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Gadamer (VM): pensamento grego

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Pois bem, a filosofia grega se inicia precisamente com o conhecimento de que a palavra é somente nome, isto é, que não representa (vertreten) o verdadeiro ser. Esta é a erupção do perguntar filosófico dentro da pressuposição imediatamente indiscutida do nome. Fé na palavra e dúvidas a respeito da palavra são o que caracteriza a situação do problema sob o qual o pensamento da ilustração grega considerava a relação entre palavra e coisa. Através dela o modelo do nome se converte em antimodelo. O nome que se outorga e que pode ser mudado é o que motiva que se duvide da verdade da palavra. Pode-se falar da correctura dos nomes? Mas não se tem de falar da correctura das palavras, isto é, exigir a unidade de palavra e coisa? E não foi um dos pensadores mais profundos da Antigüidade, Heráclito  , quem descobriu o sentido profundo do jogo de palavras? Este é o pano de fundo de que surge o Crátilo de Platão  , o escrito básico do pensamento grego sobre a linguagem, que abrange a extensão dos problemas, de tal modo que a discussão grega posterior, que só nos é conhecida de maneira muito incompleta, quase não acrescenta nada de essencial. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Vale a pena que nos detenhamos agora nesse ponto nuclear do pensamento cristão, porque também para ele a encarnação está relacionada, de forma muito estreita, com o problema da palavra. Já desde os padres da Igreja, e obviamente [423] na elaboração sistemática do augustinismo da alta escolástica, a interpretação do mistério da trindade — a tarefa mais importante que se coloca ao pensamento medieval cristão — apóia-se na relação humana de falar e pensar. Com isso a dogmática segue sobretudo o prólogo do Evangelho de João, e por mais que os meios conceituais, com os quais ela procura resolver esse problema teológico, sejam de cunho grego, o pensamento filosófico ganha através deles uma dimensão que estava vedada ao pensamento grego. Quando o verbo se faz carne, e só nesta encarnação se consuma a realidade do espírito, o logos   se liberta com isso de sua espiritualidade, que significa simultaneamente sua potencialidade cósmica. A singularidade do acontecimento da redenção leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à reflexão filosófica. Pois, diferentemente do logos grego, a palavra é um puro acontecer (verbum proprie dicitur personaliter tantum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Uma vez, acontece a criação pela palavra de Deus. Já os primeiros padres da Igreja falam do milagre da linguagem, com o fim de tornar pensável aquela idéia tão pouco grega, que é a [424] criação. No próprio prólogo de João vem descrita, a partir da palavra, a verdadeira ação salvadora, o envio do Filho, o mistério da encarnação. A exegese interpreta o fato da palavra tornar-se som, um milagre igual ao fato de Deus tornar-se carne. O "tornar-se", de que se trata em ambos os casos, não é um tornar-se, no qual algo se converte noutra coisa diferente. Não se trata nem de uma separação de um com relação ao outro (kat’ apokopen), nem de uma diminuição da palavra interna por sua saída para a exterioridade, nem sequer um converter-se noutra coisa, numa forma tal que a palavra interna fique consumida. Já desde as aproximações mais antigas ao pensamento grego, reconhece-se essa nova direção para a unidade misteriosa de Pai e Filho, de Espírito e palavra. E quando, por fim, se rechaça na dogmática cristã — com a repulsa ao subordinacionismo — a relação direta com a exteriorização, o fato de que a palavra se torne som, essa mesma decisão torna necessário voltar a iluminar filosoficamente o mistério da linguagem e sua relação com o pensamento. O maior milagre da linguagem não se estriba em que a palavra se faça carne e apareça em seu exterior, mas no fato de que o que emerge e se manifesta em sua exteriorização já é sempre palavra. O fato de que a palavra está em Deus, e quiçá, desde toda a eternidade, é a doutrina triunfante da Igreja que acompanha a repulsa ao subordinacionismo, e que permite que o problema da linguagem entre em cheio na interioridade do pensante. