Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Schuback (1998:33-35) – o passado [Vergangenheit]

sexta-feira 17 de julho de 2020

Costuma-se denominar de passado o que fica para trás relativamente a um novo começo, a um novo presente. Contudo, o ficar para trás do passado não pode significar o que se perde definitivamente. Pois se fosse possível perdê-lo definitivamente não mais se poderia evocá-lo como passado e, desta maneira, atribuir-lhe presença mesmo tratando-se de uma presença ausente, digamos assim. Passado já alude, em si mesmo, à ambiguidade de algo que passa mas fica e de tal maneira que fica somente em tendo passado. Schelling   define a base ontológica do passado com as seguintes palavras: “O que, porém, sendo em si mesmo respectivamente a um outro, enquanto não-ser, coloca-se como passado” [1]. Antes de qualquer conteúdo, o passado fala, portanto, de uma “passagem”, [33] de um “passo para além de si mesmo”. O passar para além de si, inerente ao passado, guarda, no entanto, uma característica particular. Pois ao “passar” para além de si, ao ultrapassar, o passado perde, irreversivelmente, alguma coisa e, justo ao perder irreversivelmente, guarda e preserva o ter passado. Ao perder irreversivelmente, o passado se apresenta como passado, torna-se ele mesmo presente e isso, para além de si, inaugurando, principiando, começando um “outro” de si. Na formulação de um passo para além de si, o passado exprime, primordialmente, o modo de constituição de começo como um dar começo, ou, em termos cronológicos, como fundação de um presente. Se a perda irreversível própria ao passado delimita-se por um “não” ser mais (“relativamente a um outro”) e se, simultaneamente, o que nesta perda tem começo define-se por “ser”, a relação entre passado e presente, fundadora do sentido de começo pode-se enunciar como passagem do não-ser para ser, cujo passo consiste em aprofundar no ser o seu próprio não. O aprofundamento no ser do próprio não indica, portanto, uma atividade de conquista, uma ação singular que é, na verdade, o que possibilita esta passagem. Nestes termos, Schelling coloca em questão, com toda radicalidade de um grande pensador, o sentido metafísico de começo, que atravessa a história da filosofia no Ocidente na explicitação formal   e, assim, indiscutida, de mera “passagem de não-ser para ser”. A base deste sentido remonta à filosofia socrático-platônica e, mais especificamente, à história de sua interpretação e apropriação. Platão, no Banquete [2], define a passagem de não-ser para ser como ação, em grego, ποίησις  . A ação singular do começo é, pois, a ação própria da ποίησις. Pode-se dizer que, de algum modo, a acepção de aprofundamento no ser do próprio não, que Schelling chama também de passado, consiste numa interpretação e, portanto, redimensionamento do sentido de ποίησις, indicado nesta passagem decisiva do Banquete. Em sua ação, o passado se apresenta como uma poética [34] do começo cuja atividade essencial é o aprofundamento no ser de seu próprio não. Isso significa, em termos schellignianos, que nada é sem um passado.

Nada é sem um passado deve ser entendido, num primeiro âmbito de significância, como uma estrutura de remissão. Remissão não possui, todavia, o sentido de remissão lógica, quando se diz, por exemplo, que tudo possui uma causa. Pois a remissão lógica determinante da relação de causa e efeito pressupõe uma função lógica que não apenas se aplica à causa e ao efeito como, sobretudo, determina isso como causa e isso como efeito, sendo, portanto, sempre remissão de conteúdos. A estrutura de remissão referida na assertiva — nada é sem um passado — indica, ao contrário, que, em seu devir, tudo o que é pode se constituir como o que é somente a partir de uma transmissão, a partir de sua história. Todavia, o que torna possível a transmissão, a história é um mundo, ou seja, as circunstâncias, estâncias, os modos que circundam, abrangem e abarcam ser. A estrutura de remissão relevada pelo passado configura-se, em sua essência, como estrutura de mundo. Neste primeiro nível de exposição, mundo guardará o sentido filosófico imediato de visão possível e aproximadora do todo numa unidade (transmissão e história). Ao dizer que nada é sem um passado e, desta maneira, nada é sem mundo, diz-se, igualmente, que nada é sem uma visão possível e aproximadora da totalidade.

[SCHUBACK  , Marcia S. C. O Começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Editora Vozes, 2021]


Ver online : Marcia Schuback


[1Schelling, Weltalter, p. 271.

[2Platão, Symposion, 205b.