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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE HEIDEGGER

Boutot (IFH:77-82) – Esquecimento do ser

6. A metafísica enquanto história do esquecimento do ser

terça-feira 30 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

A história da filosofia ou da metafísica, termos sinônimos para Heidegger, confunde-se em definitivo com a história da emergência lenta e progressiva do pensar segundo os valores. Esta assimilação do ser ao valor, levada a efeito em várias etapas, é a verdade última, e talvez íntima, da história da metafísica enquanto história do platonismo.

Heidegger distingue três períodos ou épocas fundamentais na história da metafísica: os gregos (Platão   e Aristóteles  ), depois os romanos e a Idade Média, e, por fim, a época moderna (Descartes  , Kant   e Nietzsche  , essencialmente). Cada uma das épocas corresponde a um modo particular de doação, ou antes, de ocultação do ser e é dominada por um conceito particular da verdade. Elas não estão encadeadas umas nas outras à maneira hegeliana, mas formam, diz Heidegger, «uma sequência livre»(Que é a filosofia?, Questions II, Paris, Gallimard, 1968, p. 26) e, todavia, de modo paradoxal, constituem igualmente etapas decisivas na consolidação do esquecimento do ser.

A) Platão. — O pensamento de Platão é o palco de todas as mutações e o lugar de todas as invenções. Platão é, para o conjunto da tradição, o protótipo do filósofo, e marcou toda a história do pensamento ocidental: «Toda a filosofia ocidental», diz Heidegger, «é platonismo. Metafísica, idealismo, platonismo, significam a mesma coisa por essência. Eles permanecem o enquadramento em que as oposições ou as contra-correntes têm lugar» (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 176). Platão inaugura o modo, a partir de então prevalecente, de se representar as relações do ser e do ente, e edifica as linhas-mestras de toda a metafísica. «[Platão]», explica Heidegger, diz que entre o ser e o ente há chorismos ; chora significa o local. Platão quer dizer que o ser e o ente estão em lugares diferentes» (Qu’appelle-t-on penser?, Paris, PUF, 1959, p. 261). Platão instaura uma cesura, uma falha entre o ser e o ente. O ser não se encontra na coisa presente, mas para além, na ideia, que não é uma representação subjetiva, mas o aspecto ou a face inteligível da própria coisa. Nesta oposição entre a ideia e a coisa, o ser e o ente, o ser como tal, continua a faltar, uma vez que o ser enquanto ideia eidos  , idea   está fundamentalmente referido ao ente enquanto essência deste. O ser, enquanto ideia, é o ente verdadeiro, o ente propriamente dito ontos on e não o ser enquanto tal.

B) Aristóteles. — A palavra fundamental de Aristóteles, aquela que abriga a essência do ser, é energeia   (ato), que não se deve interpretar retrospectivamente à luz do conceito moderno de «energia», e que significa, conforme o sentido da palavra ergon   (obra) em grego, «a presença que se mantém no não-ocultado do que está estabelecido, lá colocado e mantido de pé» (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 325). Ao encontrar o ser na «atualidade» da coisa presente e não numa ideia transcendente, «Aristóteles», diz Heidegger, «pensa mais no sentido grego, ou seja, mais em conformidade com a essência inicial do ser, que Platão» (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 329). A metafísica aristotélica surge, em vários aspectos essenciais, como uma espécie de regresso, para lá de Platão, as experiências originais que deram origem ao primeiro pensamento grego, e é provavelmente o que explica o lugar importante que Heidegger lhe concedeu na sua obra. Isto não quer dizer, no entanto, que Aristóteles tenha conquistado a essência autêntica do ser, pois a sua interpretação do ser desenvolve-se apesar de tudo no quadro conceptual traçado pelo próprio Platão. O «realismo» aristotélico desenvolveu-se como reação contra o idealismo platônico e recebeu deste último o seu cunho determinante. A filosofia aristotélica pertence, pois, à história do platonismo, e não escapa a esse título à história do esquecimento do ser.

Com Aristóteles é, ao mesmo tempo, a grande filosofia grega e a primeira época da história da metafísica que se completam. Essa época caracteriza-se pela compreensão do ser como presença (ousia  ; como parousia) e pela determinação da verdade como correspondência homoiosis  .

C) Os Romanos. — A época romana representa uma etapa charneira na história do pensamento ocidental. Ela é responsável, não apenas pelo enterro do pensamento grego primitivo, ou seja, do domínio original da verdade do ser que aflorava ainda em locais da filosofia de Platão e de Aristóteles, mas também pela constituição do pensamento moderno. A essência da romanidade reside, para Heidegger, no imperium, no império, ou seja, no domínio fundado sobre a ordem e o comando. De acordo com esta essência «imperial» da romanidade, o verdadeiro e o correto (rectus) quer dizer o que está conforme ao que foi ordenado. O ser, por sua vez, é o real no sentido do efetivo (actualitas  ), determinação que se estende através de toda a história ocidental até aos tempos modernos mais recentes. «Porque a determinação da essência do ser enquanto actualitas», diz Heidegger, «comporta de antemão toda a História… toda a História ocidental é, em diversos sentidos, romana e não mais helênica. Todo o trabalho posterior para ressuscitar a Antiguidade grega não é mais que uma renovação romana do helenismo reinterpretado à partida no sentido romano  » (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, pp. 331-332). A época romana é inteiramente regida pela caracterização da verdade como rectitudo.

