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Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

quarta-feira 23 de março de 2022

O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.

Mas não foi dito que o social seja uma realidade peculiar. Poderia acontecer que fosse só uma combinação ou resultado de outras realidades, como os corpos não são "em realidade" mais do que combinações de moléculas e estas, de átomos. Se, como se tem acreditado quase sempre, - e com consequências praticamente mais graves no século XVIII, - a sociedade é somente uma criação dos indivíduos que, em virtude de uma vontade deliberada "se reúnem em sociedade"; portanto, se a sociedade não é mais do que uma "associação", a sociedade não tem própria e autêntica realidade e não faz falta uma sociologia. Bastará estudar o indivíduo.

Ora, a questão de ser uma coisa, que não, própria e ultimamente, realidade, só se pode resolver com os meios radicais da análise e da técnica filosóficas.

Trata-se, pois, de investigar se, no repertório das realidades autênticas, - isto é, de tudo quanto já não é redutível a alguma outra realidade, - existe algo que corresponda a isso que vagamente denominamos "fatos sociais".

Para tanto, temos de partir da realidade fundamental, em que todas as demais, de um modo ou de outro, têm de aparecer. Essa realidade fundamental é nossa vida, a de cada um, e é cada um que tem de analisar se, no âmbito que constitui a sua vida, aparece o social como alguma coisa diferente de tudo mais e irredutível a tudo mais.

Na área de nossa vida, - prescindindo do problema transcendente que é Deus, - achamos minerais, vegetais, animais e os outros homens, realidades irredutíveis entre si e, portanto, autênticas. O social aparece-nos adstrito somente aos homens. Fala-se também de sociedades animais, - a colmeia, o formigueiro, o termitário, o rebanho; - sem entrar, porém, em mais considerações, basta a de que o homem, como realidade, não foi reduzido à realidade animal, para que não possamos, por enquanto, ao menos, considerar como sinônima a palavra sociedade, quando falamos de "sociedade humana" e de "sociedade animal". Portanto:

"1. - O social consiste em ações ou comportamentos humanos, - é um fato da vida humana. Mas a vida humana é sempre a de cada um, é a vida individual ou pessoal e consiste em que o EU que cada qual é se encontre tendo de existir em uma circunstância, - o que costumamos chamar mundo, - sem segurança de existir no instante imediato, tendo sempre de estar fazendo algo, - material ou mentalmente, - para assegurar essa existência. O conjunto desses afazeres, ações ou comportamentos, é a nossa vida. Só é, pois, humano, no sentido estrito e primário, o que faço por mim mesmo e em vista de meus próprios fins ou, o que é a mesma coisa, o fato humano é um fato sempre pessoal. Isto quer dizer:

a) - Que é só propriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o "sujeito criador disso", ou o que a mim mesmo, como tal eu-mesmo, acontece.

b) - Portanto, somente é humano o meu pensar, se penso alguma coisa por minha própria conta, advertindo-me do que significa. SOMENTE É HUMANO AQUILO QUE, AO FAZER, O FAÇO PORQUE TEM PARA MIM UM SENTIDO, A SABER, AQUILO QUE ENTENDO.

c) - Em toda ação humana existe, pois, um SUJEITO do qual ela emana e que, por isso mesmo, é RESPONSÁVEL por ela.

d) - Consequência do anteriormente exposto é que a minha vida humana, que me põe em relação direta com quanto me rodeia, - minerais, vegetais, animais, os outros homens, - é, por essência, solidão. Minha dor de dentes só a mim pode doer. O pensamento que de verdade penso, - e não somente repito mecanicamente por tê-lo ouvido, - tenho de o pensar eu "sozinho" ou eu em minha solidão.

Mas o fato social não é um comportamento de nossa vida humana como solidão; ao contrário, aparece enquanto estamos em relação com os outros homens. Não é, pois, vida humana no sentido estrito e primário.

2. - O social é um fato, não da vida humana, mas algo que surge na convivência humana. Por convivência, entendemos a relação ou trato entre duas vidas individuais. O que chamamos pai e filhos, amantes, amigos, por exemplo, são formas de convívio. Nessa convivência sempre se trata de que um indivíduo, como tal, - portanto, um sujeito criador e responsável por suas ações, que faz o que faz porque para êle isso tem sentido e ê!e o compreende, - atua sobre outro indivíduo que tem as mesmas características. O pai, como indivíduo determinado qu« é, dirige-se a seu filho, que é outro indivíduo determinado e único também. Os fatos de convivência não são, portanto, por si mesmos, fatos sociais. Formam o que deveria chamar-se "companhia ou comunicação", - "um mundo de relações inter-individuais .

Analise-se, porém, toda outra série de fatos humanos, como o cumprimento, como a ação do guarda que nos impede, em certo momento, de atravessar a rua. Neles, a ação, - dar a mão, o ato de o guarda impedir o nosso passo, - não o faz o homem porque lhe haja ocorrido, nem espontaneamente, isto é, sendo ele o responsável pela ação; tampouco é dirigida a outro homem por ser ele tal indivíduo determinado. O homem faz isso sem sua original vontade e amiúde contra a sua vontade. Além disso, - no caso do cumprimento, está bem claro, - o que fazemos, dar a mão, não o entendemos, não sabemos porque é isso e não outra coisa o que temos de fazer, quando encontramos um conhecido. Essas ações não têm, pois, sua origem em nós: somos meros executores delas, como o gramofone canta o seu disco, como o autômato pratica seus movimentos mecânicos.

Quem é o sujeito originário, do qual essas ações provêm? Por que as fazemos, já que não as fazemos, nem por nossa invenção, nem com a nossa espontânea vontade? Damos a mão ao encontrar um conhecido porque isso é o que "se faz". O guarda detém nosso passo, não porque isso lhe tenha ocorrido, nem por sua conta, mas porque assim "é mandado". Quem é, porém, o sujeito originário e responsável por aquilo que se faz? A gente, os demais, "todos", a coletividade, a sociedade, - isto é: "ninguém determinado".

Eis aqui, pois, ações que são, por um lado, humanas, já que consistem em comportamentos intelectuais ou de conduta especificamente humanos e que, por outro lado, nem se originam na pessoa ou indivíduo, nem este os quer, nem é responsável por eles e com frequência nem sequer os entende.

Aquelas nossas ações que têm essas características negativas e que executamos por conta de um sujeito impessoal, indeterminável, que são "todos" e "ninguém", e que denominamos a gente, a coletividade, a sociedade, são os fatos propriamente sociais, irredutíveis à vida humana individual. Esses fatos aparecem no âmbito da convivência, porém não são fatos de pura convivência.

O que pensamos ou dizemos porque "se" diz; o que fazemos porque "se" faz costuma chamar-se uso.


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