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Gadamer (VM): Plotino

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

O autor finca pé num conceito de "hermenêutica construtiva" que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl  , há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma "hermenêutica construtiva"? E o que seria "hermenêutica construtiva"? Tampouco a idéia da força expressiva da linguagem [298] tem algo a ver com a frase heideggeriana   "a linguagem fala". O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase "a linguagem fala" está implícito, segundo me parece, na idéia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino   (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho   quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na "psicologização" da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.

É estranho que um pesquisador de Plotino, tão conceituado como Richard Harder, tenha criticado, em sua última conferência, o conceito de fonte, por causa de sua "procedência das ciências da natureza" (Source de Plotin, entretiens V, VII, Quele oder Tradition  ?). Por mais justificada que seja a crítica à pesquisa das fontes puramente externa, o conceito de fonte tem uma legitimação bem mais fundamentada. Como metáfora filosófica, esse conceito é de origem platônica e neoplatônica. A imagem que guia essa metáfora é a erupção da água pura e fresca, que brota de uma profundeza invisível. Testemunha disso, entre outras coisas, é a reiterada construção pege kai arche   (Faidro, 245c, assim como muitas citações em Philo e Plotino). Como termo filológico, o conceito de fons parece só ter sido introduzido na época do humanismo, e mesmo ali não significa em primeiro lugar o que conhecemos pela investigação das fontes, mas a parole ad fontes, o retorno às fontes, como acesso à verdade originária e não-desfigurada dos autores clássicos. Também isso confirma nossa constatação de que a filologia, nos seus textos, busca a verdade que pode neles se encontrar. A passagem do conceito para o sentido técnico da palavra, usual hoje, deveria conservar algo do significado originário, na medida em que a fonte diferencia-se da reprodução turva ou da apropriação falsificadora. Isso esclarece, de modo específico, que o conceito de fonte só se conhece na tradição literária. Somente o que é transmitido pela linguagem proporciona uma abertura e acesso constante e pleno   ao que essa tradição contém; não é preciso restringir-se a interpretar, como ocorre com outros documentos ou relíquias. Pode-se também haurir diretamente da fonte e nela medir suas derivações posteriores. Tudo isso não são imagens da ciência da natureza. São imagens espirituais e de linguagem, que no fundo confirmam o que pensa Harder, a saber, que as [384] fontes não precisam turvar-se pelo fato de serem usadas. Da fonte brota sempre de novo água fresca e o mesmo acontece com todas as verdadeiras fontes espirituais da tradição. Vale a pena estudá-las, porque sempre podem proporcionar algo diferente do que se hauriu delas até o momento. VERDADE E METODO II ANEXOS EXCURSO V

Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp  , se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão   e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino e do Mestre Eckhart   — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler   — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica "fenomenologia". Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental   de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx  , outros o que foi Freud  , e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche  . O que me interessou em Heidegger foi que podíamos "repetir" a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel   e reescrita pela "historia dos problemas" do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Era definitivamente mais prudente comportar-se sem chamar a atenção. Eu me limitava a apresentar os resultados de meus [491] estudos em sala de aula. Na aula era possível movimentar-se livremente e sem impedimentos. Mesmo sobre Husserl pude organizar seminários em Leipzig, sem nenhuma pressão. Muitos pontos que eu elaborava passavam primeiro ao domínio público através de trabalhos de meus alunos, especialmente na excelente dissertação de Volkmann-Schluck, Plotin als Interpret der Platonischen Ontotogie (Plotino como intérprete da ontologia platônica, 1940). VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

A história da metafísica poderia ser escrita também como uma história do platonismo. Suas etapas seriam Plotino e Agostinho, Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa, Leibniz  , Kant   e Hegel; e, por fim, todos aqueles esforços intelectuais do Ocidente que perguntam pelo ser substancial da idéia e em geral pela teoria da [503] substância da tradição metafísica. Mas o primeiro platônico dessa série não seria outro que o próprio Aristóteles  . O objetivo de meus estudos nesse campo seria fazer crer nessa tese tanto frente à instância da crítica aristotélica à doutrina das idéias como frente à metafísica da substância na tradição ocidental. E eu não estaria sozinho. Houve Hegel. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.