Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Casanova (MH2:223-225) – ambiguidade (Zweideutigkeit)

quinta-feira 6 de agosto de 2020

A noção de ambiguidade não diz respeito aqui a alguma coisa como um duplo significado que estaria presente em todas as interpretações cotidianas dos entes. O que Heidegger procura acentuar nesse caso não é o fato de que as coisas significam cotidianamente uma coisa, e, ao mesmo tempo, ainda uma outra. Ao contrário, todo o intuito heideggeriano se mantém no âmbito do modo de apropriação dos entes na cotidianidade. Cotidianamente se fala como se já estivesse decidido o que significa aquilo de que se fala, se veem as coisas em meio a uma sucessão de movimentos de aproximação e distanciamento, na mesma medida em que se conforma o campo compreensivo no interior dos limites já previamente estabelecidos pelo discurso fático sedimentado, ou seja, no interior dos limites de uma interpretação já realizada. Dizer isto implica afirmar ao mesmo tempo que a cotidianidade já tem sempre o campo do possível previamente mapeado, delineado, estabelecido. Assim, quando o que está em questão é uma possibilidade específica do campo fenomênico, por exemplo, a aparição de algo como justo ou injusto, como belo ou feio, como estressante ou relaxante, como saudável ou nocivo, essa possibilidade já sempre se mostra de acordo com o modo como o mundo circundante já de antemão estabeleceu que ela precisava se mostrar. Justo se revela, então, como o que o mundo determina como justo e é em função dessa determinação que eu posso, no contexto adequado, dizer: “justo”. A questão, porém, é que, porquanto o mundo é uma totalidade de significados sedimentada (significância), não há nada que apareça cotidianamente no mundo que eu não esteja em condições de experimentar enquanto tal em meio a uma atualização interpretativa do campo compreensivo. O ser-aí cotidiano sabe tudo, no sentido de que ele está em condições de articular tudo o que aparece a partir da compreensibilidade que é própria à obviedade com que tudo aparece. O mundo sabe o que é comunismo, capitalismo, parlamentarismo, república; ele sabe o caráter execrável do comunismo, a liberdade que vem à tona por meio do livre acesso ao capital, as diabruras do parlamentarismo ou seu caráter moderno, a necessidade de seguir valores republicanos etc. E, como o mundo sabe, todos nós também sabemos, de tal forma que, quando chega a hora própria, nós dizemos frases como: “não podemos mais tolerar os comunistas”, “o capitalismo é um sistema de oportunidades infinitas”, “precisamos de um novo regime político assentado sobre princípios parlamentaristas” e assim sucessivamente. A questão, porém, é que o mundo não é senão uma semântica, uma gramática, uma sintaxe, uma prosódia e uma prosopopeia sedimentadas de maneira impessoal, em suma, ele é apenas um contexto mediano de mostração estabelecido a partir de tradição encurtada. Com isto, o que ele sabe não é nada específico, não é algo dotado de um conteúdo mais denso em geral. Ao contrário, ele sabe o que o mundo sabe, na mediania desse saber impessoal estabelecido a partir de tradição encurtada.

[Excerto de CASANOVA  , Marco Antonio. Mundo e historicidade. Leitura fenomenológica de Ser e tempo  . Volume um: existência e mundaneidade. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017, p. 223-225]


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