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Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

quarta-feira 23 de março de 2022

O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.

Essa doutrina é o que se tem chamado intelectualismo, a idolatria da inteligência, que isola o pensamento de seu encaixe, de sua função na economia geral da vida humana. Como se o homem pensasse porque sim, e não porque, queira ou não queira, tem de fazê-lo para suster-se entre as coisas! Como se o pensamento pudesse despertar e funcionar pelas suas próprias molas, como se começasse e acabasse em si mesmo, e não, - o que é a verdade, - engendrado pela ação e tendo nela as suas raízes e o seu termo! Inumeráveis coisas da mais alta classe devemos aos gregos, mas também lhes devemos cadeias. O homem do Ocidente vive ainda, em medida escassa, escravizado por preferências que tiveram os homens da Grécia, os quais, operando no subsolo da nossa cultura, nos desviam, há oito séculos, de nossa própria e autêntica vocação ocidental. A mais pesada dessas cadeias é o "intelectualismo" e importa muito que, nesta hora em que é preciso retificar a rota, iniciar novos caminhos, - acertar, em suma, - importa muito que nos desfaçamos resolutamente dessa arcaica atitude que foi levada ao extremo nestas duas últimas centúrias.

Sob o nome, primeiro, de raison, logo de ilustração, e, por fim, de cultura, operou-se a mais radical tergiversação dos termos e a mais indiscreta divinização da inteligência. Na maior parte de quase todos os pensadores da época, sobretudo nos alemães, por exemplo: nos que foram os meus mestres no começo do século, veio a cultura, o pensamento, a ocupar o posto abandonado de um deus em fuga. Toda a minha obra, desde os-seus primeiros balbucios, foi uma luta contra essa atitude, que há muitos anos chamei de "beatice da cultura". Beatice da cultura, porque nela se nos apresentava a cultura, o pensamento, como algo que se justifica a si mesmo, a saber, que não precisava de justificação, mas que é valioso por sua própria essência, sejam quais forem a sua concreta ocupação e o seu conteúdo. A vida humana devia pôr-se ao serviço da cultura, porque só assim se carregava de substância estimável. Assim sendo, ela, a vida humana, nossa pura existência, seria, por si mesma, coisa balda e sem apreço.

Essa maneira de inverter a relação efetiva entre vida e cultura, entre ação e contemplação, deu motivo a que nos últimos cem anos, - portanto, até bem pouco, - se suscitasse uma superprodução de ideias, de livros e obras de arte, uma verdadeira inflação cultural. Caiu-se naquilo que, por gracejo, - porque desconfio dos "ismos", - poderíamos chamar de "capitalismo da cultura", moderno aspecto do bizantinismo. Em vez de atender ao consumo, vão-se produzindo, por produzir, as ideias necessárias, de que o homem de hoje precisa e que pode absorver. E, como acontece no capitalismo, saturou-se o mercado e sobreveio a crise. Não me digam que a maior parte das grandes mudanças ocorridas nos últimos tempos nos apanhou de surpresa. Há vinte anos as anuncio e as denuncio. Para me não referir senão ao tema estrito que glosamos agora, veja-se o meu ensaio intitulado, formal   e programaticamente, A reforma da inteligência, que se publicou por volta de 1922 ou 1923, e que foi reunido em volume ([Vejam-se Obras completas, tomo IV,]).

O mais grave, porém, nessa aberração intelectualista que significa a beatice da cultura, não é isso, mas consiste em apresentar ao homem a cultura, o ensimesmamento, o pensamento, como uma graça ou joia que este deve acrescentar à sua vida, portanto, como algo que se acha desde logo fora dela, como se existisse um viver sem cultura e sem pensar, como se fosse possível viver sem ensimesmar-se. Com isso os homens eram postos, - como diante da vitrina de uma joalheria, - na opção de adquirir a cultura ou prescindir dela. E, é claro, diante de tal dilema, ao longo destes anos que estamos vivendo, os homens não vacilaram, mas resolveram ensaiar a fundo a última operação e pretendem fugir a todo ensimesmamento e entregar-se à plena alteração. Por isso, existem na Europa somente alterações.

À aberração intelectualista que isola a contemplação da ação, sucedeu a aberração oposta: a voluntarista, que se exonera da contemplação e diviniza a ação pura. Esta é uma maneira de interpretar erroneamente a tese anterior, de que o homem é primária e fundamentalmente ação. Sem dúvida, toda ideia é susceptível, - mesmo a mais verídica, - de ser mal interpretada; sem dúvida, toda ideia é perigosa: isto é forçoso reconhecê-lo formalmente e de uma vez para sempre, a salvo de acrescentar que essa periculosidade, que esse risco latente não é exclusivo das ideias, mas vai anexo a tudo, absolutamente tudo que o homem faz. Por isso disse que a substância do homem não é outra coisa senão perigo. O homem caminha sempre entre precipícios, e, queira ou não queira, sua mais autêntica obrigação é conservar o equilíbrio.


Ver online : ORTEGA Y GASSET