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Jaspers: § 2. A Questão da Essência do Homem (d)

quarta-feira 23 de março de 2022

Psicopatologia Geral
Psicologia Compreensiva, Explicativa e Fenomenologia
Karl Jaspers  
Trad. Dr. Samuel Penna Reis
Atheneu. 1979

§ 2. A Questão da Essência do Homem

d) A incompletabilidade do homem.

Nem o esclarecimento filosófico leva a qualquer esquema unívoco do homem. Pelo contrário, na interiorização transcendente do abrangente, ele se mostra sempre através de várias origens; daí permanecer sua aspiração à singularidade que ele não é, nem possui. É nisso que reside o incompletamento ou a fragmentariedade do homem, esta impondo complementação a partir de outra origem que fundamente   e inteire, em oposição a todas as origens abrangentes do indivíduo. É o que não se consegue, temporalmente, senão pelas desilusões antecipativas, porque a imposição só pode realizar-se no tempo mediante uma fé que não possui, não vê, mas confia, no contexto da tradição religiosa dos entes que o indivíduo ama e venera.

Pelas modalidades do abrangente — em cada uma delas, a possibilidade ilimitada — e pela multiplicidade respectiva, compreendemos a abertura do existir humano, que é, ao mesmo tempo, sua incompletabilidade. Não é no esquema objetivo de sua essência, e sim nesta sua possibilidade infinita, em suas lutas inevitáveis, em suas insolubilidades, que vemos a essência do homem.

1. O homem como possibilidade aberta. O homem é "o animal não definido" (Nietzsche  ), o que deve significar: Os animais realizam sua vida em trilhas pré-designadas, uma geração tal qual a outra, bem equipada na especialização de sua forma vital peculiar. Mas o homem não é forçado a uma trilha definitiva fatal; é sim, plástico e capaz de transformações infinitas. Ao passo que os animais vivem seguros em sua existência, confiantemente levados por seus instintos onipotentes, o homem porta em si uma insegurança. Porque nenhuma modalidade vital absolutamente definitiva o predetermina, ele tem oportunidades e riscos, engana-se, são poucos seus instintos, é, por assim dizer, "doente", deixado’ a uma opção que tem de fazer livremente.

É como se todos os animais, desde tempos remotos e mediante rendimentos especializados culminantes, tivessem entrado num beco do qual não mais pudessem sair, por assim dizer, enquanto o homem teria conservado a possibilidade total. Daí dizer-se a seu respeito que é, basicamente, tudo (Aristóteles   escreve que a alma, a bem dizer, é tudo). Nele sempre ainda pode atuar o fundamento mais distante de que proveio. Se, por força dessa plasticidade, é incompleto, nem por isso sua imperfeição deixa de conter algum futuro. O homem ainda é capaz, pelo seu fundamento, de alguma coisa que não sabe; pode, ludicamente, antecipar e iluminar o caminho a seguir com objetivos verdadeiros, fantásticos e utópicos.

Capaz de tudo abranger em sua possibilidade, não se determina em sua essência. Não é possível reduzi-lo a um denominador, visto não obedecer a qualquer especialização. Não se pode subordiná-lo a uma espécie, porque, a rigor, espécie alguma se lhe assemelha.

Sempre que se determina, deixa de ser, determinado que é, o homem inteiro. Em tudo quanto se determina, o homem coloca-se em situação tal que é como se fizesse certa tentativa de que pudesse retroceder, pelo fato de subsistir a possibilidade na base de sua essência; não no indivíduo particular, é certo, naquele que se identifica com sua realização, quando possui conteúdo, mas no indivíduo como ente que se sucede através das gerações.

