Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Nietzsche (ABM 186): a ciência da moral

sábado 20 de outubro de 2018

Pugliesi

O sentimento moral   é presentemente na Europa   tão fino, tardio, múltiplo, irritável, refinado, quanto a "ciência moral" é ainda jovem, principiante, entorpecida e grosseira; um contraste atraente, que por vezes se manifesta na própria pessoa do moralista.

O próprio título "ciência da moral" é relativamente aquilo que quer significar muito presunçoso e contrário ao bom gosto, que prefere expressões mais modestas.

Deveria ter a coragem de confessar aquela coisa que necessitará ainda por muito tempo, aquela única que provisoriamente tem um direito a ser, isto é. recolher o material, reunir os conceitos, coordenar todo um mundo de sentimentos delicados exterminados, de diferenciações de valores, os quais vivem, crescem, geram e perecem e, talvez, tentar tomar inteligíveis as formas renovadoras e mais frequentes desta cristalização vivente — como preparação a uma doutrina dos tipos da moral. E bem verdade que até agora não se foi suficiente modesto.

Os filósofos sem exceção encaram-se sempre com uma seriedade ridícula, algo de muito elevado, de muito solene, não apenas deviam ocupar-se da moral, como ciência, mas desejavam estabelecer os fundamentos da moral, e todos acreditaram firmemente tê-lo conseguido, mas a moral era encarada por eles como coisa "dada". Quão distante de seu orgulho canhestro se encontrava a tarefa, aparentemente insignificante e inconcludente, de uma simples descrição, já que uma tal incumbência requer mãos e sentidos inefavelmente delicados. E sem dúvida que esta é a razão dos moralistas conhecerem tão grosseiramente os "facta" da moralidade, através de compêndios arbitrários ou ainda através de uma abreviação casual, por exemplo, aquela moral de seu ambiente, de sua própria classe, da sua igreja, do espírito do tempo em que vivem, do seu clima, de seu país e precisamente por isso [98] estavam mal informados e pouco lhes importava estar bem informados acerca das nações, das épocas, da história dos tempos passados; jamais estiveram face a face com os verdadeiros problemas da moral que se apresentam apenas quando se verifica o confronto de muitas morais. Na, assim chamada, “ciência da moral” faltava precisamente, por mais que isso pareça estranho, o próprio problema da moral e não havia mesmo a suspeita da existência de algum problema.

Aquilo que os filósofos chamam "fundamento da moral" e aquilo que pretendiam, não era, visto em verdadeira grandeza, mais que uma forma sapiente da boa fé na moral dominante, um novo meio de exprimir esta moral, portanto um estado de fato nos limites de uma moralidade determinada ou ainda, em última análise, uma espécie de negação, que uma tal moral pudesse ser concebida como problema; e em cada caso o contrário de um desânimo, de uma análise, de uma contestação, de uma vivissecção desta boa fé. Perceba-se com qual ingenuidade quase digna de admiração o próprio Schopenhauer   nos apresenta o próprio dever e tirem-se conclusões sobre os métodos científicos de uma "ciência" em que os mais recentes mestres falam ainda a linguagem das crianças e das moçoilas: "o princípio"; diz ele (pág. 137 dos Problemas Fundamentais da Ética) — "o princípio acerca do qual todas as éticas estão de acordo, verdadeiramente, é: neminem laede, immo omnes, quantum potes juva".

"Esta é a tese que todos os moralistas se afariam em demonstrar. . . o verdadeiro fundamento da ética, que, como a pedra filosofal, procura-se há séculos."

