Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Canguilhem (NP:35-36) – doença

domingo 26 de abril de 2020

Carvalho Barrocas

A invalidade da opinião   do doente em relação à realidade de sua própria doença é um argumento de peso em uma recente teoria da doença; teoria, às vezes, um pouco imprecisa, porém cheia de sutilezas, concreta e profunda, a teoria de R. Leriche, que nos parece necessário expor e examinar, depois da teoria precedente, da qual, em certo sentido, ela é um prolongamento, mas da qual se afasta nitidamente em outros pontos. "A saúde, diz Leriche, é a vida no silêncio dos órgãos" [73, 6.16-1]. Inversamente, a "doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer" [73, 6.22-3]. O estado de saúde, para o indivíduo, é a inconsciência de seu próprio corpo. Inversamente, tem-se a consciência do corpo pela sensação dos limites, das ameaças, dos obstáculos à saúde. Tomando essas afirmações em seu sentido pleno  , elas significam que a noção de normal que se tem depende da possibilidade de infrações à norma. Estamos, enfim, diante de definições que não são absolutamente verbais, em que a relatividade dos termos opostos é correta. O termo primitivo nem por isso é positivo, e o termo negativo nem por isso é nulo. A saúde é positiva, mas não é primitiva; a doença é negativa, mas sob a forma de oposição (perturbação), e não de privação.

No entanto, apesar de ulteriormente não terem sido feitas reservas nem correções à definição de saúde, a definição de doença foi imediatamente retificada. Pois essa definição da doença é a definição do doente, e não a do médico. Apesar de válida do ponto de vista da consciência, ela não o é do ponto de vista da ciência. Com efeito, Leriche demonstra que o silêncio dos órgãos não equivale necessariamente à ausência de doença; que existem no organismo lesões ou perturbações funcionais que, durante muito tempo, são imperceptíveis para aqueles cuja vida tais perturbações estão colocando em perigo. O atraso com que muitas vezes sentimos nossos distúrbios internos é o preço que pagamos pela prodigalidade com a qual nosso organismo foi construído, tendo em excesso todos os tecidos: mais pulmão do que, em última análise, é necessário para respirar, mais rim do que é necessário para segregar a urina sem chegar à intoxicação etc. A conclusão é que "se quisermos definir a doença será preciso desumanizá-la" [73, 6.22-3]; e, exprimindo-se mais brutalmente ainda, que, "na doença, o que há de menos importante, no fundo, é o homem" [73, 6.22-4]. Portanto, não são mais a dor ou a incapacidade funcional e a enfermidade social que fazem a doença, e sim a alteração anatômica ou o distúrbio fisiológico. A doença ocorre no nível do tecido e, nesse sentido, não pode haver doença sem doente. Tomemos como exemplo um homem cuja vida — sem incidente patológico por ele conhecido — tenha sido interrompida por um assassinato ou um acidente. Segundo a teoria de Leriche, se uma autópsia para fins médico-legais revelasse um câncer do rim ignorado por seu portador já falecido, deveriamos concluir que havia uma doença, apesar de não ser possível atribuída a pessoa alguma: nem ao cadáver —já que um morto não é mais capaz de ter doenças — nem, retroativamente, ao vivo de outrora, que a ignorava, tendo terminado sua vida antes do estágio evolutivo do câncer em que, segundo as probabilidades clínicas, as dores teriam enfim criado o mal.

A doença, que jamais tinha existido na consciência do homem, passa a existir na ciência do médico. Ora, achamos que não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que, especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro. E eis o motivo: médicos e cirurgiões dispõem de informações clínicas e utilizam também, às vezes, técnicas de laboratório que lhes permitem saber que estão doentes pessoas que não se sentem doentes. É um fato. Mas um fato a ser interpretado. Ora, é unicamente por serem os herdeiros de uma cultura médica transmitida pelos clínicos do passado que os médicos de hoje em dia podem se adiantar e ultrapassar em perspicácia clínica seus clientes habituais ou ocasionais. Pensando bem, sempre houve um momento em que a atenção dos médicos foi atraída para certos sintomas, mesmo que unicamente objetivos, por homens que se queixavam de sofrer ou de não serem normais, isto é, idênticos a seu passado. E se, hoje em dia, o conhecimento que o médico tem a respeito da doença pode impedir que o doente passe pela experiência da doença, é porque outrora [35] essa mesma experiência chamou a atenção do médico, suscitando o conhecimento que hoje tem. Sempre se admitiu, e atualmente é uma realidade incontestável, que a medicina existe porque há homens que se sentem doentes, e não porque existem médicos que os informam de suas doenças. A evolução histórica das relações entre o médico e o doente na consulta clínica não muda em nada a relação normal permanente entre o doente e a doença.

