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Gadamer (VM): tarefa da hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Com o fim de dar uma ideia antecipada da questão e de relacionar as consequências sistemáticas do que desenvolvemos até aqui com a ampliação que experimenta agora o nosso questionamento, faremos bem se nos ativermos de imediato à tarefa hermenêutica que nos coloca o fenômeno da arte. Por mais que tenhamos conseguido evidenciar, que a "diferenciação estática" é uma abstração, que não está em condições de suspender a pertença da obra de arte ao seu mundo, também continua sendo inquestionável, que a arte jamais é apenas passado, mas consegue superar a distância dos tempos através da presença de seu próprio sentido. Dessa maneira, o exemplo da arte nos mostra, em ambas as direções, um caso muito qualificado da compreensão. A arte não é mero objeto da consciência histórica, no entanto a sua compreensão co-implica sempre uma mediação histórica. Como se irá determinar, face a isso, a tarefa da hermenêutica? 919 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Schleiermacher   e Hegel   poderiam representar as duas possibilidades extremas de resposta a esta pergunta. Suas respostas poderiam ser designadas com os conceitos de reconstrução e integração. Tanto para Schleiermacher como para Hegel, no começo se encontra a consciência de uma perda e alienação frente à tradição, que é a que move a reflexão hermenêutica. Entretanto, eles determinam a tarefa da hermenêutica cada um de maneira bem diferente. 921 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Embora possa se dar também o caso inverso, de que "um autor possa ter tido em mente mais do que se pôde compreender", para ele a verdadeira tarefa da hermenêutica não é a de, afinal, juntar este "mais" à compreensão, mas compreender os próprios livros na sua significação verdadeira e objetiva. Como "todos os livros dos homens e seus discursos contêm em si algo de incompreensível" — ou seja, obscuridades que procedem da falta de transparência objetiva — é necessário chegar a uma interpretação correta: "Passagens estéreis podem se nos tornar fecundas", isto é, "dar ocasião a novas ideias". 995 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Obviamente, que Schleiermacher não é o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica nisso, em tornar compreensível aquilo que é intensionado por outros em discursos e textos. A arte da hermenêutica não tem sido nunca o organon   da investigação da coisa em causa. Isso distinguiu-a desde o início do que Schleiermacher denomina dialética. Entretanto, sempre que alguém se esforça por compreender — por exemplo, a Escritura Sagrada ou os clássicos — está operando, indiretamente, uma referência à verdade que está oculta no texto e que deve chegar à luz. O que se deve compreender, na realidade, não é uma ideia, enquanto um momento vital, mas enquanto uma verdade. Este é o motivo por que a hermenêutica possui uma função auxiliar e permanece subordinada à investigação da coisa em causa. Também Schleiermacher leva isso em conta, desde o momento em que relaciona a hermenêutica por princípio — no sistema das ciências — à dialética. 1005 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este é, efetivamente, o pressuposto de Schleiermacher: que cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso, "cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, e isso estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo". Assim, ele pode dizer que se deve conceber imediatamente a individualidade do autor, "transformando a si mesmo ao mesmo tempo no outro". Ao pontualizar desse modo a compreensão no problema da individualidade, surge, para Schleiermacher a tarefa da hermenêutica como uma hermenêutica universal. Pois tanto o extremo da alteridade como o da familiaridade dão-se com a diferença relativa de toda individualidade. O "método" do compreender terá em vista tanto o comum — por comparação — como o peculiar — por adivinhação — isto é, terá de ser tanto comparativo como adivinhatório. Em ambas as perspectivas, porém, continuará sendo "arte", porque não pode ser mecanizado como se fosse mera aplicação de regras. O adivinhatório continua imprescindível. 1025 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental   do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre "sido". Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl  . A pre-sença já encontra [269] como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. 