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Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

quarta-feira 23 de março de 2022

O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.

A história nos conta inumeráveis retrocessos, decadências e degenerações. Mas não foi dito que não sejam possíveis retrocessos muito mais radicais do que todos os conhecidos, inclusive o mais radical de todos: a total volatilização do homem como homem e seu taciturno reingresso na escala animal, na plena ^ definitiva alteração. A sorte da cultura, o destino do homem, depende de que no fundo de nosso ser mantenhamos sempre vivaz esta dramática consciência e, como um contraponto murmurante em nossas entranhas, sintamos bem que para nós só é segura a insegurança.

Não escassa porção das angústias que retorcem hoje as almas do Ocidente provém de que durante o século passado, - e quiçá pela primeira vez na história, - o homem chegou a crer-se seguro. Porque a verdade é que seguro, seguro, só conseguiu sentir-se o farmacêutico monsieur Homais, produto nítido do progressismo! A ideia progressista consiste em afirmar não somente que a humanidade, - um ente abstrato, irresponsável, inexistente que então se inventou, - progride, o que é certo, mas também progride necessariamente. Tal ideia cloroformizou o europeu e o americano para essa sensação radical de risco que é substância do homem. Porque se a humanidade progride inevitavelmente, quer dizer que podemos abandonar toda alerta, despreocupar-nos, irresponsabilizar-nos, ou, como dizemos na Espanha, "tumbarnos a la bartola" (Expressão que corresponde à nossa: "deitar de papo para o ar" (N. do T.)) e deixar que ela, a humanidade, nos leve inevitavelmente à perfeição e à delícia. A história humana fica, deste modo, desossada de todo dramatismo e reduzida a uma tranquila viagem turística organizada por qualquer agência "Cook" de categoria transcendente. Caminhando assim, segura, para a sua plenitude, a civilização em que embarcamos seria como a nau dos feácios de que fala Homero, a qual, sem piloto, navegava direito ao porto. Esta segurança é o que estamos pagando agora (Eis aqui uma das razões pelas quais disse que não sou progressista. Aqui está porque prefiro renovar em mim, com frequência, a emoção que me causaram na juventude aquelas palavras de Hegel  , no começo de sua Filosofia da História: "Quando contemplamos o passado, isto é, a História, - diz, - o primeiro que vemos é só ruínas". Aproveitamos, de passagem, esta conjuntura para, desta visão, perceber o que há de frivolidade, e até de notável contrafação, no imperativo famoso de Nietzsche  : "Vivei em perigo". Que, além do mais, não é tampouco de Nietzsche, e sim a exasperação de um velho mote do Renascimento italiano, o famoso lema de Aretino: Vivere risolutamente. Porque não diz: Vivei alerta, o que estaria bem; senão: Vivei em perigo. E isto revela que Nietzsche, apesar de sua genialidade, ignorava que a substância mesma de nossa vida é perigo e que, portanto, acaba sendo afetada superfetação propormos como novidade algo acrescido e original, que o procuremos e o colecionemos. Ideia, além disso, típica da época que se chamou fin de sièc!e; época que ficará na história, - culminou por volta de 1900, - como aquela em que o homem se sentiu mais seguro e, a um tempo, como a época, - com seus peitilhos e casacas, suas mulheres fatais, sua pretensão de perversidade e o seu culto barresiano do Eu, - como a época de contrafação por excelência. Em toda época há sempre certas ideias que eu chamaria ideias fishing, ideias que se enunciam e proclamam precisamente porque se sabe que não terão cabida; que não se pensam senão à maneira de jogo e folie - como há anos agradavam tanto na Inglaterra os contos de lobos, porque a Inglaterra é um país onde em 1668 se caçou o último lobo e carece, portanto, da experiência autêntica do lobo. - Em uma época que não tem experiência forte da insegurança, - como aquela, - brincava-se de vida perigosa.).

Segue-se isto à conta de que o pensamento não é um dom do homem, mas aquisição laboriosa, precária e volátil.


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