Página inicial > Fenomenologia > Richardson (2003) – Heidegger e psicanálise?

Heidegger and Psychoanalysis?

Richardson (2003) – Heidegger e psicanálise?

Natureza Humana 5(1): 9-38, jan.-jun. 2003

quarta-feira 21 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

O presente artigo oferece um estudo da desconstrução heideggeriana   da psicanálise, seguida de tentativa de mostrar como a reformulação lacaniana da metapsicologia se relaciona com a analítica existencial e a filosofia da linguagem de Heidegger. [Abstract somente disponível, não mais o PDF]

O que Heidegger faz nesses seminários [de Zollikon]? Em uma palavra, ele oferece aos psiquiatras um curso intensivo sobre alguns dos conceitos fundamentais de Ser e tempo  , que tinham inicialmente despertado o entusiasmo de Boss. E quem seria mais apto do que ele para realizar essa tarefa? Aqueles conceitos, agora, são moeda corrente, e facilmente lembrados. Heidegger está interessado no sentido do ser (Sein  ) como diferente do ente (Seiende  ), que ele deixa ser manifesto, e ele procede por meio de um exame fenomenológico de um ente particular dentre o resto, quer dizer, o ser humano, que ele chama Dasein  . O Dasein deve de algum modo saber a resposta para a questão sobre o sentido do ser como diferente do ente, uma vez que é capaz de fazer essa pergunta. Sob exame, o Dasein se revela como um fenômeno cuja natureza é ser-no-mundo. Heidegger examina primeiro o que mundo significa e então o que significa ser “em” tal mundo. Quanto ao mundo em si mesmo, ele deve ser entendido não como a soma total de tudo o que é, mas como um horizonte no qual os entes são encontrados, uma matriz de relações no interior das quais os entes têm seu significado. Posteriormente, essa matriz de significados seria concebida como uma matriz do que quer que pudesse ser articulado através da fala.

Para o Dasein ser “em” um tal mundo implica vários componentes existenciais diferentes, i.e. estruturais: um que desvela/projeta o mundo como significatividade total (Verstehen  : “entendimento”), outro que des — vela os entes no mundo através da dis-posição afetiva (Befindlichkeit  : “estado de espírito”), e ainda outro que permite ao Dasein articular na fala o que ele afetivamente entende. Este último componente Heidegger chama Rede   (discurso), mas, como Rede é sua tradução do grego logos  , parece melhor simplesmente adaptar o grego, denominando-o então ‘logos” —entendendo assim o componente estrutural através do qual o Dasein é capaz de deixar alguma coisa se manifestar em palavras. Como um componente estrutural, o logos compartilha a natureza do Dasein como ser-com-outros, e este é o fundamento de sua capacidade para interagir com outros Daseins através da mediação da fala (Mitteilung  : “comunicação”). Não é necessário dizer, é claro, que o componente estrutural do logos compartilha do caráter radicalmente temporal   do Dasein, por meio do qual o Dasein permite que o futuro venha através de seu passado, permitindo que o ente (inclusive ele-próprio) se torne manifesto no presente. As implicações de tudo isso são tão influentes quanto é complexa a fenomenologia que o justifica.

O que Heidegger faz então com os psiquiatras? Ele segue o conselho que ele dá a Boss enquanto este se prepara para ser professor visitante em Harvard: “Você deve ser bem sucedido em promover uma mudança de ponto de vista em seus examinadores, despertando [neles] o sentido no qual a pergunta [sobre o ser em sua diferença do ente] deve ser feita” (2001, 258/324). Ele recomenda uma meditação sobre o espaço e a espacialidade como um bom modo de começar, e assim é exatamente como ele começa esses seminários. A análise do espaço (e, por conseguinte, do tempo) nada acrescenta senão uma certa revigoração ao tratamento dos tópicos em Ser e tempo. O que é interessante é o rigor de seu método pedagógico. As sessões procedem com exemplos familiares de copos e mesas. Eles estão aqui? Ou ali? Ou onde? Eles são agora? Ou naquele tempo? Ou quando? O que é onde? O que é quando? Isto é muito socrático e realista —mas lucidamente claro e genuinamente filosófico.

Mais particularmente, o que deve ser dito sobre o inconsciente tal como Freud   nos ensinou a entendê-lo? Para Heidegger, Freud é um exemplo clássico da mente científica moderna (lato sensu), uma mente que é totalmente cega para a dimensão do ser dos objetos com os quais ela lida, i.e. o processo misterioso dentro deles que os deixa vir para a presença e os revela para nós como aquilo que eles são. A mente científica está interessada em seu caráter-objeto, na sua objetificabilidade, sua capacidade de ser conceitualizado em representações, medido, calculado, controlado. Heidegger encontra o paradigma histórico para esta mentalidade conjuntamente na física de Galileu   e na filosofia de Descartes  .

