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Gadamer (VM): teoria hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

É interessante ver que esta frase se encontra num contexto hermenêutico, como aliás, nesse escrito erudito, a sapientia Salomonis representa o último objeto e a mais elevada instância do conhecimento. Trata-se do capítulo sobre a utilização (usus) do sensus communis  . Aqui Oetinger volta-se contra a teoria hermenêutica dos wolffianos. Mais importante do que todas as regras hermenêuticas, é que seja um sensu plenus. Uma tal tese é, naturalmente, um extremo espiritualista, possui, no entanto, seu fundamento lógico no conceito da vita  , ou seja, do sensus communis. Seu sentido hermenêutico pode ser ilustrado através da frase: "As ideias que se encontram nas Escrituras Sagradas e nas obras de Deus são tanto mais frutuosos e puros quanto o individual se reconhece no todo e o todo no individual". O que se gostava de denominar de intuition, nos séculos XIX e XX, é aqui reconduzido ao seu fundamento metafísico, isto é, à estrutura do ser vivo e orgânico, que em cada indivíduo quer ser o todo: cyclus vitae centrum suum in corde habet, quod infinita simul percipit per sensum communem (praef.). 139 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Schleiermacher  , de cuja teoria hermenêutica ainda nos ocuparemos mais tarde, está inteiramente empenhado em reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Pois arte e literatura, que nos são transmitidas do passado, nos chegam desenraizadas de seu mundo original. Nossas análises já demonstraram que isso vale para todas as artes, e portanto também para a literatura, mas que é particularmente evidente para as artes plásticas. Schleiermacher escreve que o natural e originário já não são mais, "a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua determinação original". "Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente." Ele chega, inclusive, a dizer: "Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu contexto. Ela já perde o seu significado ao ser retirada desse contexto e ao entrar em circulação é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas de queimado". 923 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Entretanto, o interesse   que motivou Schleiermacher a essa abstração metodológica não era o do historiador, mas o do teólogo. Ele queria ensinar como se deve entender o discurso e a tradição escrita, porque o interesse está numa tradição única, a Bíblia, que importa à doutrina da fé. Por isso, sua teoria hermenêutica estava muito longe de uma historiografia que pudesse servir de organon   metodológico às ciências do espírito. Sua meta era a apresentação determinada de textos, meta à qual devia servir também o comum dos nexos históricos. Esta é a barreira de Schleiermacher, frente à qual a concepção histórica do mundo não poderia ficar de pé. 1068 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Teremos de nos indagar, como pôde tornar-se compreensível aos historiadores o seu próprio trabalho, partindo de sua teoria hermenêutica. Seu tema não é um texto avulso, individual, mas a história universal. O que perfaz o historiador é o fato de que ele quer compreender a totalidade dos nexos da história da humanidade. Todo texto individual não possui, para ele, um valor próprio, mas serve-lhe meramente como fonte. Isto significa, porém, unicamente como um material mediador para o conhecimento do nexo histórico, não diverso de todas as ruínas mudas do passado. Esta é a razão por que a escola histórica não pode, na realidade, continuar edificando sobre a hermenêutica de Schleiermacher. 1074 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa discussão do conceito do clássico não pretende para si um significado autônomo, porém gostaria de levantar uma questão: Essa mediação histórica do passado com o presente, tal como a realiza o conceito do clássico, estará presente em todo o comportamento histórico como substrato operante? Enquanto que a hermenêutica romântica pretendia ver na homogeneidade da natureza humana um substrato a-histórico para a sua teoria da compreensão, desligando com isso aquele que compreende congenialmente de todo condicionamento histórico, a autocrítica da consciência histórica acaba levando a reconhecer mobilidade histórica não somente no acontecer, mas também no próprio compreender. O compreender deve ser pensado menos como uma ação da subjetividade do que como um retroceder que penetra em um acontecer da tradição, no qual é o que tem de fazer-se ouvir na teoria hermenêutica, demasiado dominada pela ideia de um procedimento, de um método. 1597 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Quando Schleiermacher e, seguindo seus passos, a ciência do século XIX vão mais além da "particularidade" dessa reconciliação da antiguidade clássica e cristianismo e concebem a tarefa da hermenêutica a partir de uma generalidade formal  , conseguem estabelecer a concordância com o ideal   de objetividade próprio das ciências da natureza, mas somente ao preço de renunciar a fazer valer a concreção da consciência histórica dentro da teoria hermenêutica. 1615 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso deve ser esclarecido primeiramente, através da distinção face à teoria hermenêutica do romantismo. Basta recordar que esta pensava a compreensão como a re-produção de uma produção originária. Foi por isso que ela pôde se colocar sob a divisa de que temos de chegar a compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendia. Já investigamos a origem dessa frase e sua ligação com a estética do gênio, mas teremos que voltar agora a isso, pelo novo significado que a mesma alcança à luz de nossas últimas considerações. 