Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Schuback (2006:29-31) – Dasein e Anwesen

quarta-feira 19 de abril de 2017

Aceitando-se a tradução de Dasein   por presença, com base no que dissemos até agora, resta ainda discutir como então distinguir, na tradução, Dasein de Anwesen  , termo que adquire um lugar importante na obra tardia de Heidegger, precisamente quando a palavra Dasein é, digamos assim, deixada para trás. A palavra Anwesen foi traduzida por vigência, possibilidade de que a língua francesa, por exemplo, não dispõe. Vigência provém de vigere, vigeo de onde também provém vigescere, vigor. Do mesmo étimo provém o alemão wesen. O significado amplo desses termos é de um demorar-se vigoroso. A palavra vigência é, portanto, uma tradução praticamente literal do alemão Anwesen. Importante é, ademais, ter em mente que o tão discutido termo Dasein é intensamente conjugado por Heidegger, sobretudo na segunda parte de Ser e tempo  . Na tradução de Dasein não está em jogo uma única palavra ou um único termo técnico, mas a complexa conjugação da presença humana em seus vários níveis de realização finita. Assim encontramos Dasein na forma verbal comum de dasein, dazusein (infinitivo), daseiend (gerúndio) e, sobretudo, na forma pretérita dagewesen (passado), a [29] partir da qual Heidegger formou o substantivo Dagewesenheit, onde se expõe na própria palavra um outro verbo para ser, que é wesen, usado no vocabulário metafísico da língua alemã para traduzir essentia  , essência. A discussão de Heidegger em torno de Dasein como o horizonte para uma compreensão não essencialista da vida, do ser, concentra-se nessa estranha conjugação de ser e essência, sein   e wesen, de temporalização do tempo e substantivação de ser. De certo modo, uma compreensão metafísica, substancialista, essencialista de ser está sempre inscrita, está sempre em carne viva, na infinição verbal de Dasein. Até mesmo na palavra mostra-se o que para Heidegger é tão decisivo, a saber, que metafísica não é uma escolha intelectual ou cultural que poderia ser superada ou assumida por decreto. Metafísica é o modo mesmo de ser de Dasein, de presença enquanto ser para além de si mesmo numa antecipação, transcendência, tra-dução, em suma, o que só possui a si mesmo perdendo a si mesmo. O modo de ser de Dasein é o modo de ser de um paradoxo radical, ser em-si mesmo um outro, ser em-si mesmo não ser um si-mesmo. Essa inscrição metafísica mostra não apenas que toda busca de apreender Dasein em sua radical verbalidade só é possível mediante uma insistente des-substantivação e que, portanto, substantivar Dasein é uma necessidade inevitável, mas igualmente que toda tentativa de agarrar o sentido da existência num sentido substancial não é capaz de desvencilhar-se da verbalidade temporalizante da vida da ek-sistência. Heidegger não escolhe o termo Dasein para indicar formalmente o não ser simplesmente dado da vida fática do homem por ser um termo que tenha superado a metafísica, e sim por ser o termo que se mantém na tensão metafísica de só ser si mesmo perdendo-se de toda idéia de um em-si. Dasein não é um termo não substantivado da vida fática do homem, mas a indicação formal   de que temporalidade de ser é des-substantivação de ser. O uso intenso de Anwesen depois de Ser e tempo acompanha a busca de Heidegger de fazer aparecer a vitalidade do paradoxo da existência. Isto aparece na intensa verbalização-temporalização de palavras como Wesen, essência, Welt  , mundo, Nicht  , nada, Ding  , coisa, onde essas palavras passam a ser usadas e a soar inusitadamente como verbo - essencializar, mundanizar, nadificar, coisar. Essa temporalização-verbalização via des-substantivação é o que Heidegger realiza minuciosamente em Ser e tempo com o termo Dasein. O que Heidegger se esforçou por mostrar [30] é a impossibilidade de traduzir-se para o âmbito de uma verdade transformada sem passar por todo o caminho de despojar-se, de perder o já sabido, o já dito, o já esperado e encontrar-se com o nada aberto e doador da possibilidade livre de um a ser. (p. 29-31)

["A perplexidade da presença", in HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tr. Marcia Schuback  . Petrópolis: Vozes, 2006]


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