemente esvaindo, como a fugir de si próprio, de modo que se poderia fazer a pergunta de como a partir deste termo tão instável se podem constituir os outros momentos.]. Nós estamos sempre em projecto. Falamos de «êxtase do tempo» aludindo ao que disse Heidegger, ao que ele chama o «caracter extático do tempo». O tempo nunca está encerrado em si mesmo, é uma espécie de fuga diante dele próprio; da mesma maneira que a existência está fora dela, o tempo é o facto de que cada instante está fora de si e em fuga diante dele próprio.

Ora, esta ideia de possível é essencial ao pensamento de Kierkegaard. Um dos principais reparos que fazia a Hegel é o de não deixar lugar no seu sistema para o possível realmente vivido, é o de tornar impossível o possível e de tirar o oxigênio necessário à sua vida e à sua acção. Um universo em que não haja possível, pensava Kierkegaard, é um universo onde o indivíduo se asfixia. É particularmente em O Conceito de Angústia que Kierkegaard fala da ideia de possível, mostrando na angústia o aparecimento de possíveis tentadores que nos levam a um estado de aturdimento e de vertigem. Mas, se há possíveis tentadores, possíveis que nos fazem descer, há também possíveis que nos elevam, que nos libertam dos primeiros, e é essencialmente o possível religioso que torna possíveis coisas que se apresentavam impossíveis para a inteligência comum: e, aqui, deveríamos consignar uma palavra em lembrança de um filósofo que deixámos de lado, Chestov, que insiste particularmente neste aspecto da possibilidade do impossível, na sua definição da fé como sendo superior à inteligência. [Nota: Vê-se, deste modo, como é pela ideia de dualidade dos possíveis, possíveis que nos inclinam para baixo, possíveis que nos elevam, que se dá a passagem em Kierkegaard, do inautêntico para o autêntico.]

Jaspers falará sempre — já o dissemos — da existência possível, querendo significar com isso que a existência nunca é qualquer coisa de dado, mas qualquer coisa que está prestes a ser. O homem está sempre em avanço sobre si próprio, diz Heidegger. E podemos, daí, chegar facilmente ao que diz Sartre acerca do facto de que o existente está sempre em projecto. A ideia de projecto é essencial ã filosofia de Sartre e também essencial à filosofia de Heidegger. O existente faz-se sempre a si próprio, e o importante é não se estar amarrado ao próprio passado, é não nos deixarmos ancilosar em momentos do tempo, quer sejam momentos do passado, quer sejam momentos do futuro. Apegar-se a um momento determinado do seu passado, referir-se constantemente a um acontecimento anterior, ou mesmo ligar-se a um momento determinado do seu futuro, por exemplo, a uma função que se ambicionava desde a juventude, é parar o curso da duração, essencial ao «para si», é formar-se segundo um passado retraído ou um futuro retraído, que cessam de ser membros do «para si» e caem no «em si». E é aí que têm lugar as análises de Sartre sobre a má fé: estar de má fé é não ter em conta o que realmente se ê, é estabilizar o tempo e, por isso mesmo, falsificá-lo.

Podemos passar ao segundo momento, à segunda categoria, isto é, à ideia de origem.

«De uma maneira geral», disse Kierkegaard já em 1835, «todo o verdadeiro desenvolvimento é um voltar atrás que nos faz ir até às nossas origens», e ele cita como exemplo os grandes artistas que «avançam pela própria razão de voltarem atrás». Na nossa própria vida, os primeiros instantes, os começos, têm um valor eminente. Ê necessário, portanto, que cada um se conheça voltando-se para a origem, e ao mesmo tempo que se conheça voltando-se para o futuro: tais são as características do existente. E assim ele constitui a unidade do seu passado e do seu futuro num presente cheio de conteúdo.

É preciso voltar ao que é primário, ao que é primitivo, ao que é originário. Kierkegaard já nos convidava a isso e pensava que a existência deve retomar o seu lugar em face da sua própria primitividade eterna. Por outro lado, sabe-se que ele quer voltar ao que era o cristianismo na sua origem, isto é, ao pensamento de Jesus. Ê indispensável, diz Kierkegaard, eliminar todos os séculos que nos separam do Cristo e que nos afastam dele, é indispensável que nos tornemos contemporâneos do próprio Jesus, e é isto o acto de fé. Neste sentido, se se realizar este acto de fé, os discípulos de Jesus não eram mais contemporâneos de Jesus do que nós somos.