2. O homem na luta consigo mesmo. O fato de o homem, não ser um ente definido, que realiza univocamente seus círculos predeterminados, mostra-se na maneira por que está em luta consigo mesmo. Ele não é a mera síntese necessária de contrastes, conforme esta se realiza em tudo quanto vive; não é, apenas, o movimento sintético-dialético, necessário e, como tal, compreensível, da mente; é, sim, luta radical a partir de suas origens mesmas. Por conseguinte, hão de ver-se configuramentos de sua luta numa série de passos que correspondem a toda vida, chegando, por fim, à humanidade propriamente dita:

aa) O homem, como vida, está nas tensões entre constituição e perimundo, substância e forma, interioridade e exterioridade.

bb) O homem, na sociedade, está nas tensões entre vontade individual e vontade coletiva; esta última, na tensão entre vontade humana e vontade social.

cc) O homem, como pensamento, está na tensão entre sujeito e objeto, si-mesmo e coisa, bem como nas antinomias inevitáveis em que a razão falha.

dd) O homem, como espírito ou mente, está no movimento construtivo que se faz através de contrastes. A contradição é o aguilhão que impulsiona seu movimento criativo; contradição em todos os modos da vivência, da experiência e do pensamento. A negatividade impregna sua manifestação mental, sem ser, no entanto, destruição, mas forma de produção pelas superações e sínteses do devenir em evolução.

ee) Como vida, pensamento e espírito, o homem planeja, ordena com consciência, disciplina-se. Sua vontade permite-lhe fazer de seu perimundo e de si mesmo o que quer; vontade que, em luta permanente com a resistência, destrói quando, vontade formal  , mecaniza e apaga a vida mesma das origens. Estando a serviço dos conteúdos abrangentes, o homem transforma-se, grandeza da vontade, em manifestação do indivíduo que se produz na luta.

ff) Nem no mundo, nem para o indivíduo existe a síntese de todas as possibilidades. Antes, pelo contrário, toda realização genuína prende-se, de um modo ou doutro, a uma decisão. Medida pela seriedade de semelhante decisão — que, optando, também exclui e que faz do homem, ao decidir, alguma coisa incondicionada — qualquer outra luta é tal qual mero primeiro plano, como se fosse jogo vital na rica plenitude de seus movimentos. Só quando o homem domina, pela decisão, uma resolução que se incopora à sua essência é que é — existencialmente — homem.

gg) O auto-esclarecimento da decisão pode exprimir-se, apenas, pela consciência em geral e pela mente, nas antíteses do pensamento. Mas a via da decisão não está na opção entre duas possibilidades iguais que se têm à disposição; e, sim, na opção com o aspecto de escolha já feita; as antíteses mais não são do que meio de interpretação. Entretanto, a via da decisão não é, apenas, síntese que equilibre possibilidades; não é conciliação no todo, mas conquista na luta contra alguma coisa diferente. É a historicidade concreta, que haja fixado base e objetivo antes e depois de quaisquer contrastes, contrastes nos quais ela, interpretando-se, tenha separado o existir, durante um momento.

Estas antíteses de sentido existencial são aquelas da fé e da descrença, do abandono e da obstinação, da lei do dia e da paixão da noite, da vontade de viver e da ânsia de morrer.

Na decisão sempre há, absoluto, o contraste entre bom e mau, verdadeiro e falso. Não se questionam, aqui, no que diz respeito à temporalidade, estes contrastes (porque exprimem a incondicionalidade). Entretanto, não os concebemos como o absolutamente derradeiro no próprio existir; mas, apenas, como o derradeiro para o homem na existência temporal  ; o homem pode, todavia, sentir os seus limites e, interiormente, tender para aquele ponto em que cessa tudo quanto o obriga à decisão incondicionada no fenômeno temporal; isto é, tender para esse símbolo e essa garantia do existir eterno no tempo.

