Página inicial > Fenomenologia > Carneiro Leão (1977:11-16) – Filosofia e Ciência

APRENDENDO A PENSAR I

Carneiro Leão (1977:11-16) – Filosofia e Ciência

A Filosofia na Idade da Ciência

segunda-feira 11 de outubro de 2021

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel, Aprendendo a pensar. Volume I. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 11-16

Numa progressão sempre crescente, o homem moderno se vê cercado cada vez mais dos produtos e artefatos da ciência. A ponto de o físico alemão Werner Heisenberg (Das Naturbild der heutigen Physik  , Hamburgr 1955, p.14) escrever que num futuro não muito distante os aparelhos e instrumentos técnicos serão partes integrantes do homem, como a teia é parte da aranha e a concha do caramujo.

Esse, porém, é apenas o sentido de superfície, não o significado profundo do domínio da ciência. Não é essa a razão de existirmos na era atômica nem é por isso que a idade moderna se chama a época da ciência e da técnica. Esses títulos, de que hoje em dia se usa e abusa com tanta irreflexão, possuem um significado eminentemente histórico-ontológico. A nossa era é científica em sua essencialização. Vivemos na idade da ciência, porque é a ciência que determina o ser e a verdade do real. Porque a ciência é o meio em que se faz a experiência e se entende o sentido de tudo aquilo que é. O elemento, em que se decide o destino da história humana. A ciência é hoje a forma, que informa toda a nossa compreensão e avaliação da realidade, independente e qualquer que seja nossa atitude frente a esse ou àquele resultado científico. Quer atribuamos à ciência valor humano, quer lho neguemos, quer vejamos nela apenas algo indiferente para os valores, a ciência determina sempre o sentido do ser que somos e do ser que não somos. Decide da concepção da verdade em que vivemos, nos movemos e existimos. É que a informação científica não constitui um simples efeito, uma mera consequência dos resultados e conclusões científicas. É antes o espaço de essencialização da própria ciência, que continua aumentando o vigor de seu predomínio ainda quando alguns de seus resultados, tidos como contrários a ideais dos vários humanismos, são impugnados cientificamente pelas respectivas ideologias. Pois então a ciência não faz senão consolidar-se, de vez que o mecanismo de seu vigor tanto mais se afirma quanto mais impera de modo velado e implícito.

Na Froehliche Wissenschaft  , gaia ciência, diz Nietzsche   que a filosofia vive nas geleiras das altas montanhas, tendo por única companhia o monte vizinho, onde mora o poeta. No país da ciência, a filosofia aparece como uma montanha solitária, envolta numa luz marginal. Por isso toda vez que ela desce da montanha, tem que exibir o passaporte de suas credenciais. Tem que justificar o direito de sua aparência. E há mais de dois mil e seiscentos anos, sempre que a filosofia apresenta suas credenciais, se repete uma cena tragicômica. À luz de seu espectro ela se descobre a si mesma no fundo de cada ciência, enquanto o olho indagador da ciência, que, vendo tudo, não vê a si mesmo, é cego para seus próprios fundamentos. Por isso mesmo só pode rir das credenciais da filosofia.

Já no primeiro aparecimento da filosofia entre os gregos no século VII antes de Cristo esse impasse de incompreensão é testemunhado por uma história, que Platão   recolheu e nos conservou no Diálogo Teeteto (174a e ss.): “Tales de Mileto refletia certa vez sobre o significado dos astros para a existência e, olhando para o céu estrelado, caiu num buraco. Uma doméstica da Trácia, bela e galhofeira, dele se riu e o gozou, dizendo: aquele ali se preocupa tanto com o que se passa no céu, enquanto não tem olhos para ver o que tem diante do nariz e debaixo dos pés”. — Platão acrescenta ao relato dessa história as palavras significativas: “à mesma gozação está sujeito todo aquele que se dedica à filosofia”! Assim, desde suas origens, a filosofia se vem apresentando como o esforço de pensamento que traz consigo o risco de cair num buraco e do qual as domésticas sempre riem!

Na idade da ciência e técnica essas risadas atingiram um número sem conta. Todas elas, porém, se fundam na constatação simples e convincente, que já Rogério Bacon assim exprimiu no Opus Maius: “Si bene inspicis, philosophia   nullius est utilitatis”: “Se bem se examina, a filosofia não é de utilidade alguma”. Com ela não se pode compreender nada. Na Einfuhrung in die Metaphysik   diz Heidegger que essa constatação, muito em voga nas esferas dos homens de ciência, é a expressão fiel da verdade. É tão verdadeira, que quem procurar mostrar o contrário e quiser provar que com filosofia se pode fazer alguma coisa, lhe presta um des-serviço. Pois contribui para aumentar ainda mais a confusão reinante, de que se pode avaliar a filosofia segundo os critérios práticos com os quais se julga da utilidade de automóveis ou da eficácia de antibióticos!

Não, está muito certo! Com filosofia não se pode fazer nada. O errado é apenas pensar que com isso a filosofia terminou. Pois ainda há o reverso da medalha. Se nós não podemos fazer nada com filosofia, resta ainda acertar se também a filosofia não pode fazer nada conosco, caso naturalmente nos dediquemos a seu cultivo. O que é inútil pode muito bem desempenhar uma força existencial incontrolável. O que não conhece ressonância imediata na vida pode muito bem estar em consonância com as molas profundas, que acionam o acontecer histórico da humanidade. Pode até mesmo servir-lhe de prelúdio. Imediatamente, porém, a filosofia não poderá jamais proporcionar os recursos nem criar as condições de nenhuma situação histórica. Movimentos de massa nunca são impulsionados imediatamente por reflexões filosóficas. Por uma razão muito simples, que Kant   lembrou ao dedicar a Crítica da Razão Pura ao Ministro de Estado, o Barão von Zedlitz: na filosofia se trata de “esforços, cujo bem é grande, mas distante, e por isso mesmo permanece de todo inacessível à visão comum”. Diretamente a filosofia diz respeito e afeta apenas uma minoria sem expressão numérica. Só indiretamente, e ainda assim por meio de processos incontroláveis, ela vai alargando sua base social, para em determinado momento histórico, mas já então de há muito esquecida como filosofia, incorporar-se à terra dos homens, transformando-se numa evidência da condição humana.