Poderíamos voltar a encontrar, em todos estes filósofos, esforços análogos para remontar às origens. Ê assim que, num domínio inteiramente diferente, Hei-degger quer remontar aos mais antigos filósofos gregos.

Jaspers diz que, em cada um dos grandes filósofos, é necessário que nos esforcemos por apreender o que é a fonte originária do seu pensamento (Usrprung). Trate-se de Descartes  , ou de Leibniz  , ou de Nietzsche  , ou de Platão  , há sempre um centro, essa intuição fundamental de que falava, por outro lado, Bergson, que é preciso reencontrar sob as superetruturas racionais, mais ou menos superficiais, do sistema. Num longo artigo sobre Descartes, Jaspers mostra que há qualquer coisa de válido no cartesianismo, mas que este qualquer coisa está viciado, falsificado, pela sistematização, pela racionalização, a que Descartes o submeteu.

Depois destes dois momentos, chegamos a este triplo termo que qualificámos de agora, de situação e de instante.

Na realidade, estas três ideias são profundamente diferentes. A ideia sobre a qual Heidegger insiste especialmente é a de que não se deve partir do presente se se quiser conceber a constituição do tempo: é preciso partir do futuro ou do passado, e o presente é apenas o lugar onde o futuro e o passado se juntam. Mas esta junção pode fazer-se de maneiras diferentes. Pode fazer-se de uma maneira superficial, e então ter-se-á os agora, a sequência dos agora que constituem o tempo inautêntico.

Seria necessário distinguir o tempo pragmático (embora Heidegger não empregue esta palavra), o tempo da vida de todos os dias, o que ele chama o tempo para, porque, cada vez que agimos, agimos tendo em vista um fim prático. Esta hora, por exemplo (o curso que deu origem a este livro efectuava-se entre as 11 horas e o meio-dia), é destinada a uma conversa sobre os filósofos da existência. A hora seguinte será consagrada à refeição. Cada uma é o tempo para, é o tempo da vida prática. Mas a partir deste tempo para a ciência cria o tempo abstracto. Ê aí que encontramos a ideia de agora. O espírito humano, a partir do tempo pragmático que é feito de blocos de duração, dos quais cada um tem o seu destino particular, gera um tempo homogêneo e infinito. Este tempo homogêneo e infinito é posterior ao tempo vulgar e deriva do tempo vulgar. E é neste tempo científico que tomam lugar os agora.

É preciso, portanto, separar completamente esta ideia do agora e a ideia, que teremos de examinar um pouco mais tarde, do instante.

Entre as duas colocaremos a ideia de situação, assim como a ideia de facticidade.

Se considerarmos devidamente a nossa reflexão sobre este elemento, seremos conduzidos ao que Heidegger chama a Geworfenheit  , isto é, o facto de sermos lançados no mundo sem que nos seja possível descobrir a razão disso. Talvez tenhamos ocasião de nos interrogarmos se esta própria concepção poderá ser compreendida independentemente de toda a pressuposição religiosa; porque é só talvez se tivermos no último plano do nosso espírito a ideia de uma divindade que nos auxilie e nos conforte que podemos ser surpreendidos e como que chocados pelo facto de que estamos aqui sem auxílio, a partir do momento em que a afirmação desta divindade é por nós abandonada. Assim, a aparência do nosso abandono viria do abandono prévio que teríamos feito de uma ideia que, para nós, não seria, finalmente, mais do que uma aparência.

Mas ponhamos de momento esta questão de lado. Devemos apenas sublinhar que somos, em toda a extensão, facticidade, de tal maneira mesmo que o elemento de liberdade que está em nós é em si mesmo caracterizado como facticidade. A nossa própria liberdade é uma facticidade.

Podemos agora voltar à ideia de situação. Si indubi-tável que toda a filosofia se preocupa em ver qual é a situação do homem no universo. Mas logo que um pensador tenha uma concepção afectiva da situação humana poderemos compará-lo aos filósofos da existência. Assim, o homem tal qual o concebe Descartes, colocado acima do puro mecanismo e abaixo da perfeição divina, não se pode dizer, em rigor, comprometido numa situação, no mesmo grau em que está o homem concebido pelos filósofos da existência. Pelo contrário, quando um pensador como Pascal   nos apresenta o homem entre dois infinitos, no silêncio e como sob o silêncio dos espaços, e só em face do seu Deus, podemos aqui ver um pensamento da situação aproximada da que estudámos.

