Sloterdijk: antropotécnica na genealogia da moral

[…] em seu papel de protagonista e médium de uma antiguidade entendida de maneira diferente, Nietzsche   se torna o descobridor de culturas ascéticas em sua extensão histórica incomensurável. Aqui, é relevante observar que a palavra áskesis (ao lado da palavra meléte, que também é o nome de uma musa) significa simplesmente "exercício" ou "treinamento" em grego antigo. No despertar de sua nova divisão da opinião   ascética, Nietzsche não apenas se depara com o significado fundamental da vida praticante para o desenvolvimento de estilos de existência ou "culturas". Ele coloca o dedo no que vê como a separação decisiva para todas as moralidades, nomeadamente nos ascetismos dos saudáveis e dos doentes, embora não demonstre nenhuma reserva quanto a apresentar a antítese com uma dureza quase caricatural. Os saudáveis – uma palavra que há muito tempo está sujeita a inúmeras desconstruções – são aqueles que, por serem saudáveis, querem crescer através de bons ascetismos; e os doentes são aqueles que, por estarem doentes, planejam se vingar com maus ascetismos.

Isso só pode ser chamado de simplificação assustadora da situação. No entanto, é preciso admitir: martelar estes argumentos traz à tona algo que deve ser reconhecido como uma das maiores descobertas da história intelectual. Nietzsche não é mais ou menos do que o Schliemann dos ascetismos. No meio dos locais de escavação, cercado pelos escombros psicopáticos de milênios e pelas ruínas de palácios mórbidos, ele estava completamente certo ao assumir a expressão triunfante de um descobridor. Hoje sabemos que ele cavou no lugar certo; o que ele descobriu, no entanto – para continuar a metáfora – não foi Troia de Homero  , mas uma camada posterior. E um grande número dos ascetismos a que ele se referia polemicamente não eram precisamente expressões de negação da vida e servidão metafísica; era mais uma questão de heroísmo disfarçado espiritual. As ocasionais interpretações errôneas de Nietzsche não podem prejudicar o valor de sua descoberta. Com sua descoberta, Nietzsche permanece fatalmente – no melhor sentido da palavra – no início de ascetologias modernas, não espiritualistas, juntamente com seus anexos fisio-psicotécnicos, com dietologias e treinamentos auto-referenciais e, portanto, todas as formas de auto-referência praticando e trabalhando na própria forma vital que reúno no termo "antropotécnica".

A importância do impulso proveniente da nova visão de Nietzsche dos fenômenos ascéticos dificilmente pode ser superestimada. Ao mudar-se para uma antiguidade "supra-epocal" que espera sob toda não antiguidade medieval e moderna e sob todo futuro, ele alcançou o nível necessário de excentricidade para lançar um olhar, como se fosse de fora, em seu próprio tempo e nos outros . Seu auto-encontro alternativo permitiu-lhe sair do presente, dando-lhe a visão necessária para abranger o continuum de civilizações avançadas, o império de três mil anos de exercícios mentais, auto-treinamento, auto-elevação e auto-abaixamento – em resumo, o universo de tensão vertical metafisicamente codificada – em uma sinopse sem precedentes.

Aqui, devemos citar especialmente as seções do trabalho crítico de moral   de Nietzsche, A Genealogia da Moral, que trata do assunto em uma dicção de clareza olímpica. Na passagem decisiva, ele discute as formas de prática dessa negação da vida ou cansaço do mundo que, segundo Nietzsche, exemplifica o círculo morfológico dos ascetismos doentes em geral.

O asceta [do tipo doente-sacerdotal] trata a vida como um caminho errado, no qual se deve andar para trás até chegar ao local onde começa; ou ele o trata como um erro que alguém pode, ou não deve, refutar pela ação: pois ele exige que ele seja seguido; ele reforça, onde pode, sua avaliação da existência. O que isto significa? Uma avaliação tão monstruosa não é um cuidado excepcional ou uma curiosidade registrada na história humana: é um dos fatos mais amplos e mais longos que existem. Lendo do ponto de vista de uma estrela distante, as letras maiúsculas de nossa vida terrena poderiam levar à conclusão de que a Terra era o planeta verdadeiramente ascético, um covil de criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que nunca se livraram de um profundo desgosto, de si mesmos, do mundo, de toda a vida, e fizeram a si mesmos tantos males quanto possível por prazer em se fazer mal – presumivelmente o seu único e só prazer.

