Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Kierkegaard (CA): instante

sábado 27 de junho de 2020

O instante designa o presente como um tal que não tem pretérito nem futuro; pois é aí que reside justamente, aliás, a imperfeição da vida sensual. O eterno significa igualmente o presente, que não possui nenhum passado e nenhum futuro, e esta é a perfeição do eterno.

Se se quiser usar agora o instante para com ele definir o tempo, e fazer o instante designar a exclusão puramente abstrata do passado e do futuro e, como tal, o presente, então o instante não será exatamente o presente, pois o intermediário entre o passado e o futuro, pensado de maneira puramente abstrata, simplesmente não é nada. Mas assim se vê que o instante não constitui uma mera determinação do tempo, dado que a determinação do tempo é apenas que ele passa (e se vai), razão por que o tempo – se há de ser definido por qualquer das determinações que se manifestam no tempo – é o tempo passado. Se, ao invés, o tempo e a eternidade se tocarem um no outro, então terá de ser no tempo, e agora chegamos ao instante.

“O instante” é (na língua dinamarquesa) uma expressão figurativa, e até aí não é tão bom ter de lidar com ela. Contudo, é uma bela palavra para examinar. Nada é tão rápido quanto uma olhadela e, contudo, ela é comensurável com o conteúdo do eterno. Assim, quando Ingeborg mira o oceano à procura de Frithiof, temos uma imagem para o que esta expressão figurativa significa. Um arroubo de seu sentimento, um suspiro, uma palavra, por serem sonoros, já teriam neles, como som, antes a determinação do tempo, e seriam mais presentes como algo que se esvai, e não têm tanto a presença do eterno em si, como, aliás, também por isso, um suspiro, uma palavra, etc., têm poder para aliviar a alma de um peso que acabrunha, justamente porque este peso acabrunhante, apenas expresso, já começa a tornar-se algo de passado. Uma olhada, por isso, constitui uma designação do tempo, porém, bem entendido, do tempo nesse conflito fatal [1] em que é tocado pela eternidade [2]. Aquilo que denominamos o instante, Platão   chama τὸ ὲξαίφνης [o súbito]. Qualquer que seja sua explicação etimológica, sempre estará relacionada afinal com a categoria do invisível; porque o tempo e a eternidade eram entendidos de modo igualmente abstrato, dado que se carecia do conceito de temporalidade, e o motivo era que faltava o conceito de espírito. Em latim, ele se chama momentum, que pela derivação (de movere) expressa apenas o mero desaparecer [3].

Entendido dessa forma, o instante não é, propriamente, um átomo do tempo, mas um átomo da eternidade. É o primeiro reflexo da eternidade no tempo, sua primeira tentativa de, poderíamos dizer, fazer parar o tempo. Por isso o mundo grego não compreendia o instante, pois, ainda que chegasse a entender o átomo de eternidade, não chegava a entender que este equivale ao instante; não o definia como avançando, mas como o que recuava, porque, para o mundo grego, o átomo de eternidade era essencialmente a eternidade, e assim não se fazia verdadeiramente justiça nem ao tempo nem à eternidade.

A síntese do temporal   e do eterno não é uma outra síntese, mas é a expressão daquela primeira síntese, segundo a qual o homem é uma síntese de alma e corpo, que é sustentada pelo espírito. Tão logo o espírito é posto, dá-se o instante. Por isso, pode-se dizer, com justiça, de um homem, como uma censura, que ele vive apenas no instante, dado que isso só ocorre por uma abstração arbitrária. A natureza não se situa no instante.

[Excerto de KIERKEGAARD  , Søren. O conceito de angústia : uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Tr. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2017 (epub)]


Ver online : TEMPO E ANGÚSTIA


[1skjebnesvangre, prenhe de destino [N.T.].

[2É curioso que a arte grega culmine na plástica, que justamente carece do olhar. A razão fundamental disso está, entretanto, em que os gregos não entendiam o conceito de espírito na sua compreensão mais profunda e, por isso, muito menos, no sentido mais profundo, a sensualidade e a temporalidade. Que tremendo contraste com o fato de que no cristianismo se represente figurativamente Deus como um olho.

[3No Novo Testamento encontra-se uma perífrase poética do instante. Paulo afirma que o mundo perecerá εν ατομω και εν ριπη οφθαλμου – “num instante, num piscar de olhos” (1Cor 15,52). Com isso ele exprime também que o instante é comensurável com a eternidade, pois, com efeito, o instante em que o mundo acaba exprime, no mesmo instante, a eternidade. Permitam-me tornar visível o que quero dizer, e perdoem-me caso encontrem na comparação qualquer coisa de chocante. Aqui em Copenhague estiveram certa vez dois atores, que talvez nem suspeitassem que de sua atuação também se poderia extrair algum significado mais profundo. Eles entraram em cena, posicionaram-se um diante do outro e aí começaram a representar por mímica um ou outro conflito passional. Quando então a ação mimética chegava ao máximo e os olhos dos espectadores acompanhavam a história, na expectativa do que viria a seguir, interromperam de súbito e ficaram imóveis, petrificados na expressão mímica instantânea. O efeito disso pode ser de máxima comicidade, pois o instante se tornava, por uma casualidade, comensurável ao eterno. O efeito da plasticidade baseia-se em que a expressão eterna expressa-se justamente de um modo eterno; a comicidade, pelo contrário, se baseava no eternizar-se uma expressão casual.