Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Merleau-Ponty (2003:105-107) – a questão comum do an sit

domingo 17 de maio de 2020

Gianotti & Oliveira

Nossas perguntas rotineiras — "onde estou?”, “que horas são?” — constituem a falta e a ausência provisória de um fato ou de um enunciado positivo, buracos num tecido de coisas ou de indicadores, de cuja continuidade [105] estamos certos, já que há um tempo, um espaço, tratando-se apenas de saber em que ponto desse espaço e desse tempo estamos. À primeira vista, a filosofia apenas generaliza esse gênero de questões. Quando pergunta se o espaço, o tempo, o movimento, o mundo existem, o campo da questão é mais amplo mas trata-se ainda, como a questão natural, de uma semi-questão, incluída numa fé fundamental: existe alguma coisa, e cabe somente saber se é verdadeiramente este espaço, este tempo, este movimento, este mundo que acreditamos ver e sentir. A destruição das crenças, o assassínio simbólico dos outros e do mundo, a ruptura da visão e do visível, do pensamento e do ser não nos estabelecem, como o pretendem, no negativo; quando se tirou tudo isso, instalamo-nos no que resta, sensações, opiniões; e o que resta não é nada, nem de outro gênero diferente do que se suprimiu: são fragmentos mutilados da vaga omnitudo realitatis contra quem a dúvida se exercia e, sob outros nomes, eles a regeneram — aparência, sonho, Psyché  , representação. É em nome e em proveito dessas realidades flutuantes que se põe em dúvida a realidade sólida. Não se sai do algo e a dúvida como destruição das certezas não é dúvida. Não se dá de modo diferente quando a dúvida se faz metódica, quando não é mais fluidificação de certezas mas retirada deliberada, recusa de juntar-se a elas. Desta vez não mais se contesta a existência de evidências e que, neste instante, sejam irresistíveis; e se são suspensas é somente porque são nossas, tomadas no fluxo de nossa vida, e porque, para conservá-las por mais tempo, seria preciso confiar no obscuro aparelho temporal   da nossa fábrica interna, que talvez não nos dê mais do que ilusões coerentes. Esta natureza enganadora, este algo opaco que nos encerraria nas nossas clarezas, é apenas um fantasma do nosso rigorismo, um talvez. Se esse possível basta para manter em respeito nossas evidências é porque lhe damos peso decidindo nada supor tacitamente. Se em seu nome fingimos anular luzes que não poderíamos anular realmente, reputamos falso o que é apenas condicional, transformamos uma separação eventual entre o evidente e o verdadeiro numa distância infinita e uma dúvida especulativa no equivalente de uma condenação é que, como seres passivos, sentimo-nos presos numa massa do Ser que nos escapa ou até mesmo manobrados por um agente maligno, e a essa adversidade opomos o voto de uma evidência absoluta e liberada de toda facticidade. Assim, a dúvida metódica, a que é conduzida em nossa própria zona da vontade, refere-se ao Ser, já que resiste a uma evidência de fato, recalca uma verdade involuntária de que a própria dúvida confessa a existência e de que se inspira o próprio projeto [106] de uma evidência absoluta. Se permanece dúvida é talvez porque se renovam os equívocos do ceticismo, omitindo os empréstimos que faz ao ser, ou evocando uma falsidade do próprio Ser, um Grande Enganador, um Ser que ativamente se esconde e põe diante de si o anteparo de nosso pensamento e de suas evidências como se esse ser elusivo nada fosse. A interrogação filosófica não iria, pois, ao término dela mesma, se se limitasse a generalizar a dúvida, a questão comum do an sit, a estendê-las ao mundo e ao Ser; se apenas se definisse como dúvida, não-saber e não-crença. Não é tão simples. Estendendo-se a tudo, a questão comum muda de sentido. Para separar-se de todo o ser a filosofia elege certos seres — as "sensações”, a “representação”, o "pensamento”, a “consciência” ou até mesmo um ser enganador. Precisamente para cumprir seu voto de radicalismo, ser-lhe-ia preciso tomar por tema este vínculo umbilical que sempre a liga ao Ser, este horizonte inalienável, pelo qual ela já está circunscrita, essa iniciação prévia à qual tenta em vão regressar, não mais negar, nem mesmo duvidar, apenas recuar para ver o mundo e o Ser, ou ainda colocá-los entre aspas como fazemos com os enunciados de um outro, deixá-los falar, pôr-se à escuta…