1450 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Entretanto, nos vemos obrigados a indagar se essa é uma maneira adequada de entender o movimento circular da compreensão. Teremos de nos reportar aqui ao resultado de nossa análise hermenêutica de Schleiermacher. O que este desenvolve sob o nome de interpretação subjetiva pode muito bem ser deixado de lado. Quando procuramos entender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de deslocar-se, o fazemos tendo em vista a perspectiva sob a qual o outro ganhou a sua própria opinião  . E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para reforçar os seus próprios argumentos. Isso acontece já na conversação. Mas onde se torna mais patente é na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum. 1609 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Inclusive, um precursor imediato de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, mantinha uma compreensão da tarefa da hermenêutica, decisivamente baseada no conteúdo quando apresentava como sua tarefa específica a reconstrução do [298] entendimento entre antiguidade clássica e cristianismo, entre uma antiguidade clássica verdadeira, percebida com novos olhos, e a tradição cristã. Face ao Aufklärung, isso já é algo novo, no sentido de que uma hermenêutica assim não mede e rejeita a tradição a partir do padrão da razão natural. Mas, ao mesmo tempo que procura uma concordância plena de sentido entre as duas tradições, nas quais se encontra, essa hermenêutica continua essencialmente a tarefa da hermenêutica anterior de ganhar na compreensão um entendimento sobre o conteúdo. 1613 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Quando Schleiermacher e, seguindo seus passos, a ciência do século XIX vão mais além da "particularidade" dessa reconciliação da antiguidade clássica e cristianismo e concebem a tarefa da hermenêutica a partir de uma generalidade formal  , conseguem estabelecer a concordância com o ideal   de objetividade próprio das ciências da natureza, mas somente ao preço de renunciar a fazer valer a concreção da consciência histórica dentro da teoria hermenêutica. 1615 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Desse modo, o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na continuidade ininterrupta de uma tradição. Existe realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, e nela se baseia a tarefa da hermenêutica, mas não no sentido psicológico de Schleiermacher, como o âmbito que oculta o mistério da individualidade, mas num sentido verdadeiramente hermenêutico, isto é, com a atenção posta no que foi dito: a linguagem em que nos fala a tradição, a saga que ela nos conta. Também aqui se manifesta uma tensão. Ela se desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós, entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma tradição. E esse entremeio (Zwischen  ) é o verdadeiro lugar da hermenêutica. 1633 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se [307] consciente de uma situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podemos ter um saber objetivo dela. Nós estamos nela, já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. E isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual, não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão, mas encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel, "substância", porque suporta toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. A partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do espírito hegeliana, até o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialidade que a determina. 1667 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O estado atual da discussão hermenêutica nos permite devolver a esse ponto de vista sua significação de princípio. Para começar, podemos apelar à história esquecida da hermenêutica. Antes era coisa lógica e natural que a tarefa da hermenêutica fosse a de adaptar o sentido de um texto à situação concreta a que este fala. O intérprete da vontade divina, aquele que sabe interpretar a linguagem dos oráculos, representa seu modelo originário. Mas ainda hoje em dia o trabalho do intérprete não é simplesmente reproduzir o que realmente diz o interlocutor, ao qual ele interpreta, mas ele tem de fazer valer a opinião daquele assim como lhe parece necessário, tendo em conta como é autenticamente a situação dialogai na qual somente ele se encontra como conhecedor das duas línguas que estão em comércio. 