A dificuldade em demonstrar essa tese é certamente grande — como se sabe, nem mesmo Schopenhauer chegou a consegui-lo e que percebeu profunda e intimamente quanto é absurdamente falsa e sentimental uma tal tese num mundo que tem como essência a vontade de dominar, a vontade de potência — e é bom lembrar que Schopenhauer ainda que fosse pessimista, era antes de mais nada: flautista… Tocava todos os [99] dias, depois do jantar, se consultarmos a seu respeito o seu biógrafo. E então perguntamo-nos: um pessimista, um renegador de Deus e do mundo, que se detém frente à moral e toca flauta à moral laede neminem é, tal pessoa, pessimista? (N-ABM §186)

Kaufmann

The moral sentiment in Europe today is as refined, old, diverse, irritable, and subtle, as the “science of morals” that accompanies it is still young, raw, clumsy, and butterfingered—an attractive contrast that occasionally even becomes visible and incarnate in the person   of a moralist. Even the term "science of morals” is much too arrogant considering what it designates, and offends good taste— Which always prefers more modest terms.

One should own up in all strictness to what is still necessary here for a long time to come, to what alone is justified so far: to collect material, to conceptualize and arrange a vast realm of subtle feelings of value and differences of value which are alive, grow, beget, and perish—and perhaps attempts to present vividly some of the more frequent and recurring forms of such living crystallizations—all to prepare a typology of morals.

To be sure, so far one has not   been so modest. With a stiff seriousness that inspires laughter, all our philosophers demanded something far more exalted, presumptuous, and solemn from themselves as soon as they approached the study of morality: they wanted to supply a rational foundation for morality—and every philosopher so far has believed that he has provided such a foundation. Morality itself, however, was accepted as “given.” How remote from their clumsy pride was that task which they considered insignificant and left in dust and must—the task of description— although the subtlest fingers and senses can scarcely be subtle enough for it.

Just because our moral philosophers knew the facts of morality only very approximately in arbitrary extracts or in accidental epitomes—for example, as the morality of their environment, their class, their church, the spirit of their time, their climate and part of the world—just because they were poorly informed and not even very curious about different peoples, times, and past ages—they [98] never laid eyes on the real problems of morality; for these emerge only when we compare many moralities. In all “science of morals” so far one thing was lacking, strange as it may sound: the problem of morality itself; what was lacking was any suspicion that there was something problematic here. What the philosophers called “a rational foundation for morality” and tried to supply was, seen in the right light, merely a scholarly variation of the common faith in the prevalent morality; a new means of expression for this faith; and thus just another fact within a particular morality; indeed, in the last   analysis a kind of denial that this morality might ever be considered problematic—certainly the very opposite of an examination, analysis, questioning, and vivisection of this very faith.

Listen, for example, with what almost venerable innocence Schopenhauer still described his task, and then draw your conclusions about the scientific standing of a “science” whose ultimate masters still talk like children and little old women: “The principle,” he says (p. 136 of Grundprobleme der Moral), “the fundamental [99] proposition on whose contents all moral philosophers are really [1] agreed—neminem laede, immo omnes, quantum potes, juva [2]— that is realty the proposition for which all moralists endeavor to find the rational foundation … the real basis of ethics for which one has been looking for thousands of years as for the philosopher’s stone.”

The difficulty of providing a rational foundation for the principle cited may indeed be great—as is well known, Schopenhauer did not succeed either—and whoever has once felt deeply how insipidly false and sentimental this principle is in a world whose essence is will to power, may allow himself to be reminded that Schopenhauer, though a pessimist, really—played the flute. Every day, after dinner: one should read his biography on that. And incidentally: a pessimist, one who denies God and the world but comes to a stop before morality—who affirms morality and plays the flute—the laede neminem morality—what? is that really—a pessimist?