Original

Nos questions ordinaires, – « où suis-je ? », « quelle heure est-il ? » –, sont le manque et l’absence provisoire d’un fait ou d’un énoncé positif, trous dans un tissu de choses ou d’indicatifs dont nous sommes sûrs qu’il est continu, puisqu’il y a un temps, un espace, et qu’il ne s’agit que de savoir à quel point de cet espace et de ce temps nous en sommes. La philosophie  , à première vue, généralise seulement ce genre de questions. Quand elle demande si l’espace, si le temps, si le mouvement, si le monde existent, le champ de la question est plus ample, mais ce n’est encore, comme la question naturelle, qu’une demi-question, incluse dans une foi fondamentale : il y a quelque chose, et il s’agit seu lement de savoir si c’est vraiment cet espace, ce temps, ce mouvement, ce monde que nous croyons voir ou sentir. La destruction des croyances, le meurtre symbolique des autres et du monde, la coupure de la vision et du visible, de la pensée et de l’être ne nous établissent pas, comme ils le prétendent, dans le négatif ; quand on a ôté tout cela, on s’installe dans ce qui reste, sensations, opinions ; et ce qui reste n’est pas rien, ni d’une autre sorte que ce qu’on a retranché : ce sont des fragments mutilés de la vague omnitudo realitatis contre laquelle le doute s’exerçait, et ils la régénèrent sous d’autres noms, – apparence, rêve, Psyché, représentation. C’est au nom et au profit de ces réalités flottantes que la réalité solide est mise en doute. On ne sort pas du quelque chose, et le doute comme destruction des certitudes n’est pas doute. Il n’en va pas autrement quand le doute se fait méthodique, quand il n’est plus fluidification des certitudes, mais retrait délibéré, refus de faire bloc avec elles. Cette fois, on ne conteste plus qu’il y ait des évidences et que, pour l’instant, elles soient irrésistibles ; et, si on les met en suspens, c’est pour ce seul motif qu’elles sont nôtres, prises dans le flux de notre vie, et que, pour les garder plus d’un instant, il nous faudrait faire confiance à l’obscur appareil temporel de notre fabrique interne, qui ne nous donne peut-être que des illusions cohérentes. Cette nature trompeuse, ce quelque chose opaque qui nous enfermerait dans nos clartés, ce n’est qu’un fantôme de notre rigorisme, un peut-être. Si ce possible suffit à tenir en respect nos évidences, c’est que nous lui donnons poids par la décision de ne rien présupposer tacitement. Si, en son nom, nous feignons d’annuler des lumières que nous ne pourrions annuler réellement, réputons faux ce qui n’est que conditionnel, faisons d’un écart éventuel entre l’évident et le vrai une distance infinie, et d’un doute spéculatif l’équivalent d’une condamnation, c’est que, comme êtres passifs, nous nous sentons pris dans une masse de l’Être qui nous échappe, ou même manœuvrés par un agent malin, et opposons à cette adversité le vœu d’une évidence absolue et délivrée de toute facticité. Ainsi le doute méthodique, celui qui est conduit dans la zone volontaire de nous-mêmes, se réfère à l’Être, puisqu’il résiste à une évidence de fait, refoule une vérité involontaire dont il avoue qu’elle est déjà là et dont s’inspire le projet même d’une évidence qui soit absolue. S’il reste doute, ce ne peut être qu’en renouvelant les équivoques du scepticisme, en omettant de mentionner les emprunts qu’il fait à l’Être ou en évoquant une fausseté de l’Être lui-même, un Grand Trompeur, un Être qui, activement, se cache et pousse devant lui l’écran de notre pensée et de ses évidences, comme si cet être élusif n’était rien. L’interrogation philosophique n’irait donc pas au bout d’elle-même si elle se bornait à généraliser le doute, la question commune du an sit, à les étendre au monde ou à l’Être, et se définissait comme doute, non-savoir ou non-croyance. Ce n’est pas si simple. En s’étendant à tout, la question commune change de sens. Pour se retrancher de tout être, la philosophie élit certains êtres, – les « sensations », la « représentation », la « pensée », la « conscience », ou même un être trompeur. Justement pour accomplir son vœu de radicalisme, il lui faudrait prendre pour thème ce lien ombilical qui la relie toujours à l’Être, cet horizon   inaliénable dont elle est d’ores et déjà circonvenue, cette initiation préalable sur laquelle elle tente vainement de revenir, ne plus nier, ne plus douter même, reculer seulement pour voir le monde et l’Être, ou encore les mettre entre guillemets comme on fait des propos d’un autre, les laisser parler, se mettre à l’écoute…


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