1705 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, havíamos partido do conhecimento de que também a compreensão que se exerce nas ciências do espírito é essencialmente histórica, isto é, que também nelas um texto só é compreendido, se for compreendido em cada caso de uma maneira diferente. Este era precisamente o caráter que revestia a missão da hermenêutica histórica, o refletir sobre a relação entre a identidade do assunto comum e a situação mutável, na qual se trata de entendê-lo. Tínhamos partido do fato de que a mobilidade histórica da compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica romântica, representa o verdadeiro centro de um questionamento hermenêutico adequado à consciência histórica. Nossas considerações sobre o significado da tradição na consciência histórica engatam na análise heideggeriana   da hermenêutica da facticidade, e procuram torná-la fecunda para uma hermenêutica espritual-científica. Mostramos que a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposição o estar dentro de um acontecer tradicional. A própria compreensão se mostrou como um acontecer, e filosoficamente a tarefa da hermenêutica consiste em indagar que classe de compreensão, e para que classe de ciência, é esta que é movida, por sua vez, pela própria mudança histórica. 1711 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O problema é agora saber se o comportamento do historiador foi visto e descrito suficientemente. No nosso exemplo, como se produz a mudança rumo ao histórico? Ante a lei vigente, vivemos já de antemão com a ideia natural de que seu sentido jurídico é unívoco e que a praxis   jurídica do presente se limita a seguir simplesmente o seu sentido original. Se isso fosse sempre assim não haveria razão para distinguir entre sentido jurídico e sentido histórico de uma lei. O mesmo jurista [332] nao tena outra tarefa hermenêutica senão a de comprovar o sentido original da lei e aplicá-lo como correto. Savigny, em 1840, descreveu a tarefa da hermenêutica jurídica como puramente histórica (no System   des romischen Rechts). Assim como Schleiermacher não via problema algum em que o intérprete tenha de se equiparar ao leitor originário, também Savigny ignora a tensão entre sentido jurídico originário e atual. 1785 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A esta arte de reforçar é que os diálogos platônicos devem sua surpreendente atualidade. Pois nela, o que foi dito transforma-se sempre nas possibilidades extremas de seu direito e de sua verdade, e sobrepuja toda contra-argumentação que pretenda pôr limites à vigência de seu sentido. Evidentemente, que aí não se trata de um mero deixar as coisas como estão. Pois aquele que quer conhecer não pode deixar o assunto na versão de simples opiniões, isto é, não lhe é permitido distanciar-se das opiniões que estão em questão. Aquele que fala é sempre, ele mesmo, aquele que se põe a falar até que apareça por fim a verdade daquilo de que se fala. A produtividade maiêutica do diálogo socrático, sua arte de parturiente da palavra orienta-se, obviamente, às pessoas humanas que constituem os companheiros do diálogo, porém limita-se a manter-se nas opiniões que estes exteriorizam e cuja consequência imanente e objetiva desenvolve-se no diálogo. O que vem à tona, na sua verdade, é o logos  , que não é nem meu nem teu, e que por isso sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros de diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe. A dialética, como arte de conduzir uma conversação, é ao mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva (auvopav eia ev   a Soa) isto é, a arte da formação de conceitos como elaboração da intenção comum. O que caracteriza a conversação, face à forma endurecida das proposições que urgem sua fixação escrita, é precisamente que, aqui, em perguntas e respostas, no dar e tomar, no passar ao largo de outro na conversa e no pôr-se de acordo, a língua realiza aquela comunicação de sentido cuja elaboração artística face à tradição literária, é a tarefa da hermenêutica. Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrário, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder. 2007 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A questão que fica, porém, é se assim o movimento circular da compreensão foi compreendido adequadamente. Pode-se deixar de lado aquilo que Schleiermacher desenvolveu como interpretação subjetiva. Quando procuramos compreender um texto, não nos transferimos para a estrutura espiritual do autor, mas desde que se possa falar de transferência, transferimo-nos para seu pensamento. Isso significa, porém, que procuramos deixar e fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz. Se quisermos compreender, buscaremos reforçar ainda mais seus argumentos. Na conversação e ainda mais na compreensão do escrito movemo-nos numa dimensão de sentido compreensível em si mesmo que como tal não motiva nenhum retorno à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de "compreender" — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das "formas simbólicas" (Cassirer  ), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas "fato", mas "princípio". É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho   e Tomás de Aquino  , à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um "sentido", e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel [112] expressou-o na sua teoria do "espírito objetivo". Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles   e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando "do lado de fora" os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de "experiência" a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Ora, essa determinação originária da hermenêutica ganhou mais definição quando a modernidade rompeu com a tradição, surgindo um ideal de conhecimento completamente diverso, baseado na exatidão. Mas o pressuposto fundamental para se estabelecerem as tarefas da hermenêutica, que não se queria ver corretamente e que eu procurei recuperar, foi desde sempre a apropriação de um sentido superior. Nesse sentido, nada tem de original quando em minha investigação reivindico a produtividade hermenêutica da distância temporal  , ressaltando de modo essencial a finitude e inconclusividade de todo compreender e de toda reflexão da história dos efeitos. Isso nada mais é que a liberação da verdadeira temática hermenêutica. Ela encontra sua real legitimação na experiência da história. O que nada tem a ver com a transparência de sentido. A "historiografia" precisa desviar-se constantemente da diluição humanista. A experiência da história não é a experiência do [265] sentido, do plano e da razão. E foi só sob o olhar perenizante da filosofia do saber absoluto que se pôde pretender conceber a razão na história. Assim, a experiência da história reconduz a tarefa da hermenêutica, de fato, ao seu verdadeiro lugar. Ela precisa decifrar sempre de novo os fragmentos de sentido da história, que se limitam e se quebram na escura contingência dos fatos e sobretudo no crepúsculo onde se encontra mergulhado o futuro para toda consciência presente. Também a "concepção prévia da plenitude", própria da estrutura da compreensão, chama-se enfaticamente assim porque a superioridade daquilo que deve ser compreendido não pode ser esgotada por nenhuma interpretação. Assim ficamos surpresos que em Apel, em Habermas e com uma importante modificação em Giegel, a reflexão hermenêutica precise elevar-se a uma plena transparência idealista de sentido, pela luz brilhante de uma ciência explicativa. Isso se encontra na função paradigmática que esses autores atribuem à psicanálise. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Em todo caso, não podemos deixar-nos induzir ao erro de pensar que o problema da hermenêutica só poderia ser colocado desde o ponto de vista do historicismo moderno. Isso, se admitirmos que os clássicos discutiam as opiniões de seus precursores não como historicamente diferentes, mas como se fossem contemporâneas. Mas a tarefa da hermenêutica de interpretação dos textos herdados da tradição também estava presente então. E, supondo-se que esta interpretação sempre inclui a questão da verdade, talvez ela não esteja tão longe de nossas próprias experiências com textos, como quer supor a metodologia da ciência histórico-filológica. Sabe-se que a palavra hermenêutica se reporta à tarefa do intérprete, o qual explicita e comunica algo incompreensível, por ser falado numa língua estranha — mesmo que essa seja a linguagem dos deuses feita de sinais e signos. O saber que se consagra a essa tarefa sempre foi objeto de possíveis reflexões e desenvolvimento consciente. Esse desenvolvimento pode muito bem ter se dado na forma de uma tradição oral, como ocorreu no sacerdócio deifico. Mas a tarefa da interpretação se apresenta com muita decisão onde há literatura escrita. Tudo que foi fixado por escrito tem algo de estranho, exigindo, enquanto tal, a mesma tarefa de compreensão que encontramos quando se fala algo em língua estrangeira. O intérprete do texto gráfico, assim como o intérprete do discurso divino ou humano, tem a tarefa de superar a estranheza e possibilitar apropriação. Essa tarefa pode complicar-se quando a distância histórica entre o texto e o intérprete se tornar consciente. Isso porque, nesse caso, a tradição que sustenta tanto o texto herdado quanto seus intérpretes está rompida. Creio, no entanto, que sob o ímpeto de falsas analogias metodológicas sugeridas pelas ciências da natureza, a hermenêutica "histórica" se distancia em muito da hermenêutica pré-histórica. Tentei mostrar que essas hermêuticas compartilham pelo menos um traço dominante comum: a estrutura da aplicação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas convém mencionarmos outro contexto, a saber, a relação problemática em que se encontra hoje a poética frente à retórica. Isso contém um aspecto hermenêutico. Em suas origens e até os dias de Kant   e da destronização da retórica pela estética do gênio e pelo conceito de vivência, ambas as disciplinas estavam fraternalmente [432] unidas, ambas existiam como artes da linguagem, isto é, formas de uso artístico e livre do discurso. Mas havia nelas