Essa crítica pode ser proposta com tanta audácia porque Leriche, reconsiderando o que suas primeiras afirmações tinham de um pouco extremado, a confirma em parte. Distinguindo cuidadosamente o ponto de vista estático do ponto de vista dinâmico, em patologia, Leriche reivindica para o segundo uma completa primazia. Aos que identificam doença com lesão, Leriche objeta que o fato anatômico deve ser considerado, na realidade, como "segundo e secundário: segundo, por ser produzido por um desvio originariamente funcional da vida dos tecidos; secundário, por ser apenas um elemento da doença, e não o elemento dominante" [73, 6.76-6]. Em consequência disso, é a doença do ponto de vista do doente que, de modo bastante inesperado, volta a ser o conceito adequado de doença, mais adequado, em todo caso, que o conceito dos anatomopatologistas. "Impõe-se a noção de que a doença do doente não é a mesma que a doença anatômica do médico. Uma pedra em uma vesícula biliar atrófica pode não provocar sintomas durante anos e, por conseguinte, não criar uma doença, quando, no entanto, há um estado anatomopatológico… Sob as mesmas aparências anatômicas, pode-se ser ou não ser doente… Não se deve encobrir a dificuldade dizendo simplesmente que há formas silenciosas e larvadas de doenças: isto não passa de verbalismo. A lesão talvez não baste para constituir a doença clínica, a doença do doente. Esta é algo diverso da doença do anatomopatologista" [73, 6.76-6]. No entanto, convém não atribuir a Leriche mais do que ele está disposto a aceitar. Com efeito, o que ele entende por doente é muito mais o organismo em ação, em funções, do que o indivíduo consciente de suas funções orgânicas. O doente, nessa nova definição, não é exatamente o doente da primeira, o homem concreto, consciente de uma situação favorável ou desfavorável na existência. O doente deixou de ser uma entidade de anatomista, mas continua sendo uma entidade de fisiologista, pois Leriche esclarece: "Essa nova representação da doença leva o médico a entrar em contato mais estreito com a fisiologia, isto é, com a ciência das funções, a tratar de fisiologia patológica tanto ou mais que de anatomia patológica" [73, 6.76-6]. Assim, a coincidência da doença com o doente ocorre na ciência do fisiologista, mas não ainda na consciência do homem concreto. E, no entanto, essa primeira coincidência nos basta, pois o próprio Leriche nos fornece os meios de, por meio dela, obter a segunda.

Original

L’invalidité du jugement du malade concernant la réalité de sa propre maladie est un argument de poids dans une récente théorie de la maladie, théorie un peu flottante parfois, mais nuancée, concrète et profonde, celle de R. Leriche, qu’il paraît nécessaire d’exposer et d’examiner à la suite de la théorie précédente qu’elle prolonge en un sens et dont elle s’écarte nettement par ailleurs. « La santé, dit Leriche, c’est la vie dans le silence des organes » [73, 6.16-1 ] . Inversement, la « maladie, c’est ce qui gêne les hommes dans l’exercice normal de leur vie et dans leurs occupations et surtout ce qui les fait souffrir » [73, 6.22-3 ]. L’état de santé c’est l’inconscience où le sujet est de son corps. Inversement, la conscience du corps est donnée dans le sentiment des limites, des menaces, des obstacles à la santé. À prendre ces formules à leur sens plein, elles signifient que la notion vécue du normal dépend de la possibilité d’infractions à la norme. Voilà enfin des définitions nullement verbales, où la relativité des termes opposés est correcte. Le terme primitif n’est pas pour autant positif, et le terme négatif n’est pas pour autant un néant. La santé est positive  , mais n’est pas primitive, la maladie est négative mais sous forme d’opposition (gêne) et non par privation.

