Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Casanova (2021:101-102) – mundo [Welt] e significância [Bedeutsamkeit]

segunda-feira 29 de janeiro de 2024

Se olharmos para a descrição heideggeriana   do mundo, tal como essa descrição ganha corpo no interior de Ser e tempo  , a noção de significância desponta imediatamente como central. Mundo aparece na obra como um horizonte histórico de manifestabilidade do ente enquanto ente, isto é, de fenomenologização dos fenômenos em geral. Para que a mesa apareça como mesa, o computador como computador, o celular como celular, a beleza como beleza, a filosofia e a psicologia como filosofia e psicologia, faz-se antes de tudo necessário que o mundo de tais utensílios e de tais conceitos se descerre enquanto tal. O mundo, por sua vez, se confunde com um campo histórico de fenomenologização, que se assenta às últimas consequências sobre a temporalidade, uma vez que todas as possibilidades mesmas que ocorrem em um mundo dependem de processos de temporalização dessas possibilidades no espaço existencial. Dito de maneira ainda mais clara, os significados mesmos dos entes em geral baseiam-se em redes referenciais que foram se constituindo no tempo e se sedimentando, de tal forma que uma certa configuração da rede   passou a determinar a partir de certo momento o fenômeno enquanto tal, seu ser, seu significado e a palavra pela qual nós nos referimos a ele. Pensar nesse caso o mundo como totalidade histórica implica alcançar uma transparência hermenêutica em relação à situação histórica mesma, nas quais os fenômenos se constituem, ou seja, despertar para o caráter decaído do existente humano e alcançar a partir daí uma evidência quanto ao círculo hermenêutico, quanto às estruturas prévias da interpretação, que condicionam normativamente todos os nossos comportamentos em geral. O mundo revela-se aí, em suma, como totalidade de processos históricos sedimentados, entendidos esses processos não como ações particulares dos homens, no sentido da produção de eventos históricos, mas como o surgimento de relações no espaço, no tempo e mesmo nos corpos orientadas todas pela abertura prévia do horizonte total de constituição dessas relações. Temos aqui uma retificação normalizante e normatizante da existência por meio da hermenêutica cotidiana. Tomemos como exemplo um campo fenomênico como um escritório, no qual trabalha um professor de alguma ciência humana. Nesse campo, sempre teremos muito provavelmente, com pequenas variações, uma escrivaninha, uma cadeira, um computador, uma impressora, estantes com livros, lápis, caneta, papel, cadernos, uma luminária etc. Não é o usuário do escritório que define o que ele coloca [101] ou não coloca no espaço de trabalho, mas é antes a abertura prévia do espaço de trabalho que orienta o que deve ou não ser comprado para o uso posterior. Os movimentos no interior do espaço também obedecem às orientações sedimentadas do campo: aqui se passa boa parte do tempo sentado, e, por isso, a qualidade da cadeira precisa receber uma atenção extra. O acúmulo de livros atrapalha a organização das estantes, mas o hábito da leitura faz com que o professor saiba mais ou menos onde estão os seus livros em geral. Os tempos também são públicos, no sentido de que o quanto se permanece em um escritório se deixa a princípio orientar por tempos de trabalho, por níveis de dedicação, por requisições de ordem própria a prazos e a urgências que se impõem a alguém em um determinado mundo. Por fim, mesmo o corpo se encontra aí submetido, uma vez que, na relação incontornável do trabalho de escritório com o computador, todo um modo muito particular de corporação vem à tona, tanto em relação ao que é requisitado do corpo em termos de desempenho próprio quanto em relação à concentração de tensão, aos centros nervosos, à postura, à agilidade etc. Tudo isso é determinado historicamente. Para não falar, claro, do campo conceituai de consideração dos problemas tanto quanto daquilo que em um momento histórico passa a se mostrar como um problema. Mas a noção de história, contudo, padece nesse caso, como dissemos acima, de uma especificação maior. Não se consegue pensar por meio de tal compreensão da historicidade como totalidade de processos históricos a unidade de tal totalidade, de tal modo que os mundos parecem se tornar às últimas consequências indistintos, sem qualquer traço estrutural que pudesse determina-los enquanto tais, para além precisamente das peculiaridades de seus campos fenomênicos e de suas significações correlatas. Exatamente isso, porém, se altera a partir de certo momento, quando Heidegger passa a pensar o mundo não mais como totalidade de significados ou como significância, mas como a medida única de determinação de um campo epocal. Essa passagem nos interessa, então, de maneira decisiva não porque Heidegger deu o passo de um momento para o outro, mas porque a nadidade ontológica originária do existir não se organiza apenas por meio da hermenêutica cotidiana, mas também essencialmente por meio da fenomenalidade epocal.


Ver online : Marco Antonio Casanova