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Gadamer (VM): compreensão de textos

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Levando isso em consideração, a diferença entre uma obra de arte literária e qualquer outro texto literário já não é tão fundamental. Certamente que existem diferenças entre a linguagem da poesia e a da prosa, e igualmente, entre a linguagem da prosa poética e a da prosa "científica". Essas diferenças podem certamente ser consideradas também do ponto de vista da formulação literária. Mas a diferença essencial dessas "linguagens" diferentes reside, evidentemente, noutro aspecto, ou seja, na diversidade da reivindicação da verdade que cada uma delas levanta. Dá-se uma profunda comunhão entre todas as obras literárias, no fato de que a formulação linguística permite que o significado que deve ser expresso chegue a ser operante. Visto dessa maneira, a compreensão de textos, como, por exemplo, aquela que o historiador agencia não difere tanto da experiência da arte. E não é um simples acaso, que, no conceito da literatura, sejam reunidas não somente as obras da arte literária, mas toda tradição literária como tal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

No século XIX a hermenêutica experimentou, como disciplina auxiliar da teologia e da filosofia, um desenvolvimento sistemático que a transformou em fundamento para o conjunto das atividades das ciências do espírito. Ela elevou-se fundamentalmente acima de seu objetivo pragmático original, ou seja, de tornar possível ou facilitar a compreensão de textos literários. Não é somente a tradição literária que representa um espírito alienado e novo, necessitado de uma apropriação mais correta, mas, antes, tudo que já não está de maneira imediata no seu mundo e não se expressa nele, e para ele, junto com toda tradição, a arte, bem como todas as demais criações espirituais do passado, o direito, a religião, a filosofia etc, encontram-se despojadas de seu sentido originário e dependentes de um espírito que as faça aflorar e intermedie, espírito que, de acordo com os gregos, chamamos de Hermes, o mensageiro dos deuses. E a gênese da consciência histórica, a que a hermenêutica deve uma função central, no âmbito das ciências do espírito. Mas a questão é de se saber, se o alcance do problema, que com isso se coloca, pode se tornar claro para nós, de maneira correta, a partir das premissas da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

[245] Como vimos em Schleiermacher  , o modelo de sua hermenêutica é a compreensão congenial possível de ser alcançada na relação entre o eu e o tu. A compreensão de textos tem a mesma possibilidade de adequação total que a compreensão do tu. Pode-se ver diretamente no texto a opinião   do autor. O intérprete é absolutamente coetâneo com seu autor. Este é o triunfo do método filológico: conceber o espírito passado como presente, o espírito estranho como familiar. Dilthey   está totalmente compenetrado desse triunfo. Sobre isso fundamenta sua afirmação de que as ciências do espírito possuem o mesmo padrão. Assim como o conhecimento natural-científico interroga algo presente sempre em relação a uma explicação que é projetada nele, assim o investigador do espírito interroga os textos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A lógica de pergunta e resposta, desenvolvida por Collingwood, põe fim ao tema do problema permanente, que subjaz à relação dos "realistas de Oxford" com os clássicos da filosofia, assim como ao conceito da história dos problemas, desenvolvida pelo neokantismo. A história dos problemas somente seria história de verdade se reconhecesse a identidade do problema como uma abstração vazia e admitisse a mudança dos questionamentos. Pois na realidade não existe um ponto exterior à história, a partir do qual se pudesse pensar a identidade de um problema na mudança de suas tentativas históricas de solução. É verdade que toda compreensão de textos filosóficos requer que se reconheça o que neles se conheceu. Sem este reconhecimento nunca entenderíamos nada. Não obstante, nem por isso nos subtraímos ao condicionamento histórico no qual nos encontramos e a partir do qual compreendemos. O problema que reconhecemos não é, de fato, simplesmente o mesmo, se é que se quer entendê-lo em sua realização que contenha uma autêntica pergunta. Somente nossa miopia histórica nos permite tê-lo como o mesmo. O ponto de vista, a partir de um posicionamento superior, a partir do qual se poderia pensar sua verdadeira identidade, é uma pura ilusão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse   teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant   e Fichte   privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do "eu penso", na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como "Iluminismo". A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann  , não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como "esclarecimento", "emancipação", "diálogo livre de coerção" revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes  , procurando legitimar seu novo conceito de [116] método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que "apenas" compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento   da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Reconhecemos esse fenômeno particularmente na compreensão de textos de língua estrangeira. Aqui se pode ver como a oscilação dos significados verbais vai lentamente se estabilizando no passar, repassar e reproduzir da unidade de sentido própria à estruturação de uma frase. Também isso representa uma descrição ainda muito imperfeita. Pois toda a miséria da tradução consiste em que a unidade intencional de uma frase não se deixa alcançar pela mera subordinação de seus elementos fraseológicos aos elementos fraseológicos correspondentes da outra língua. É assim que nos deparamos com essas figuras horríveis via de regra em livros traduzidos — letras sem espírito. Falta-lhes o constitutivo da linguagem, isto é, a concatenação natural onde uma palavra puxa a outra, onde cada palavra é por assim dizer suscitada por outra, ao mesmo tempo em que deixa em aberto a continuidade do discurso. Uma frase que não tenha sido tão radicalmente transformada pelo engenho de um mestre na arte da tradução, aparecendo desprovida de continuidade natural em relação à frase anterior, é como um mapa em comparação com a própria paisagem. A significação de uma palavra não se dá apenas no sistema e no contexto. Esse estar-em-um-contexto também significa que nunca se pode apartar inteiramente a polissemia que possui uma palavra, mesmo quando o contexto confere um significado bastante unívoco. O sentido literal correspondente à palavra no discurso concreto por certo não é apenas o que está presente. Algo mais está presente, e a presença desse elemento co-presente constitui a força evocativa da vida do [198] discurso. Por isso, podemos assumir que todo dizer sempre acena para o espaço aberto de sua continuidade. Mesmo tomando uma direção, o dizer nunca se esgota, havendo sempre mais por dizer. Isso fundamenta a verdade da tese de que o falar se desenvolve no elemento da "conversa". VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

A relação entre texto e interpretação que constitui o tema do presente estudo aparece, pois, aqui numa forma especial que Ricoeur   chama hermenêutica da suspeita, hermeneutics of suspicion. E um erro privilegiar esses casos de compreensibilidade distorcida como caso normal na compreensão de textos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da autoridade ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza  , sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as [421] interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão  . A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche   é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Franz Wieacker, Das Problem der Interpretation   (O problema da interpretação, Mainzer Universitätgespräche, p. 5s); Fritz Rittner, Verstehen   und Auslegen (Compreender e interpretar, Freiburger Dies Universitatis, 14 (1967); Josef Esser, Vorverständnis und Methode   [457] in der Rechtsfindung (Compreensão prévia e método na pesquisa jurídica, 1970); Joachim Hruschka, Das Verstehen von Rechtstexten (A compreensão de textos jurídicos, Munchener Universitätsschriften, Reihe der juristischen Fakultät, vol. 22, 1972). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.