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Da relação mundana da linguagem, segue-se seu caráter peculiar de coisa. O que vem à fala são conjunturas. Uma coisa que se comporta desse modo ou de outro. Nisso estriba-se o reconhecimento da alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma distância própria com respeito à coisa. Sobre essa distância repousa o fato de que algo possa destacar-se como conjuntura própria e converter-se em conteúdo de uma proposição, suscetível de ser entendida pelos demais. Na estrutura da conjuntura que se destaca, está dado o fato de que sempre haja nela algum componente negativo. A determi-natividade de qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não ser tal outra. Em conseqüência existem, por princípio, conjunturas negativas, que o pensamento grego leva em conta pela primeira vez. Já na obstinada monotonia do princípio eleático da correspondência de ser e noein   o pensamento grego segue o caráter fundamental de coisa, próprio da linguagem, e, em sua superação do conceito eleático do ser, Platão reconhece que o não-ser no ser é o que, na realidade, torna possível que se fale do ente. É claro que na variada articulação do logos do eidos   não podia desenvolver-se adequadamente, como já vimos, a questão do ser próprio da linguagem; tão penetrado estava o pensamento grego da objetividade da linguagem. Perseguindo a experiência natural do mundo em sua conformação lingüística, o pensamento grego pensa o mundo como o ser. O que pensa em cada caso como ente destaca-se como logos, como conjuntura enunciável, a partir de um todo circundante, que constitui o horizonte do mundo da linguagem. O que desse modo se pensa como ente não é, na realidade, objeto de enunciados, mas "vem à fala em enunciados". Com isso, ganha sua verdade, seu caráter de ser e estar aberto no pensamento humano. Desse modo, a ontologia grega se fundamenta na objetividade (Sachlichkeit  ) da linguagem, concebendo a linguagem a partir do enunciado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa resposta é de natureza teológica. A metafísica grega, que pensa o ser do ente, pensa esse ser como um ente que se cumpre ou realiza a si mesmo no pensar. Esse pensar é o pensamento do nous, que se pensa como o ente supremo e mais autêntico, o que reúne em si o ser de tudo o que é. A articulação do logos traz à fala a estrutura do ente, e esse seu trazer [461] à fala não é para o pensamento grego outra coisa que a presença do próprio ente, sua aletheia  . Por referência à infinitude desse presente, o pensamento humano se pensa a si mesmo como que por referência à sua possibilidade plena, à sua divindade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides   o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel   não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Quando relacionamos com o pano de fundo da metafísica geral esse conceito da pertença, que ganhamos a partir das aporias do historicismo, não é que pretendamos renovar a doutrina clássica da inteligibilidade do ser, nem transpô-la ao mundo histórico. Toda a coisa não faria mais que repetir Hegel, uma repetição que não se sustentaria nem ante Kant   e a experiência da ciência moderna, nem menos ainda ante uma experiência da história que já não se encontra guiada pelo saber de nenhuma redenção. Quando rebaixamos o conceito do objeto e da objetividade da compreensão em direção a uma mútua pertença do subjetivo e do objetivo, limitamo-nos a seguir uma necessidade da coisa. Já a crítica à consciência, tanto estética como histórica, obrigou-nos a criticar o conceito do objetivo e forçou-nos a nos apartar da fundamentação cartesiana da ciência moderna, para ressuscitar certos "momentos de verdade do pensamento grego. Não obstante, não podemos seguir simplesmente nem os gregos nem a filosofia da identidade do idealismo alemão: Nós pensamos a partir do mediu da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A própria análise semântica da palavra mostra o estreito parentesco do conceito do belo com o questionamento que desenvolvemos. A palavra grega que traduz o termo alemão schõn (belo) é kalon  . O alemão não tem, para esta palavra, nenhuma correspondência exata, e tampouco nos ajudaria muito acrescentar, como termo mediador, o termo pulchrum. No entanto, o pensamento grego exerceu uma influência determinante sobre a história do significado da palavra alemã, de maneira que ambas as palavras já possuem em comum traços semânticos essenciais. Falamos, por exemplo, de "belas" artes, e com o atributo "belas" as distinguimos do que chamamos técnica, isto é, as artes "mecânicas", que produzem coisas úteis. Algo parecido ocorre com expressões compostas como: bela moralidade, bela literatura, "espiritualmente belo" etc. Em todos esses empregos, a palavra se encontra numa oposição parecida à do grego kalon com respeito ao conceito chresimon. Chama-se kalon tudo o que não faz parte das necessidades da vida, mas que diz respeito ao modo de viver, ao eu zen, isto é, tudo o que os gregos compreendiam sob o termo de paideia  . São coisas belas aquelas cujo valor é evidente por si mesmo. Não tem sentido perguntar pelo objetivo a que devam servir. São excelentes por si mesmas (di’ hauto hairetori), não em virtude de outras coisas, como ocorre com o útil. O simples uso lingüístico já permite reconhecer que o que se chama kalon possui uma categoria ôntica superior. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ora, o relevante para o pensamento é que na guinada que experimentou o conceito de ciência no começo da modernidade é que mesmo ali o princípio fundamental do pensamento grego sobre o ser acabou se conservando. A física moderna pressupõe a metafísica antiga. Heidegger reconheceu essa cunhagem do pensamento ocidental, de origem remota, e com isso a autoconsciência histórica da atualidade ganhou uma significação específica. Isto porque esse conhecimento veda o caminho a todas as tentativas de restauração romântica dos ideais antigos, sejam eles medievais ou helenístico-humanistas, à medida que torna patente o caráter inevitável da história da civilização ocidental. Também o esquema hegeliano de uma filosofia da história e de uma história da filosofia já não pode ser suficiente, visto que, segundo Hegel, a filosofia grega não [49] é nada mais que um prelúdio especulativo daquilo que encontrou sua realização plena na autoconsciência moderna do espírito. O idealismo especulativo e seu postulado de uma ciência especulativa acabaram convertendo-se numa restauração totalmente impotente. Por mais cerceada que seja, a ciência acaba sendo o alfa e o ômega de nossa civilização. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

Aqui vemo-nos remetidos diretamente à Antigüidade e à relação específica entre mito e logos, que se encontra no início do pensamento grego. O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno. Tomando por base esse esquema, torna-se incompreensível, p. ex., como a filosofia ática pôde se opor às tendências do Iluminismo grego e estabelecer uma reconciliação secular entre a tradição religiosa e o pensamento filosófico. Devemos a Gerhard Krüger o magistral esclarecimento das pressuposições religiosas do filosofar grego e sobretudo platônico. A história de mito e logos nos primórdios do mundo grego tem uma estrutura bem mais complexa do que faz supor o esquema do Iluminismo. Frente a essa realidade podemos compreender a grande desconfiança que alimentava a investigação científica da Antigüidade frente ao valor religioso das fontes do mito e a preferência que demonstra pelas formas estáveis da tradição no culto. É que a capacidade de transformação inerente ao mito, sua abertura para sempre novas interpretações por parte dos poetas, acaba obrigando a reconhecer que se trata de uma falsa questão perguntar em que sentido esse mito antigo era objeto de "crença" e se, uma vez tendo entrado no jogo poético, faz sentido se acreditar no mito. Na verdade, o mito está tão intimamente aparentado com a consciência filosófica, que mesmo a explicação filosófica do mito na linguagem do conceito não acrescenta nada de essencialmente novo àquela alternância viva entre descobrimento (entdeckung  ) e velamento (verhüllung  ), entre temor reverente e liberdade de espírito, que acompanha toda a história do mito grego. Devemos ter isso em mente se quisermos compreender corretamente o conceito de mito implícito no programa de desmitologização de Bultmann  . O que Bultmann chama de imagem mítica do mundo e seu contraste com a imagem científica de mundo, que se nos apresenta como verdadeira, parece não ter o caráter definitivo que se lhe atribuiu no debate sobre esse programa. No fundo, a relação de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego com seus mitos. A formulação casual e em certo sentido ocasional do conceito de desmitologização proposta por Bultmann, na verdade a suma de toda sua teologia exegética, pode ter tudo, menos um sentido iluminista. O que o aluno de ciência histórica da Bíblia procura na tradição bíblica, antes de qualquer coisa é o que se afirma contra todo Iluminismo histórico, ou seja, o que constitui o verdadeiro suporte do anúncio, do querigma, o que representa o verdadeiro chamado da fé. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

A continuidade da história remete ao enigma do tempo que flui. O fato de o tempo não parar constitui o antigo problema da análise temporal   aristotélica e agostiniana. Sobretudo Agostinho   nos faz ver a perplexidade ontológica que acomete o antigo pensamento grego, quando precisa enunciar o que é o tempo. O que é essa realidade que em nenhum momento pode-se identificar realmente consigo mesma como aquilo que existe? Pois mesmo o agora já não é agora no momento em que o identifico como agora. O decurso dos agoras num passado infinito, seu incurso desde um futuro infinito, deixa no ar a pergunta sobre o que é o agora e o que é propriamente esse rio de tempo transitório que chega e que passa. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.