Toutefois, s’il n’est apporté ultérieurement ni réserve, ni correction à la définition de la santé, la définition de la maladie est immédiatement rectifiée. Car cette définition de la maladie, c’est celle du malade et non celle du médecin. Valable du point de vue de la conscience, elle ne l’est pas du point de vue de la science. Leriche montre en effet que le silence des organes n’est pas nécessairement équivalent de l’absence de maladie, qu’il existe dans l’organisme des lésions ou des perturbations fonctionnelles pendant longtemps imperceptibles pour ceux dont elles mettent la vie en danger. Nous payons du retard apporté souvent à ressentir nos dérèglements internes la prodigalité avec laquelle notre organisme a été construit, ayant trop de tous ses tissus : plus de poumon qu’il n’en faut pour respirer à la rigueur, plus de rein qu’il n’en faut pour sécréter l’urine à la limite de l’intoxication, etc. La conclusion est que « si l’on veut définir la maladie, il faut la déshumaniser » [73, 6.22-3 ] ; et plus brutalement que « dans la maladie ce qu’il y a de moins important au fond c’est l’homme » [73, 6.22-4 ] . Ce n’est donc plus la douleur ou l’incapacité fonctionnelle et l’infirmité sociale qui fait la maladie, c’est l’altération anatomique ou le trouble physiologique. La maladie se joue au niveau du tissu et, en ce sens, il peut y avoir maladie sans malade. Soit l’exemple d’un homme dont la vie, sans incident pathologique accusé par lui, a été interrompue par un meurtre ou une collision. Selon la théorie de Leriche, si une autopsie d’intention   médico-légale révélait un cancer du rein ignoré de son défunt porteur, on devrait conclure à une maladie, encore qu’il ne se trouverait personne à qui l’attribuer, ni au cadavre puisqu’il n’en est plus capable, ni rétroactivement au vivant d’autrefois qui ne s’en souciait pas, ayant fini sa vie avant le stade évolutif du cancer où, selon toute probabilité clinique, les douleurs eussent enfin crié le mal. La maladie qui n’a jamais existé dans la conscience de l’homme se met à exister dans la science du médecin. Or nous pensons qu’il n’y a rien dans la science qui n’ait d’abord apparu dans la conscience , et qu’en particulier, dans ce cas qui nous occupe, c’est le point de vue du malade qui est au fond le vrai. Et voici pourquoi. Médecins et chirurgiens ont une information   clinique et utilisent aussi parfois des techniques de laboratoire qui leur permettent de savoir malades des gens qui ne se sentent pas tels. C’est un fait. Mais un fait à interpréter. Or, c’est uniquement parce qu’ils sont les héritiers d’une culture médicale transmise par les praticiens d’hier, que les praticiens d’aujourd’hui peuvent devancer et dépasser en perspicacité clinique leurs clients habituels ou occasionnels. Il y a toujours eu un moment où, en fin de compte, l’attention des praticiens a été attirée sur certains symptômes, même uniquement objectifs, par des hommes qui se plaignaient de n’être pas normaux, c’est-à-dire identiques à leur passé, ou de souffrir. Si aujourd’hui la connaissance de la maladie par le médecin peut prévenir l’expérience de la maladie par le malade, c’est parce que autrefois la seconde a suscité, a appelé la première. C’est donc bien toujours en droit, sinon actuellement en fait, parce qu’il y a des hommes qui se sentent malades qu’il y a une médecine, et non parce qu’il y a des médecins que les hommes apprennent d’eux leurs maladies. L’évolution historique des rapports entre le médecin et le malade, dans la consultation clinique, ne change rien au rapport normal permanent du malade et de la maladie.

Cette critique peut être d’autant plus hardiment proposée que Leriche, revenant sur ce que ses premières formules avaient de trop tranchant, la confirme en partie. Distinguant soigneusement le point de vue statique et le point de vue dynamique en pathologie, Leriche revendique pour le second une primauté complète. À qui identifierait maladie et lésion, Leriche objecte que le fait anatomique doit être tenu en réalité pour « second et secondaire : second, parce que produit par une déviation primitivement fonctionnelle de la vie des tissus ; secondaire parce que n’étant qu’un élément dans la maladie et non pas l’élément dominant » [73, 6.76-6 ] . En conséquence de quoi, c’est la maladie du malade qui redevient, de façon assez inattendue, le concept adéquat de la maladie, plus adéquat en tout cas que le concept de l’anatomopathologiste. « La notion s’impose que la maladie de l’homme malade n’est pas la maladie anatomique du médecin. Une pierre dans une vésicule biliaire atrophique peut ne pas donner de symptômes pendant des années et par conséquent ne pas créer une maladie, alors qu’il y a état d’anatomie pathologique… Sous les mêmes dehors anatomiques on est malade et on ne l’est pas… On ne doit plus escamoter la difficulté en disant tout simplement qu’il y a des formes silencieuses et larvées des maladies : ce n’est là que le verbalisme. La lésion ne suffit peut-être pas à faire la maladie clinique, la maladie du malade. Celle-ci est autre chose que la maladie de l’anatomopathologiste » [73, 6.76-6 ]. Mais il convient de ne pas prêter à Leriche plus qu’il n’est décidé à accepter. Ce qu’il entend, en effet, par le malade c’est beaucoup plus l’organisme en action, en fonctions, que l’individu conscient de ses fonctions organiques. Le malade, dans cette nouvelle définition, ce n’est pas tout à fait le malade de la première, l’homme concret conscient de sa situation   favorisée ou défavorisée dans l’existence. Le malade a cessé d’être une entité d’anatomiste, mais il reste une entité de physiologiste, car Leriche précise : « Cette représentation nouvelle de la maladie conduit la médecine à prendre un contact plus étroit avec la physiologie, c’est-à-dire avec la science des fonctions, à s’occuper au moins autant de la physiologie pathologique que de l’anatomie pathologique » [73, 6.76-6 ] . Ainsi la coïncidence de la maladie et du malade s’opère dans la science du physiologiste, mais non pas encore dans la conscience de l’homme concret. Et pourtant cette première coïncidence nous suffît, car Leriche lui-même nous fournit les moyens d’obtenir, à partir d’elle, la seconde.

[Excerto de CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Tr. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 35-36]


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