A ideia de situação tem uma grande importância em todas as filosofias. Quando o possível toma lugar numa realidade, encontra-se numa situação. Mencionámos já o papel, pelo menos implícito, desta ideia no pensamento de Kierkegaard. O pensamento de Kierkegaard foi, mais do que qualquer outro, motivado por uma situação muito particular, visto que, como já vimos, foi em volta do problema posto a si próprio pelo noivado, pelas suas relações com Regina, que desenvolveu toda a sua filosofia. Ê, portanto, acerca da sua situação privada que medita Kierkegaard e é a partir desta situação privada que ele constitui o seu pensamento, e é a partir do seu pensamento que por sua vez se constitui toda a fiosofia da existência dos seus sucessores.

Mas não há somente situações deste gênero. Há situações filosóficas. Ê aquilo de que toma consciência, por exemplo, Jaspers quando diz: não se pode filosofar hoje da mesma maneira que se filosofava antes desses dois grandes acontecimentos que constituem Kierkegaard e Nietzsche. Portanto, o filósofo está pelo menos duplamente em situação: há uma situação privada, há uma situação filosófica.

No pensamento de Gabriel Marcel  , a ideia de situação está igualmente presente, e entra na própria concepção que ele forma da metafísica. Não só nós nunca devemos tomar os problemas fora da situação em que se apresentam, mas também o domínio metafísico é aquele em que a nossa situação própria, a situação do arguente, é ela em si posta em questão, ela própria é um problema; e é assim pela própria ideia da implicação desta situação no problema, pelo facto de o problema se sobrepor ao arguente, que podemos ver o problema transformar-se em mistério e abrir-se o domínio da metafísica.

Conhece-se o lugar que a ideia de situação ocupa no pensamento de Sartre. Segundo ele, cada um dos nossos actos pode ser interpretado de maneira diferente, conforme se interprete em função da nossa liberdade ou em função da situação. E aqui estamos nós perante problemas difíceis de resolver, porque esta situação depende em grande parte da nossa liberdade. A liberdade é indubitavelmente o termo ultimo ao qual é preciso reduzir a situação, porque a situação só existe porque a nossa liberdade se choca com tais dados empíricos; estes dados empíricos só existem em relação aos fins que nos propomos; os obstáculos só são obstáculos porque nos propomos fins, e estes fins são postos, diz Sartre, pela nossa liberdade.

Convém, finalmente, focar o facto de haver o que Jaspers chama situações-limites. Perante o mal, o combate, o sofrimento e a morte, a nossa existência é forçada até ao extremo, chega a sentir-se no seu próprio limite, só se apercebe de que existe porque há outro termo com o qual ela acaba de se chocar e perante o qual ela deve finalmente calar-se: a transcendência.

Chegamos à ideia instante, e esta ideia está, num certo sentido, no centro do pensamento de Kierkegaard. Falámos desse instante de encarnação que é o centro da história. Mas, por outro lado, é no instante que podemos romper com os hábitos do pensamento conceptual e com os hábitos sociais para comunicar com este centro da história profunda. Neste ponto, Kierkegaard baseia-se ao mesmo tempo na meditação sobre o Parméniães, de Platão, cuja terceira hipótese assenta na ideia de instante, e no Evangelho, na ideia que nós ultrapassamos o tempo na aceitação da boa nova.

E da ligação do passado e do futuro, quando tomados nas suas profundidades autênticas, que nasce o instante, da mesma maneira que do futuro e do passado inautênticos nasce o agora. Mas ele faz-nos passar para além do plano em que estão situados o futuro e o passado: o instante, diz Kierkegaard, é o encontro do tempo e da eternidade; o instante, para Heidegger, é o momento em que na decisão adoptada nos consideramos nós próprios em nós próprios e, juntando a origem e o projecto, tomamos a responsabilidade do que somos.

Poderíamos aproximar do que acabámos de dizer a teoria de Jaspers segundo a qual o que há de mais elevado na hierarquia das realidades é também o que há de mais precário, de mais frágil, e só se revela por súbitos clarões; estes clarões estriam momentaneamente a profunda noite; são eles essencialmente os portadores de valores; numa tal concepção, o valor está como na razão inversa da estabilidade.


Ver online : Jean Wahl