Heidegger leva os pobres doutores através da longa história que segue como uma forma de conquistar um espaço a partir do qual dizer o que ele pensa sobre a noção freudiana do inconsciente. O fato é que foi Boss quem apresentou Heidegger ao trabalho metapsicológico de Freud e, de acordo com Boss, Heidegger “não podia acreditar que um homem inteligente como ele pudesse ter escrito coisas tão estúpidas e fantasiosas assim sobre homens e mulheres” O que Freud está procurando é uma explicação do fenômeno humano através de uma cadeia ininterrupta de causalidade (2001, 7/7). Quando ele não consegue fazer isso no nível da consciência, ele postula um inconsciente — quando muito uma pura hipótese (2001, 169/214). Resultado: a “distinção fatal entre consciente e inconsciente” (2001, 254/319) nasceu e, ai de nós, parece que veio para ficar.

Para ficar? Bem, se o inconsciente freudiano é somente a face inferior de uma concepção cartesiana da consciência, concebida como um sujeito-ego   encapsulado, o que acontece se esse modelo cartesiano for descartado? O inconsciente não vai também? É claro que sim —e esta é exatamente a posição de Heidegger. Porque o Dasein não é fundamentalmente um sujeito-ego. O Dasein é a clareira do ser na qual todos os entes (inclusive ele mesmo) podem aparecer e se revelar como o que são. É por isso que, para o Dasein, existir dignifica manter aberto um domínio através de seu poder receber/perceber (vernehmenkönnen) a significatividade daquelas [coisas] que são dadas ao [Dasein] e relacionadas ao [Dasein] em virtude da própria luminosidade [do Dasein]” (2001, 4/4). Heidegger frequentemente descreve este demorar-se na clareira como um “sojourn” ou Aufenthalt  .

Em outro nível de linguagem, este “demorar-se” é uma função das estruturas existenciais, já delineadas em Ser e tempo, ainda notavelmente funcional no pensamento de Heidegger nos anos 60. Por exemplo:

O ser-lançado (Geworfenheit  ) e o entendimento (Verstehen) pertencem reciprocamente um ao outro em uma correlação cuja unidade é determinada através da linguagem (Sprache  ). A linguagem aqui deve ser pensada como dizer (Sagen), na qual o ente enquanto ente, i.e. do ponto de vista do seu ser, mostra-se. É somente na base da correlação de ser-lançado e entendimento, através da linguagem como dizer, que o ente pode dirigir-se à humanidade. (2001, 139-140/182-83).

A linguagem, portanto, não simplesmente no sentido da comunicação (Mitteilung) (2001, 139/183) ou mesmo da articulação verbal (Verlautbarung  ) (2001, 185/232), mas no sentido de dizer (Sagen) é essencialmente um mostrar adiante (zeigen  ), ou, antes, um deixar mostrar adiante (sich zeigen lassen  ) ou ser visto (sehen   lassen), do ente que pode ser encontrado no mundo como ente (2001, 90, 96-97/117, 126). E o contrário também é verdadeiro: “todo fenômeno mostra-se a si próprio [para o fenomenólogo] somente no domínio da linguagem” (2011, 96-7/83).

Isso tudo reunido leva à concepção do Dasein como um “self”. Para Heidegger, a palavra está pelo Dasein como ser-no-mundo à medida que ele permanece o mesmo através de um processo histórico dado. Sua permanência consiste no fato de que “o self pode sempre voltar a si mesmo e encontrar-se em seu permanecer ainda o mesmo” [como foi sempre até agora] (2001, 220).

O que a palavra “eu” acrescenta à experiência de historicizar o Dasein como um self. Isto não é por si só um testemunho para a consciência, mas simplesmente o nomear do self como ele é experienciado por si mesmo em um dado momento. “Para os gregos, ‘eu’ é o nome para um ser humano (Mensch  ) que se ajusta aos limites [de uma situação dada] e, assim, à vontade consigo mesmo (bei   sich selbst  ), é si-mesmo" (2001, 188/235). Tornar-se “consciente” em uma tal condição significará tentar determinar “como este original ser-íntimo-com (Sein bei) [outros entes]… anda junto com outras determinações do Dasein” (2001, 110/143). E a consciência como tal? “Permanecer na clareira [do ser] não significa que o ser humano permaneça na luz como um poste, mas o Da-sein humano começa uma estada na clareira e se pre-ocupa com coisas” (2001, 144/188). Quanto a uma consciência, então, se ela deve ser entendida como não mais do que uma cadeia ininterrupta de causalidade psíquica que por hipótese explica as lacunas na experiência consciente, não devemos nos admirar com o fato de Heidegger não ter tomado parte nisso. Mas será esta a única maneira de entender a natureza da descoberta de Freud?


Ver online : William J. Richardson


Natureza Humana 5(1): 9-38, jan.-jun. 2003