Wotling

Le sentiment moral est aujourd’hui en Europe aussi subtil, tardif, multiple, excitable, raffiné, que la « science de la morale » qui lui est liée est encore jeune, verte, balourde, dénuée de doigté : – opposition attirante qui parfois se fait jour et s’incarne dans la personne d’un moraliste. Eu égard à ce qu’elle désigne, la formule de « science de la morale » est déjà bien trop arrogante et heurte le bon goût : lequel a toujours coutume d’être un goût qui privilégie les formules plus modestes. On devrait s’avouer en toute rigueur ce qui est ici nécessaire, pour bien longtemps encore, ce qui provisoirement est seul légitime : à savoir rassembler les matériaux, saisir et organiser conceptuellement un formidable royaume de délicats sentiments de valeur et différences de valeur qui vivent, croissent, multiplient et périssent, – et peut-être tenter de mettre en évidence les configurations récurrentes les plus fréquentes de cette cristallisation vivante, – pour préparer une typologie de la morale. C’est un fait : jusqu’à présent, personne n’a été aussi modeste. Les philosophes, tous autant qu’ils sont, ont exigé d’eux-mêmes, avec un sérieux empesé qui prête à rire, quelque chose de bien plus élevé, bien plus présomptueux, bien plus solennel, dès qu’ils traitèrent de la morale comme science : ils voulurent fonder la morale, – et tout philosophe jusqu’à présent a cru avoir fondé la morale ; mais la morale elle-même était tenue pour « donnée ». Qu’elle était loin de leur orgueil balourd, la tâche de description, jugée insignifiante et abandonnée à la poussière et à la pourriture, alors que les mains et les sens les plus subtils seraient tout juste assez subtils pour l’entreprendre ! C’est précisément parce que les philosophes de la morale n’avaient qu’une connaissance grossière des facta moraux, sous forme d’extraits arbitraires et de résumés fortuits, par exemple à travers la moralité de leur entourage, de leur classe, de leur église, de l’esprit de leur époque, de leur climat et de leur petit coin de terre, – précisément parce qu’ils étaient mal informés au sujet des peuples, des époques, des temps passés, et même peu curieux de les connaître, qu’ils ne discernèrent absolument pas les véritables problèmes de la morale : – eux qui ne se font jour qu’à la faveur de la comparaison de nombreuses morales. Si singulier que cela paraisse, le problème de la morale lui-même est demeuré absent de toute « science de la morale » élaborée jusqu’à présent : le soupçon qu’il y ait là quelque chose de problématique faisait défaut. Ce que les philosophes nommèrent « fonder la morale » et exigèrent d’eux-mêmes ne fut, tout bien considéré, qu’une forme savante de la disposition à croire à la morale dominante, un nouveau mode d’expression de celle-ci, donc un état de fait existant lui-même au sein   d’une moralité déterminée, voire, en dernière analyse, une espèce de négation du fait que l’on puisse légitimement saisir cette morale comme problème : – et en tout cas le contraire d’un examen, d’une analyse, d’une mise en doute, d’une vivisection de cette croyance précise. Qu’on prête l’oreille, par exemple, à l’innocence presque vénérable avec laquellle Schopenhauer se fixe encore sa propre tâche, et qu’on en tire ses conclusions quant à la scientificité d’une « science » dont les maîtres ultimes parlent encore comme les enfants et les petites vieilles : – « le principe, dit-il (p. 136 des Problèmes fondamentaux de la morale), la proposition fondamentale sur le contenu de laquelle tous les penseurs de l’éthique sont véritablement d’accord ; neminem laede, immo omnes, quantum potes, juva – voilà véritablement la proposition que tous les théoriciens des mœurs travaillent de toutes leurs forces à fonder… le véritable fondement de l’éthique que l’on cherche depuis des millénaires comme la pierre philosophale ». – Il est bien possible en effet que la difficulté de fonder la proposition évoquée ne soit pas mince – il est de notoriété publique que Schopenhauer non plus n’y est pas parvenu – et qui a une fois ressenti de manière radicale à quel point cette proposition est fausse à force de platitude et sentimentale dans un monde dont l’essence est volonté de puissance –, admettra volontiers qu’on lui rappelle que Schopenhauer, tout pessimiste qu’il était, jouait véritablement – de la flûte… Tous les jours, en sortant de table : qu’on lise ses biographes sur ce point. Et pour le demander en passant : un pessimiste, niant Dieu et le monde, qui s’arrête face à la morale, – qui dit oui à la morale et lui joue un air de flûte, à la morale du laede neminem : comment ? est-ce véritablement – un pessimiste ?


Ver online : BEYOND GOOD AND EVIL


[1"Really" and "real": eigentlich. The emphasis is Nietzsche’s, not Schopenhauer’s.

[2“Hurt no one; rather, help all as much as you can.”