D) Os tempos modernos. —A terceira e última grande época da história da metafísica é a dos tempos modernos e começa com Descartes. Esta época repousa sobre uma nova determinação da verdade como certitude. Esta nova determinação da essência da verdade vai a par com a entrada do ser na esfera da representação (o ser enquanto idea), e com a promoção do homem à posição de sujeito, isto é, à posição de fundamento e de medida da verdade das suas representações e, portanto, do próprio ser. Assegurando-se da verdade das ideias que ele se propõe no seu íntimo, o homem não está orientado para o ser enquanto ser, mas para o ente na totalidade, ou seja, para a Natureza, da qual ele procura fazer-se «senhor e possuidor». Depois de Descartes, o pensador fundamental é Kant, que é, «no interior da metafísica moderna, o centro do ponto de vista, não apenas cronológico, mas essencialmente historial, pela maneira como absorve o princípio da metafísica moderna de Descartes e o transforma, pela sua explicação, juntamente com Leibniz  » (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 184). A posição metafísica fundamental de Kant está consignada na proposição seguinte: «as condições de possibilidade da experiência em geral», diz Kant, «são também as condições de possibilidade dos objetos da experiência» (Critique de la Raison Pure, Paris, PUF, p. 162). O ser reside nas condições de possibilidade da experiência. Estas desenham a estrutura da objetividade, ou ainda, o plano do ser do ente encontrado na experiência. Esta caracterização do ser como condição de possibilidade constitui uma etapa essencial no processo de aniquilação em benefício do ente que rege a filosofia ocidental desde Platão.

E) Nietzsche. — O último pensador do Ocidente, aquele em que a metafísica entra no seu estado terminal, não no sentido de cessação mas de esgotamento das possibilidades de essência abertas pelo pensamento platônico, é Nietzsche. Nietzsche inverte a metafísica e promove o ente sensível, o mundo da vida e do devir (o hen   on platônico), à posição do ente verdadeiro, e baixa o ser (o ontos on) ao nível da pura ilusão, do que não tem qualquer efetividade. Mas, nesta inversão, Nietzsche continua determinado por aquilo que inverte, isto é, pela metafísica e pelo platonismo. Nietzsche concebe o ser como um valor, como um ponto de vista posto e imposto por e para a vontade de poder. Porque os valores são condições da conservação e da exaltação da vontade de poder e a vontade de poder não é uma simples determinação psicológica, mas o carácter fundamental do ente, «Nietzsche», diz Heidegger, «pensa a entidade do ente enquanto condição, enquanto aquilo que torna possível, apto, enquanto agathon  . Pensa o ser absolutamente no sentido platônico e metafísico — mesmo enquanto inversor do platonismo, mesmo enquanto antimetafísico» (Nietzsche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 180). O ser, enquanto valor é apenas uma miragem, um simples predicado impresso na superfície das coisas, «a última fumarada de uma realidade que se volatiliza». Ao reduzir o ser a um valor e a um vapor, Nietzsche leva o esquecimento do ser ao seu cúmulo. Não apenas não capta o ser na sua eclosão, mas ainda torna supérflua e ilusória toda a interrogação a este respeito. O ser é um erro que não se pode perseguir sem se ser vítima da mesma mistificação que vitimou a metafísica durante vinte e cinco séculos ao acreditar na existência de Ideais valendo por si mesmos. «Assim», diz Heidegger, «a metafísica de Nietzsche não chega a superar o niilismo» (Ibid., p. 273 ).

A história da filosofia ou da metafísica, termos sinônimos para Heidegger, confunde-se em definitivo com a história da emergência lenta e progressiva do pensar segundo os valores. Esta assimilação do ser ao valor, levada a efeito em várias etapas, é a verdade última, e talvez íntima, da história da metafísica enquanto história do platonismo. Nesta história, o ser continua a faltar sem que essa ausência tenha sido percebida como tal. Ignorando tudo do ser, a metafísica é a fortiori incapaz de experimentar o niilismo que a caracteriza. Não só não discerne o ser enquanto ser, como também não suspeita que deixa o ser no esquecimento. Esta indiferença da metafísica a respeito da sua própria indiferença relativamente ao ser é a essência do que Heidegger chama «o apuro da falta de apuro (die Not   der Notlosigkeit)» que é a forma mais extrema de apuro.


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