1639 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O uso que Collingwood faz da lógica de pergunta e resposta na teoria hermenêutica torna-se ambíguo em virtude desta extrapolação. Nossa compreensão da tradição escrita não se dá, como tal, nos moldes que pudéssemos simplesmente pressupor uma coincidência entre o sentido que reconhecemos nela e o sentido que o autor teve em mente nela. Tal como o suceder da história não mostra em geral a menor coincidência com as imagens subjetivas daquele que está e atua na história, também as tendências do sentido de um texto vão em geral muito mais além do que o autor podia ter em mente. Não obstante, a tarefa de compreender se orienta em primeiro lugar ao sentido do próprio texto. 2033 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides   o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos  , não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel   não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. 2485 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. 2541 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Minha resposta é a seguinte: O ponto de partida de minha teoria hermenêutica foi justamente que a obra de arte é uma provocação para nossa compreensão porque se subtrai sempre de novo às nossas interpretações e se opõe com uma resistência insuperável a ser transposta para a identidade do conceito. Isso já pode ser visto, segundo me parece, na "Crítica do juízo", de Kant  . E justamente por isso que o exemplo da arte exerce a função orientadora, que a primeira parte de Verdade e método I possui para o conjunto de meu projeto de uma hermenêutica filosófica. Isso torna-se de todo claro, se considerarmos "a verdade da arte" na multiplicidade e multivariedade infinita de seus "enunciados". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant e Fichte   privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do "eu penso", na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Com efeito, a hermenêutica se impõe onde não há entendimento com os demais e consigo próprio. Existem duas importantes formas de encobrimento pela fala, às quais a reflexão hermenêutica deve dedicar-se acima de tudo. Elas estão ligadas àquele encobrimento pela fala que determina a totalidade do comportamento com relação ao mundo. É o que pretendo abordar agora. Uma dessas formas é o tácito e silencioso emprego de preconceitos. Constitui uma estrutura fundamental de nosso dizer tanto o fato de sermos orientados por preconceitos quanto o fato desses permanecerem de tal modo encobertos que somente mediante uma ruptura do que subjaz à orientação intencional do discurso é que podem se tornar conscientes. De modo geral, essa ruptura gera uma nova experiência, que torna o preconceito insustentável. Mas os preconceitos básicos são mais poderosos. Asseguram-se, ou bem por reivindicar para si uma certeza evidente ou por se mostrarem relativamente isentos de preconceitos, confirmando assim sua validade. Conhecemos essa configuração de linguagem, em que os preconceitos se consolidam, como a repetição obstinada inerente a todo dogmatismo. Mas também a conhecemos na ciência, quando por exemplo, em nome do conhecimento sem preconceitos e de sua objetividade, transfere-se sem nenhuma modificação o método de uma ciência experimental, como a física, para outros âmbitos, como, por exemplo, o conhecimento da sociedade. E ainda mais, quando a ciência é aclamada como a mais elevada instância nos processos de decisão social, como ocorre cada vez mais em nossos dias. Em casos assim, só a reflexão hermenêutica pode demonstrar que os verdadeiros interesses ligados ao conhecimento permanecem desconhecidos. Conhecemos essa reflexão hermenêutica como crítica da ideologia, uma crítica que coloca essa ideologia sob suspeita, isto é, que revela a suposta objetividade como expressão da estabilidade das relações de poder social. A pretensão da crítica ideológica é conscientizar e dissolver os preconceitos sociais reinantes com ajuda da reflexão histórica e social. Sua intenção é desfazer o encobrimento que rege a influência incontrolada desses preconceitos. Trata-se de uma tarefa extremamente difícil, uma vez que colocar sob suspeita o óbvio provoca sempre a resistência de todas as evidências práticas. Mas é justamente aqui que se encontra a função da teoria hermenêutica, a saber, inaugurar uma disposição geral capaz de bloquear a disposição especial de hábitos e preconceitos arraigados. A crítica da ideologia constitui uma forma especial de reflexão hermenêutica que busca desfazer criticamente certo tipo de preconceitos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra consequência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das "manifestações vivas expressas por escrito", mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza   artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Na verdade, a função que a hermenêutica desempenha nos quadros da psicanálise é fundamental. E uma vez que, como dissemos acima, nem sequer os motivos inconscientes representam um limite para a teoria hermenêutica e que a psicoterapia pode ser descrita dizendo que "processos de formação interrompidos integram-se numa história completa (que pode ser narrada)" (189), a hermenêutica e o círculo da linguagem, encerrada no diálogo, têm aqui seu espaço, como penso ter aprendido sobretudo de J. Lacan  . VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