um prejulgamento que acabou sendo dissipado. Nessa tradição compreendeu-se a linguagem da poesia e a linguagem do discurso artístico a partir do conceito de ornatus. Mas isso significa que a linguagem simples da vida prática representa o exemplo autêntico da linguagem. E, pelo menos desde Vico, Hamann e Herder, a evidência desse enfoque do problema acabou sendo esquecida. Se a poesia representa a linguagem matriz do gênero humano, poderá nos ensinar a respeito da essência da linguagem muito mais do que nos ensinam as ciências que estudam as línguas enquanto idiomas estrangeiros em sua existência alienada nos moldes de meios de comunicação e de informação. Ora, a relação entre poesia e hermenêutica encontra-se em dificuldades por causa do predomínio do jacobismo técnico-industrial, uma vez que a compreensibilidade da obra poética (como a da obra pictórica ou plástica) é considerada um preconceito "clássico". Parece-me que, atualmente, a tarefa da hermenêutica continua sendo justamente explicar essas figuras de compreensibilidade deficientes (basta recordar as obras de um grupo de investigação sobre hermenêutica, aparecidas nos últimos anos sob o título Poetik und Hermeneutik   [Poesia e hermenêutica]). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos   gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme   (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos   (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita   practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das ideias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de [434] uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima   e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das consequências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do "círculo de Viena", como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos   científico-social. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

O aspecto hermenêutico não pode limitar-se, pois, às ciências hermenêuticas da arte e da história, nem ao trabalho com os "textos", nem sequer, como uma ampliação, à própria arte. A universalidade do problema hermenêutico, reconhecida já por Schleiermacher, abarca todo o âmbito do racional, tudo aquilo que pode ser objeto de acordo mútuo. Quando o entendimento parece impossível por se falarem "linguagens diferentes", a tarefa da hermenêutica ainda não terminou. E ali que ela alcança seu sentido pleno   como a tarefa de encontrar a linguagem comum. Mas a linguagem comum nunca é algo já definitivamente dado. É uma linguagem que faz o jogo entre os falantes, que deve permitir o início de um entendimento, ainda que as "opiniões" distintas se oponham frontalmente. Nunca se pode negar a possibilidade de entendimento entre seres racionais. Nem sequer o aparente relativismo presente na diversidade das linguagens humanas constitui uma barreira para a razão, cuja palavra é comum a todos, como já sabia Heráclito  . A aprendizagem de línguas estrangeiras e mesmo a aprendizagem da fala pela criança não significam a simples assimilação dos recursos de entendimento. Essa aprendizagem representa antes uma espécie de pré-esquematização da experiência possível e sua primeira aquisição. O conhecimento de uma língua é um caminho para o conhecimento do mundo. Não apenas essa "aprendizagem", mas toda e qualquer experiência se realiza em um constante progresso comunicativo de nosso conhecimento do mundo. Num sentido muito mais profundo e geral que o expresso na fórmula [498] cunhada por August Boeck para a função do filólogo, a experiência representa sempre "conhecimento do conhecido". Vivemos dentro de tradições, e essas não são uma esfera parcial de nossa experiência do mundo nem uma tradição cultural que consta apenas de textos e monumentos e que transmite um sentido expresso pela linguagem e documentado historicamente. É o próprio mundo que percebemos em comum e se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa aberta ao infinito. Não é nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Sempre que vivemos algo, sempre que superamos o estranho, sempre que se produzem iluminações, conhecimento, assimilação, se realiza o processo hermêutico de inserção na palavra e na consciência comum. Mesmo a linguagem monologai da ciência moderna adquire realidade social por essa via. Creio que nesse ponto a universalidade da hermenêutica, tão contestada por Habermas, entre outros, se mostra bem fundamentada. A meu ver, Habermas jamais superou um conceito idealista do problema hermenêutico e acaba reduzindo meu posicionamento, equivocadamente, à "tradição cultural" no sentido de Theodor Litt O amplo debate dessa questão aparece documentado no volume da Editora Suhrkamp Hermeneutik und Ideologiekritik. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.