Apesar disso, uma característica essencial de toda técnica é não existir em vista de si mesma, nem por causa de um objeto a ser produzido que tivesse seu fim em si mesmo. O modo e a aparência do objeto a ser produzido dependem do uso a que se destina. O saber fazer de quem produz o objeto de uso não lhe dá nenhum poder, seja para garantir que a coisa produzida seja utilizada convenientemente e nem tampouco que seja utilizada para algo justo. Deveria [161] haver, portanto, um novo saber objetivo que cuidasse do uso correto das coisas, isto é, do emprego dos meios para os fins corretos. E, uma vez que nosso mundo de usos nada mais é que uma trama hierárquica dessas estruturas de meios e fins, surge naturalmente a idéia de uma tékhne superior, de um saber específico que conhece o emprego correto de todo saber específico, uma espécie de saber específico régio: A tékhne política. Tem sentido semelhante idéia? O político, como o especialista dos especialistas? A arte da política, como o maior de todos os conhecimentos objetivos? É certo que Estado nesse caso significa a polis   grega e não o mundo. Mas uma vez que o pensamento grego sobre a polis refere-se sempre só à ordem interna da polis e não propriamente ao que chamamos de a grande política das relações internacionais, a questão é simplesmente de escala ou parâmetro. O mundo administrado de maneira perfeita corresponderia exatamente ao ideal   da polis. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da "ciência" sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis   vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral   ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia   um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles   desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das conseqüências, consoante à idéia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de "outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão "política". Mas se até Max Weber relacionou o pathos   de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um "deus" que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião   do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloqüente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano "ou isso ou aquilo" exerceu sobre o lema "tanto isso quanto aquilo", próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl  , revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] "cura" da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Impõe-se assim a tarefa de uma destruição do conceptualidade da metafísica. Esse é o único sentido aceitável da expressão "linguagem da metafísica": a conceptualidade formada em sua história. A tarefa de uma destruição da conceptualidade alienada da metafísica, que continua no pensamento atual, foi o lema de Heidegger em seus primeiros anos de docência. A tarefa de reconduzir pelo pensamento os termos conceituais da tradição à língua grega, ao sentido natural das palavras e à sabedoria oculta da linguagem que nelas se deve buscar, deu nova vida ao pensamento grego e a sua capacidade para interpelar-nos. Impressiona ver com que vigor Heidegger levou a efeito essa tarefa, e é isso na verdade que constitui sua genialidade. Ele tentou inclusive religar as palavras a seu sentido literal já desaparecido, não vigente. Desse sentido etimológico buscou tirar conseqüências para o pensamento. É interessante notar que a esse respeito o Heidegger tardio fala de "palavras originárias". Essas palavras expressariam a experiência grega de mundo muito melhor que as teorias e princípios dos primeiros textos gregos. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard   e Nietzsche  . Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, [369] aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o "lógico" em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de "o passo para trás" foi um distanciamento da dialética. VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Na época, eu não podia ver que a observação de Heidegger poderia ser compreendida em um outro sentido bem diferente, a saber, no sentido de uma crítica velada aos gregos. Nesse caso, essa expressão significaria que o pensamento grego só poderia conceber o fenômeno humano originário da consciência moral como uma certeza no saber, certeza que não fosse ameaçada por nenhum esquecimento. Em todo caso, a expressão provocativa de Heidegger me havia mostrado um caminho para apropriar-me de perguntas estranhas e explicitar ao mesmo tempo a dimensão antecipadora dos conceitos. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Se Heidegger interpreta a adoção das idéias como o início do esquecimento do ser que culmina na mera representação e no objetivismo onde desemboca a era tecnológica da vontade de poder já universalizada, e quando é conseqüente o bastante para entender o mais antigo pensamento grego sobre o ser como a preparação desse esquecimento do ser produzido na metafísica, diante disso a autêntica dimensão da dialética platônica das idéias significa no fundo algo diferente. O passo latente que Heidegger dá até além de todo ente é um passo além da adoção "unívoca" das idéias e constitui em última instância uma reação contra a interpretação metafísica do ser como ser do ente. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.