Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Casanova (2013:103-104) – noção de sentido depende de um ente sem sentido

terça-feira 23 de janeiro de 2024

[…] a própria noção de sentido depende de um ente marcado originariamente pela falta de sentido. Só um ente marcado por uma incompletude ontológica originária necessita de sentido para ser, porque só ele não possui em si mesmo desde o princípio o seu sentido dado. Dizer que o ser-aí necessita de sentido para ser e que esse sentido surge necessariamente de sua negatividade estrutural, contudo, não significa afirmar que o ser-aí experimenta de início e na maioria das vezes tal negatividade. Ao contrário, o que acontece de início e na maioria das vezes é justamente o oposto. Lançado no mundo fático sedimentado, o ser-aí projeta o seu campo existencial de início e na maioria das vezes com vistas a sentidos fornecidos pelo mundo, sentidos esses que tornam possível a constituição de um campo de ação determinado, que envolve um conjunto de entes também determinados, dotados todos de significados específicos. Assim, o mundo cotidiano tende a aplacar justamente a falta de sentido estrutural do ser-aí, tornando possível a operacionalização de sentidos sedimentados. Cotidianamente, lançamos mão de sentidos correntes no mundo, que suportam os recortes individuais da significância. Trabalhamos em virtude da necessidade de sobrevivência, casamo-nos em virtude de um temor da solidão, saímos de casa nas noites dos finais de semana em virtude do anseio de preenchermos o nosso tempo etc. Tal operacionalização de sentidos viabiliza, por sua vez, a dinâmica do mundo cotidiano e retém o ser-aí absorvido no ritmo de seus afazeres. Além disso, ela traz consigo uma consequência deveras peculiar para o horizonte hermenêutico que o mundo é: ela mantém por um lado o mundo em uma estagnação hermenêutica fundamental, em um campo estável de significados orientadores de nossos comportamentos em geral. O esvaziamento de sentido quebra, por outro lado, essa estagnação e leva o ser-aí a uma experiência [103] completamente diversa. Ao experimentar o esvaziamento dos sentidos cotidianos, esvaziamento esse condicionado sempre pelos anúncios de sua negatividade, o ser-aí se vê diante de sua incompletude ontológica originária. Essa confrontação com a sua incompletude ontológica elimina por completo toda e qualquer possibilidade de ação e lança o todo em uma experiência de insignificância. Nada mais se pode fazer aqui. Não porque não haja realmente mais nada, mas porque o todo cai em uma dimensão de indiferença fenomenológica radical. Nada mais vem ao meu encontro, porque não há mais aqui nenhum sentido que sustente um campo de compreensibilidade no qual é possível desdobrar as interpretações existenciais em geral. Desse vazio, porém, o ser-aí pode retirar um novo sentido para o seu existir, uma vez que esse vazio mesmo é a fonte de todo e qualquer sentido. E sempre há nesse caso ao menos duas possibilidades específicas. Em verdade, é claro que o ser-aí confrontado com o seu caráter de poder-ser sempre pode retornar uma vez mais para o existir cotidiano e voltar a se valer dos sentidos sedimentados que tornam possível um recorte específico da significância. Mas sempre é possível também, que o ser-aí retire do seu poder-ser mais próprio o sentido singular e único de sua existência. Essa, então, é uma expressão heide-ggeriana, com a qual precisamos lidar com bastante cautela: poder-ser mais próprio. Na verdade, o discurso acerca de um poder-ser mais próprio é a princípio incompatível com a própria noção de poder-ser. Como o poder-ser aponta em seu sentido mesmo para uma indeterminação ontológica originária, não há aqui qualquer determinação compatível com algo assim como uma dimensão própria ou imprópria. Dito de maneira ainda mais expressa, não há como pensar nenhuma tarefa peculiar, nenhuma determinação prescritiva que pudesse estar contida no poder-ser que cada ser-aí incontornavelmente é. Exatamente por isso, os parágrafos sobre a voz da consciência em Ser e tempo  , sobre a voz que conclama o ser-aí para o seu poder-ser mais próprio, nos falam sobre uma voz silenciosa, que nasce justamente da supressão do poder ditatorial do discurso do mundo circundante sedimentado. Portanto, o que está em questão com a singularização e com a assunção do poder-ser mais próprio por parte do ser-aí precisa ser pensado em outra chave interpretativa. Em contraposição ao ser-aí impessoal, que simplesmente operacionaliza sentidos e significados sedimentados em seu mundo fático e já sempre se movimento em meio a um espaço compreensivo previamente constituído, o ser-aí singular retira da própria negatividade de seu poder-ser o sentido que sustenta o campo mesmo de suas ações em geral. Mas o que significa isso propriamente? Heidegger define o ser-aí no parágrafo 9 de Ser e tempo como o ente que, em seu ser, “está entregue à responsabilidade por seu ser” [1]. Sob o [104] modo de ser da cotidianidade mediana, o ser-aí se desonera dessa responsabilidade, na medida em que se deixa absorver na semântica sedimentada do mundo fático. É o mundo que diz de início e na maioria das vezes que ser-aí cada um de nós pode ser. Ao superar tal absorção, o ser-aí descobre, com isso, a possibilidade de suspender ao mesmo tempo a desoneração de sua responsabilidade e de reconquistar para si tal responsabilidade. Essa reconquista, por sua vez, se dá por meio da supressão de toda distância entre ser e poder-ser. E nós temos aqui, por fim, o cerne do projeto heideggeriano da ontologia fundamental.


Ver online : Marco Antonio Casanova


[1Martin Heidegger, Ser e tempo, § 9, p. 42.