3. A finitude do homem e seu auto-esclarecimento.

Em parte alguma o homem está por si só, mas dependendo de alguma coisa outra. Como existência, depende de seu perimundo e de sua procedência. Quando conhece, precisa da visão que deve ter-lhe sido dada (o mero pensar permanece vazio). Quando realiza seu existir, está preso a tempo limitado, a força limitada, a resistências; tem de apreender a finitude para tornar-se real, tem, por esta forma, de especializar-se, nunca pode completar-se. Tem de apartar-se da vida, depois de criar os pressupostos que lhe são necessários para sequer poder começar. Sendo si-mesmo, não se cria a si próprio: tem de ser presenteado, sem saber de onde. Não é livre por si mesmo, mas é mediante a liberdade que sabe da transcendência pela qual é livre no mundo. O homem só pode produzir-se apreendendo alguma coisa diferente; só pode conhecer-se mentando e conhecendo alguma outra coisa; só pode confiar em si confiando nalguma outra coisa, a transcendência; daí por que o tipo de homem se determina pelo que ele sabe, pelo que crê. Mas o homem não é só finito: ele sabe de sua finitude. Não se basta a si mesmo como ente finito. Quanto mais claramente sabe, quanto mais profundamente vivência, experimenta a finitude e, ao mesmo tempo, a falha radical de toda forma de sua existência e sua atuação. Igualmente não lhe bastam, como tais, todas as outras coisas finitas, que, em suma, se chamam mundo. Todo existir mundano, por mais fundamente que o apreenda, por mais intensamente que nele participe, o deixa, entretanto, insatisfeito.

Todavia, o fato de o homem sentir em toda parte essa finitude e de ela não lhe bastar, indica uma possibilidade oculta em sua essência: deve haver uma raiz de seu existir outra que não seja a raiz apenas de sua finitude. Se não tivesse pré-ciência daquilo que não é possível saber, faltar-lhe-ia o anseio da procura. O homem procura o próprio existir, a infinitude, a alteridade. Só pode satisfazê-lo o fato de que isso existe.

Já o existir humano pode dar-lhe esta satisfação, desde que uma infinitude se manifeste no fenômeno finito. O homem conhece a satisfação profunda da experiência mundana, do trato com a natureza; sabe ler o seu código, satisfaz-se penetrando no conhecimento do cosmos, encontrando o ser-assim. O mundo existe sem o eu, embora ele seja sempre, na medida em que sei, fenômeno que se apresenta entre as condições do existir para a consciência.

Na direção transcendente da certeza existencial, vale para ele, de uma forma ou de outra, a frase: Deus existe. A história da religião equivale à história das ideias pelas quais o homem procurou atingir a divindade; e nada mais nos pode ensinar senão estas ideias como tais. O próprio homem sabe, no entanto, que não cria com suas ideias, mas que subsiste aquela primeira afirmativa: Deus existe. Em suas falhas, foi o que bastou ao homem, como no caso de Jeremias. A finitude humana aquieta-se com a fé na existência de Deus.

Perder-se-ia, entretanto, a consciência de si mesmo na dialética errada que em si se conclua: o homem é Deus criador, criado por Deus; esta afirmativa permanece no círculo da imanência para a qual é válida a frase errada: o homem é tudo.

4. O infinito no finito e a falha de qualquer finitude do homem. A consciência de sua finitude impele o homem a romper através de tudo quanto é finito. Mas cada passo que dá é condicionado pela finitude; é só na medida em que busca a finitude e a apreende que se torna real. No entanto, sendo falsa para ele, ao mesmo tempo, toda finitude, não é dado fixá-la, mas tem de ultrapassá-la. Não há dúvida de que pode retroceder de qualquer finitude particular — este é o sinal formal de sua infinitude; mas precisa sempre permanecer, decididamente, numa finitude (a finitude que brilha na sua decisão e que, simultânea, se torna mais do que finita) — este é o sinal de sua finitude; e só ela lhe permite realizar sua existência no tempo.

Há para ele, então, uma duplicidade: a possibilidade infinita fala no homem, partindo de seus fundamentos, protege-o contra que se perca em sua finitude; mas também lhe impõe a encarnação na finitude, encarnação que realiza sua decisão de fixar-se em identificação absoluta no tempo.