Devido ao modo estranho de seu vigor a filosofia se vê relegada, na idade da ciência mais do que em qualquer outra idade, a uma posição marginal. Por isso se torna imperiosa a necessidade de se discutirem as relações entre filosofia e ciência. Pois só discussões dessa natureza poderão preparar o espírito do homem moderno para a grande decisão. A decisão sobre o sentido de sua existência, que toda época histórica sempre de novo impõe ao homem finito. Na era atômica se trata de uma decisão que interessa ao significado existencial-ontológico da ciência: será a ciência a suprema instância do saber humano ou haverá um outro saber mais originário em que se lançam os fundamentos, se traçam os limites e dessa maneira se assegura à ciência sua verdadeira eficácia? Para o destino histórico do homem moderno será necessário um tal saber originário ou poderá ser ele dispensado e largamente substituído? — É isso o que a presente conferência não diz mas procura dizer em tudo que diz ao discorrer sobre a posição da filosofia na idade da ciência.

É sempre um esforço penoso e muito difícil o acesso à ciência, apesar de toda a ajuda dos professores. O processo de aquisição da ciência descreve uma trajetória de crescentes graus de dificuldades: desde o saber pré ou extra-científico da criança até o saber profundo e transformado do especialista. Numa ciência temos que ser introduzidos. De antemão não já estamos em seus domínios. Não nascemos com nenhuma ciência inata. O homem pelo simples fato de ser homem ainda não é cientista.

Pois a ciência é uma possibilidade historicamente concretizada do homem, em primeiro lugar do homem ocidental. Essa possibilidade realizada no Ocidente começa hoje a alongar-se e cobrir o mundo inteiro, informando com sua forma todos os povos. Sem dúvida, não é um mero acaso. Não se trata de um processo, cuja evolução poderia ter sido sustada. Estamos diante de um destino histórico. Mas donde , provém esse destino?

Costumamos distinguir a vida pré-científica da atitude científica. Nessa distinção a vida pré-científica se nos afigura mais ampla, mais rica e variada. É tecida de comportamentos e relações, que se entrelaçam numa infinidade de setores: no campo das atividades práticas, do uso e confecção das coisas; no terreno da comunicação religiosa com poderes divinos; na esfera da convivência social com os outros homens; no plano de experiências estéticas da beleza, e em muitos outros. Antes de qualquer ciência a vida humana já é dinamizada pelo jogo dos chamados fenômenos existenciais: do amor e concorrência, do trabalho e luta pelo poder, do respeito aos imortais e medo da morte. A vida pré-científica tem profundeza e superfície. Conhece a banalidade do dia-a-dia e as horas de sua grandeza.

Desse mundo pré-científico brotam os motivos que conduzem por caminhos cruzados à origem e constituição da ciência. Das preocupações imediatas pela subsistência e meios de defesa, da sabedoria mágica dos sacerdotes, do espírito curioso de povos aventureiros, da ociosidade dos senhores, da admiração de naturezas contemplativas, da dúvida de espíritos céticos e de tantas outras fontes surge a ciência. Toda genealogia de uma ciência nos diz sempre da possibilidade de o homem existir sem ciência. Hoje, porém, na era atômica, não se trata de uma possibilidade ao alcance de nosso arbítrio. Por uma simples decisão de vontade não nos poderemos livrar da situação histórica em que de fato existimos. O caminho da ciência ocidental já não pode ser refeito nem há meios de escaparmos a nosso destino. Não obstante, a gênese e constituição da ciência e sua cultura revela um caráter episódico, que a torna, num sentido profundo, essencialmente temporal   e contingente. O que, sem dúvida, não significa que ela seja um produto do acaso ou que nela não operem forças originárias da existência humana. Todavia é possível separar humanidade e ciência. A necessidade da ciência é uma contingência histórica. O homem não precisa do espaço da ciência para desdobrar sua existência. E isso não vale apenas dos tempos arcaicos, para os períodos sem história do nomadismo primitivo. Vale principalmente para as grandes culturas não-ocidentais.

Talvez haja aqui lugar para uma objeção: depois que o homem, encontrando o conhecimento, tomou posse consciente de sua racionalidade, após ter descoberto em si a razão e na razão a liberdade, será mesmo que ele poderia deixar de fazer uso de suas possibilidades? Não teria então de aperfeiçoar, aprofundar e sistematizar seus conhecimentos? Não deveria tentar desvendar os segredos das coisas, perscrutar os mistérios do tempo e espaço, numa palavra, não teria de construir a ciência?

Sem a menor dúvida! Mas teria ele que seguir os moldes da ciência ocidental? Será essa a única forma possível de recionalidade? A única maneira de afastar a escuridão da animalidade? O único modo de instalar-se luminosamente no mundo da realidade e promover à luz do Sentido do Ser a verdade dos entes? Que concepção da verdade e que interpretação do Sentido da realidade torna possível a essencialização da ciência ocidental, impelindo-a a expandir-se e exercer-se num vigor planetário? São essas perguntas que interessam não à gênese histórico-ôntica e sim à gênese histórico-ontológica da ciência.


Ver online : APRENDENDO A PENSAR I