Com esta nota, Nietzsche se apresenta como o pioneiro de uma nova ciência humana que se poderia descrever como uma ciência planetária da cultura. Seu método consiste em observar nosso corpo celestial usando ’fotografias’ de formações culturais como se fossem de uma grande altitude. Através das novas abstrações que produzem imagens, a vida dos terráqueos é buscada por padrões mais gerais – com o ascetismo surgindo como uma estrutura historicamente desenvolvida que Nietzsche legitimamente chama de um dos ’fatos mais amplos e mais extensos que existem’. Esses ’fatos’ exigem uma cartografia adequada e uma geografia e ciência básica correspondentes. Isso é tudo o que a genealogia da moral procura ser. A nova ciência das origens dos sistemas morais (e o eo ipso das formas de vida e prática moralmente governadas) é a primeira manifestação da Ascetologia Geral. Inicia a história explicativa das religiões e sistemas de ética como práticas antropotécnicas.

[…] in his role as the protagonist and medium of a differently understood antiquity, Nietzsche becomes the discoverer of ascetic cultures in their immeasurable historical extension. Here it is relevant to observe that the word áskesis (alongside the word meléte, which is also the name of a muse) simply means ‘exercise’ or ‘training’ in ancient Greek. In the wake of his new division of ascetic opinion, Nietzsche not   only stumbles upon the fundamental meaning of the practising life for the development of styles of existence or ‘cultures’. He puts his finger on what he sees as the decisive separation for all moralities, namely into the asceticisms of the healthy and those of the sick, though he does not show any reservations about presenting the antithesis with an almost caricatural harshness. The healthy – a word that has long been subjected to countless deconstructions [1] – are those who, because they are healthy, want to grow through good asceticisms; and the sick are those who, because they are sick, plot revenge with bad asceticisms.

This can only be called a hair-raising simplification of the situation  . Nonetheless, one has to admit: hammering home these arguments does bring something to light that must be acknowledged as one of the greatest discoveries of intellectual history. Nietzsche is no more or less than the Schliemann of asceticisms. In the midst of the excavation sites, surrounded by the psychopathic rubble of millennia and the ruins of morbid palaces, he was completely right to assume the triumphant expression of a discoverer. We know today that he had dug in the right place; what he dug up, however – to continue the metaphor – was not Homer’s Troy, but a later layer. And a large number of the asceticisms to which he referred polemically were precisely not expressions of life-denial and metaphysical servility; it was rather a matter of heroism in a spiritual disguise. Nietzsche’s occasional misinterpretations cannot detract from the value of his discovery. With his find, Nietzsche stands fatally – in the best sense of the word – at the start of modern, nonspiritualistic ascetologies along with their physio- and psychotechnic annexes, with dietologies and self-referential trainings, and hence all the forms of self-referential practising and working on one’s own vital form that I bring together in the term ‘anthropotechnics’.

The significance of the impulse coming from Nietzsche’s new view of ascetic phenomena can hardly be overestimated. By shifting himself to a ‘supra-epochal  ’ antiquity that waits beneath every medieval and modern non-antiquity, and under every future, he attained the necessary level of eccentricity to cast a glance, as if from without, at his own time and others. His alternative self-dating allowed him to leap out of the present, giving him the necessary eyesight to encompass the continuum of advanced civilizations, the three-thousand-year empire of mental exercises, self-trainings, self-elevations and self-lowerings – in short, the universe of metaphysically coded vertical tension – in an unprecedented synopsis.

Here we should quote especially those sections from Nietzsche’s central morality-critical work The Genealogy of Morals that deal with their subject in a diction of Olympian clarity. In the decisive passage he discusses the practice forms of that life-denial or world-weariness which, according to Nietzsche, exemplifies the morphological circle of sick asceticisms in general.

The ascetic [of the priestly-sick type] treats life as a wrong path on which one must walk backwards till one comes to the place where it starts; or he treats it as an error which one may, nay must, refute by action: for he demands that he should be followed; he enforces, where he can, his valuation of existence. What does this mean? Such a monstrous valuation is not an exceptional care, or a curiosity recorded in human history: it is one of the broadest and longest facts that exist. Reading from the vantage point of a distant star the capital letters of our earthly life would perchance lead to the conclusion that the earth was the truly ascetic planet, a den of discontented, arrogant, and repulsive creatures, who never got rid of a deep disgust of themselves, of the world, of all life, and did themselves as much hurt as possible out of pleasure in hurting – presumably their one and only pleasure. [2]

With this note, Nietzsche presents himself as the pioneer of a new human science that one could describe as a planetary science of culture. Its method consists in observing our heavenly body using ‘photographs’ of cultural formations as if from a great altitude. Through the new image-producing abstractions, the life of the earthlings is searched for more general patterns – with asceticism coming to light as a historically developed structure that Nietzsche quite legitimately calls one of ‘the broadest and longest facts that exist’. These ‘facts’ demand a suitable cartography and a corresponding geography and basic science. That is all the genealogy of morals seeks to be. The new science of the origins of moral systems (and eo ipso of morally governed forms of life and practice) is the first manifestation of General Ascetology. It begins the explication history of religions and systems of ethics as anthropotechnic praxes.