Não há unificação do homem com seu mundo, sua atuação, seu pensamento, sua finitude que não ultrapasse esta última, ao mesmo tempo. O fato de ele estar preso a uma finitude leva a que toda finitude como tal deva falhar em relação ao homem. Vamos dar exemplos:

aa) Os conteúdos de fé religiosos e filosóficos. O homem só pode compreender sua vinculação à existência mediante ideias e pensamentos; mesmo, porém, o que se lhe afigura conteúdo de suas ideias e pensamentos não é, como tal, o existir. O que ele crê tem de mostrar-se-lhe através de ideias e pensamentos; sem os quais afunda no niilismo. Todos os pensamentos e ideias precisam, no entanto, decompor-se, por sua vez, porque, como tais, o iludem.

Assim, pois, não há fé religiosa sem esteios sensoriais tangíveis, sem assertivas dogmáticas. Quem não vive com estas, considerando-as verdadeiras e reais, não crê; não basta ver em tudo símbolo e interpretação, se estes não forem uma realidade mais efetiva, se não forem a realidade mesma em oposição à realidade meramente empírica do existir no mundo. Entretanto, basta que os conteúdos sensoriais e dogmáticos se enrijeçam em realidade fixa, como se fossem a realidade empírica, para que se suprima a fé viva, porque a substitui um saber ilusório. Dar finitude aos conteúdos de fé é tão indispensável quanto é necessário elevar essas finitudes a alguma coisa que as transcende, alguma coisa pela qual elas se decompõem, finitudes que são.

É desta forma que a fé filosófica se exprime em sentenças, ou frases. Toda filosofia que se realiza acaba reduzindo a possibilidade infinita do homem à finitude das posições (pontos de vista). É por isto que, desde Platão  , a filosofia viva se exprime pela finitude de posições, finitude que as penetra e atravessa como tais, movimentando-se de maneira a superar todas as posições.

bb) Idade e morte. Como ser vivo, o homem está sujeito às fases do crescimento, maturação, envelhecimento e, bem assim, à morte. Mas esta sequência das idades pode conter no homem, do mesmo passo, o processo de sua liberdade que aparece no tempo, pois que, diversamente do arredondamento em círculo, encerrando-se o qual o homem morre farto de viver, há, simultâneo, um evento que, embora ligado ao processo biológico, não termina em si, e sim pode afigurar-se progressivo, por mais avançada que seja a idade. O velho, decadente sob o ponto de vista biológico, pode ser, essencialmente, "juvenil"; pode estar ainda começando, empreendendo, esperando, escutando. Portanto, a vida do homem finito assemelha-se, pelo fundamento de sua infinitude, a um processo psíquico purificatório. Seguem-se à percepção criativa e ao esquecimento’ fácil da mocidade a cautela da maturidade que se recorda e a pureza   potencial da velhice. Todas as idades não são mais do que meio para lograr essa percepção, edificando-se umas sobre as outras, não se dissolvendo, mas se consolidando por uma unidade que a todas transcende. A percepção do existir pela realização histórica de uma psique que enfrenta riscos desde o primeiro passo na realidade, que se engana e se recupera, que sempre se faz mais clara, mais profunda, mais resoluta — esta é a vida que não se conclui com a sequência das idades, mas as atravessa, levando-as à consciência daquilo que, de fato, as abrange.

O homem acha-se com sua finitude na infinitude. Não pode subsistir duradoura no tempo coincidência alguma de uma e outra; é só o momento que constitui as sedes onde ambas se encontram, a fim de saltar, novamente e sem demora, para o fenômeno finito. É por isto que todo procedimento e pensamento humano nunca deixa de estar a serviço de alguma coisa que não pode apreender, alguma coisa sobre a qual atua e pela qual é absorvido e subjugado, quer se chame destino, quer providência.

É arrogância da filosofia querer penetrar essa alteridade, querer buscar uma via pela qual o homem consiga, por assim dizer, pegá-la, primeiro conhecendo-a e, depois, planejando e agindo.

Pela filosofia, o homem pode ver os estigmas do existir mundano e de si mesmo, a inconclusividade e incompletabilidade; não pode, entretanto, transformar em finitude aquilo que para ele é sempre infinitude, nela permanecendo, aceitando a finitude e falhando porque existe nessa situação.


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