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Gadamer (VM): atividade hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Para nos aproximarmos deste problema procuraremos agora desenvolver, numa forma positiva, a teoria acima apresentada dos preconceitos que o Aufklärung elaborou a partir de um propósito crítico. No que se refere imediatamente à divisão dos preconceitos em preconceitos de autoridade e por precipitação, é claro que na base dessa distinção encontra-se a premissa fundamental do Aufklärung, segundo a qual um uso metódico e disciplinado da razão é suficiente para nos proteger de qualquer erro. Esta é a ideia cartesiana do método. A precipitação é a verdadeira fonte de equívocos que induz ao erro no uso da própria razão. A autoridade, pelo contrário, é a culpada de que nós não façamos uso da própria razão. A distinção se baseia, portanto, numa oposição excludente de autoridade e razão. O que é digno de se combater é a falsa e prévia aceitação do antigo, das autoridades. O Aufklärung considera, por exemplo, que o grande feito reformador de Lutero   consiste em que "o preconceito do respeito humano, especialmente o filosófico (referindo-se a Aristóteles  ) e o respeito ao papado romano  , ficou profundamente debilitado…" A reforma proporciona, assim, o florescimento da hermenêutica que deve ensinar a usar corretamente a razão na compreensão da tradição. Nem a autoridade do magistério papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda imposição. 1522 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher   não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel  . Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse   do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na "hermenêutica" mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter "paradigmático" do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião   na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da autoridade ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza  , sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as [421] interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão  . A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche   é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.