O pano de fundo da "retórica" adquire um interesse temático especial quando se busca compreender o destino epistemológico e científico das Humaniora — até sua constituição metodológica na configuração das ciências do espírito do romantismo. O que interessa realmente nesse ponto não é tanto a função desempenhada pela teoria hermenêutica nesse contexto — que é mais ou menos secundária — , mas a antiga tradição medieval e humanista da retórica. Como parte do trivium, a retórica apresentava-se como uma obviedade quase inadvertida, por impregnar tudo. Mas isso significa que a mudança imperceptível do antigo, aos poucos, foi abrindo caminho para as ciências históricas. A historia da teoria hermenêutica, forjada na defesa contra os ataques dos contra-reformistas e tridentinos ao Luteranismo — desde Lutero   até Melanchton e Flacius, passando pelo racionalismo incipiente e seu oponente, o pietismo, até o surgimento da visão histórica na era do romantismo — , não se desenvolveu sob a perspectiva da teoria do conhecimento e da teoria da ciência, mas sob a urgência das controvérsias teológicas iniciadas com a Reforma. Essa historia, na verdade, foi escrita por Wilhelm Dilthey   e Joachim Wach, sob a problemática da pré-história das modernas ciências históricas do espirito. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação "psicológica". Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de "querigma" nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde Aristóteles  , defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da "interpretação" e a "compreensão". São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse "também". Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Impõe-se aqui uma consequência fundamental, decisiva para a teoria hermenêutica. Se toda fixação por escrito se apresenta assim recortada, é claro que terá consequências para a intenção mesma da escritura. Como o escritor conhece a problemática da fixação escrita, deverá ter sempre em mente o destinatário, a fim de que este possa compreender o texto corretamente. Como o diálogo vivo persegue o acordo, pela fala e réplica, isto é, busca encontrar as palavras apropriadas e acompanhá-las de ênfases e gestos adequados que as tornem acessíveis ao interlocutor, do mesmo modo a escrita, que não permite ao leitor participar na procura das palavras, deve de algum modo abrir no próprio texto um horizonte de interpretação e compreensão que o leitor mesmo deve preencher de conteúdo. "Escrever" é mais que a mera fixação do que é dito. É verdade que a fixação escrita remete sempre ao que é dito originariamente, no entanto deve olhar também para adiante. O dito sempre se dirige ao consenso e leva em conta o outro. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

A obstinação de Löwith   em passar ao largo do sentido transcendental   das proposições de Heidegger sobre a compreensão parece-me equivocada num duplo sentido: Não percebe que Heidegger descobriu algo que se dá em toda compreensão e que não pode ser negado como tarefa. Além do mais, não percebe que a violência presente em muitas interpretações de Heidegger não procede dessa teoria da compreensão. Trata-se, antes, de um abuso produtivo dos textos, que denuncia uma falta de consciência hermenêutica. O que confere uma ressonância, além dos limites, a certas páginas do texto é evidentemente o predomínio do próprio interesse no assunto. O comportamento impaciente de Heidegger com relação a textos da tradição não é tanto consequência de sua teoria hermenêutica. Seu comportamento se parece, antes, com o dos grandes continuadores da tradição espiritual, os quais, antes da formação da consciência histórica, apropriavam-se "acriticamente" da tradição. O que provocou a crítica filológica contra Heidegger, nesse caso, foi o fato de ele adaptar-se aos padrões científicos e procurar legitimar também filológicamente sua apropriação produtiva da tradição. Ao invés de invalidar as razões de sua análise da compreensão, isso acaba confirmando-as. Faz parte do compreender, sempre, o fato de a opinião   a ser compreendida dever afirmar-se frente à violência da 83] orientação de sentido que domina o intérprete. O esforço hermenêutico se faz necessário justamente porque somos interpelados pela coisa ela mesma. Se não formos interpelados por esta, jamais compreenderemos a tradição, a não ser na total indiferença da interpretação psicológica ou histórica em relação à coisa em questão, indiferença que surge quando não compreendemos mais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO IV

No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da autoridade ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza  , sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as [421] interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão  . A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche   é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Trata-se na verdade de um antigo problema que conhecemos desde Platão. A todos os que presumiam saber, políticos, poetas e especialistas em seu ofício artesanal, Sócrates   buscou convencer de que no fundo desconheciam o "bem". Aristóteles estabeleceu a distinção estrutural subjacente aqui, diferenciando entre tekhne e phronesis  . Isso é indiscutível. Mesmo que essa distinção possa ser mal-compreendida e o apelo à "consciência" possa muitas vezes encobrir dependências ideológicas camufladas, a pretensão de reconhecer o que são a razão e a racionalidade unicamente na ciência anônima e como ciência torna-se um mal-entendido. Assim, minha própria teoria hermenêutica convenceu-me da necessidade de recuperar esse legado socrático de uma "sabedoria humana", que em comparação com a infalibilidade quase divina do saber científico se converte num não-saber. A "filosofia prática" elaborada por Aristóteles pode servir-nos de modelo. Trata-se da segunda linha de tradição que convém renovar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.