Página inicial > Fenomenologia > Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

quarta-feira 23 de março de 2022

O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.

São muito poucos os povos que a estas horas, - e me refiro a antes de estalar esta guerra tão torva, que estranhamente nasce como se não quisesse acabar de nascer, - são muito poucos, digo, os povos que nos últimos tempos gozavam já da tranquilidade de horizontes que permite escolher de verdade, recolher-se na reflexão. Quase todo o mundo está alterado, e na alteração o homem perde o seu atributo mais essencial: a possibilidade de meditar, de recolher-se dentro de si mesmo, para se pôr de acordo consigo mesmo e precisar, para si mesmo, aquilo que crê; aquilo que estima de verdade e o que deveras detesta. A alteração o obnubila, o cega, o obriga a atuar mecanicamente em um frenético sonambulismo.

Em nenhuma parte advertimos que a possibilidade de meditar é, de fato, o atributo essencial do homem, melhor do que no Jardim Zoológico, diante das jaulas de nossos primos, os macacos. O pássaro e o crustáceo são formas de vida demasiado distantes da nossa para que, ao confrontarmo-nos com eles, percebamos outra coisa senão diferenças avultadas, abstratas, vagas, de tão excessivas. O símio, porém, tanto se parece conosco que nos convida a afinar a comparação, a descobrir diferenças mais concretas e mais férteis.

Se sabemos permanecer quietos um instante, contemplando passivamente a cena simiesca, em breve se destacará dela, como que espontaneamente, um traço que nos chega como um raio de luz. E é aquele estar constantemente alerta dos endiabrados animaizinhos em perpétua inquietação, olhando, escutando todos os sinais que lhes chegam de redor, atentos sem descanso ao contorno, como que temendo que dele chegue sempre um perigo ao qual é forçoso responder automaticamente com a fuga ou com a dentada, em mecânico disparo de um reflexo muscular. O animal, com efeito, vive em perpétuo medo do mundo e, ao mesmo tempo, em perpétuo apetite das coisas que há nele e que nele aparecem, um apetite indomável que dispara também sem freio nem inibição possíveis, igual ao pavor. Em um e outro caso, são os objetos e os acontecimentos do ambiente que governam a vida do animal, que o trazem e o levam, como uma marionete. O animal não rege a sua existência, não vive a partir de si mesmo, mas está sempre atento ao que se passa fora dele, a esse outro diferente dele. Nosso vocábulo outro não é senão o latino alter. Dizer, portanto, que o animal não vive a partir de si mesmo, mas do outro, trazido e levado e tiranizado por seu outro, equivale a dizer que o animal vive sempre alterado, alienado, que a sua vida é constitutiva alteração.

Contemplando esse destino de inquietação sem descanso, chega o momento em que nos dizemos: "que trabalho!". Com isso enunciamos, com plena ingenuidade, sem percebê-lo formalmente, a diferença mais substantiva entre o homem e o animal. Porque essa expressão diz que sentimos uma estranha fadiga, uma fadiga gratuita, suscitada pela simples antecipação imaginária de que tivéssemos de viver como eles, perpetuamente acossados pelo ambiente e em tensa atenção a ele. E, porventura, o homem não se acha, como o animal, prisioneiro do mundo, cercado de coisas que o espantam, de coisas que o encantam, e obrigado, por toda a vida, inexoravelmente, queira ou não queira, a ocupar-se delas? Sem dúvida. Mas com esta diferença essencial: que o homem pode, de quando em quando, suspender sua ocupação direta com as coisas, desligar-se de seu contorno, desentender-se dele e, submetendo a sua faculdade de atender a uma torção radical, - incompreensível zoologicamente, - voltar-se, por assim dizer, de costas ao mundo, e meter-se dentro de si, atender à sua própria intimidade ou, o que é igual, ocupar-se de si mesmo e não do outro, das coisas.

Com palavras que, de muito usadas, como velhas moedas, já não conseguem dizer com vigor o que pretendem, costumamos chamar a essa operação: pensar, meditar. Estas expressões, porém, ocultam o que há de mais surpreendente nesse fato: o poder que o homem tem, de retirar-se, virtual e provisoriamente, do mundo, e recolher-se dentro de si mesmo, ou, dito com um esplêndido vocábulo, que só existe em nosso idioma: que o homem pode ensimesmar-se (Referia-se Ortega, naturalmente, ao espanhol, sem se lembrar que no português também existe o verbo (N. doT.).).


Ver online : ORTEGA Y GASSET