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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE HEIDEGGER [IFH]

Boutot (IFH:100-104) – Heidegger, Jünger e Técnica

O Problema da Modernidade

sexta-feira 17 de fevereiro de 2017, por Cardoso de Castro

A técnica moderna, no sentido essencial da ordenação, ataca o homem que «no interior do sem-objeto, não é mais que o executante do fundo» e torna-se ele mesmo «um fundo».

Todas estas análises, que descrevem a mobilização total do mundo pela técnica na época moderna, podem fazer pensar nas que Ernst   Jünger   desenvolvia no seu livro Der Arbeiter   (1932). O próprio Heidegger indicou, de resto, tudo o que a sua conferência sobre A Questão da Técnica devia às «descrições de O Trabalhador», e sublinha a importância fundamental desta obra que «empreende de uma forma diferente da de Spengler   aquilo de que até aqui toda a literatura nietzscheana se tinha mostrado incapaz; tenta tornar possível uma experiência do ente e do modo segundo o qual ele é, à luz do projeto nietzscheano do ente como vontade de poder» (Contribuição à questão do ser, Questions I, Paris, Gallimard, 1968, pp. 205-206). Isto não quer dizer, contudo, que Heidegger se contentaria em retomar as análises de O Trabalhador sem nada lhes acrescentar de essencial. A obra de Jünger continua, com efeito, qualquer que seja a pertinência das suas descrições, principalmente insuficiente na medida em que ela não se interroga de todo sobre as causas profundas nem sobre a significação verdadeira do reino da vontade de poder, enquanto vontade de vontade, na época moderna. «A metafísica de Nietzsche   não é de modo nenhum captada [n’O Trabalhador] de forma pensante; os caminhos de um tal pensamento não estão mesmo indicados; pelo contrário, em lugar de se tornar problemática no verdadeiro sentido da palavra — isto é, digna de questão —, esta metafísica torna-se evidente e aparentemente supérflua» (Ibid., p. 206). Noutros termos, Jünger descreve a mobilização técnica do mundo servindo—se de conceitos da metafísica nietzscheana mas sem pôr em questão estes conceitos. Para Jünger, a mobilização técnica do mundo é a resposta adaptada à promoção do niilismo, caraterística da época moderna. Longe de estar cheia de ameaças, ela marca o advento de uma nova figura do homem, desenhada sobre o super-homem nietzscheano, a do Trabalhador, herói dos tempos modernos. Esta visão «heroica» da técnica acentua ainda a técnica, segundo Heidegger, e não permite aperceber a essência da técnica, e ainda menos o perigo que lhe é inerente. E este perigo insuspeito, e isto de forma necessária, por Jünger que Heidegger trata, pelo contrário, de estigmatizar. A técnica, «a ordenação desdobra o seu ser, diz ele, como o perigo» ([GA11  , A viragem, Questions IV, Paris, Gallimard, 1976, p. 142).

A falar verdade, tornou-se corrente denunciar os perigos ligados ao desenvolvimento da técnica e os riscos com que o seu uso incontrolado ameaça a Humanidade. De qualquer modo, não são as produções da técnica, nem mesmo a sua utilização, que são perigosas para Heidegger, mas, em primeiro lugar e antes de mais, a essência da própria técnica, ou seja, o comportamento provocante que rege, doravante, a relação do homem com o ente. «A técnica», diz ele, «não é o que é perigoso. Não há nada de demoníaco na técnica, mas há o mistério da sua essência. E a essência da técnica, na medida em que é um destino do desvelamento, que é o perigo» (GA7  , A questão da técnica, op. cit., p. 37). A técnica moderna, no sentido essencial da ordenação, ataca o homem que «no interior do sem-objeto, não é mais que o executante do fundo» e torna-se ele mesmo «um fundo» (Ibid., p. 36). Põe o homem em perigo, não apenas porque os meios técnicos tornam, doravante, possível uma destruição da espécie humana inteira, mas também porque ela ameaça, de maneira bem mais profunda, a essência pensante do homem, quer dizer a sua relação ao ser. Só tendo a ver com um fundo, o homem moderno se erige em «mestre e possuidor da natureza», a ponto de lhe poder parecer que só se encontra a si mesmo por toda a parte, que não há nada que não esteja ou não possa estar em seu poder. Trata-se aí, na realidade, da maior ilusão, pois «hoje», diz Heidegger, «o próprio homem, precisamente, não se encontra em verdade em parte alguma, ou seja, ele não encontra mais o seu ser» (GA7, A questão da técnica, op. cit., p. 36 ). O homem, que discerne todas as coisas e a si também segundo o ponto de vista do pensamento calculante, atém-se ao ente sobre o qual procura exercer o seu domínio, e não se preocupa mais com o que deveria dizer respeito mais que qualquer outra coisa, ou seja, o próprio ser. Não cuidando mais de entrar na proximidade essencial das coisas, nem de salvaguardar o seu desdobramento na presença, ele erra num não-mundo. Requerido pela ordenação, compromete a terra «nas grandes fadigas, na usura e nas variações do artificial» (GA7, Superação da metafísica, ibid., p. 113) e «força a terra a sair do círculo do seu possível, tal como ele se desenvolveu em torno dela, e possui-a naquilo que já não é possível» (Ibid.). Esta agressão contra tudo o que existe culmina na tentativa atual de dominar a própria vida, que se torna um produto como qualquer outro que se procura manipular ou transformar. Esta agressão contra a vida e contra o próprio ser do homem é mais inquietante aos olhos de Heidegger que a hipoteca de uma destruição que pesa sobre o planeta. «Em comparação com esta agressão», diz ele, «a explosão da bomba de hidrogênio não significa grande coisa» (GA16  , Serenidade, Questions III, Paris, Gallimard, 1966, p. 174), pois não é apenas o homem que ameaça aniquilar, mas a sua essência.

Porém, a técnica não ameaça apenas o homem na sua relação consigo mesmo e com tudo o que é, mas também e sobretudo a verdade e o desvelamento do próprio ser. «A ordenação provocante não se limita a ocultar um modo precedente de desvelamento, o pro-duzir, mas oculta também o desvelamento enquanto tal, e com ele, aquilo em que a não-ocultação, ou seja, a verdade, se produz. A ordenação mascara-nos o estrondo e a potência da verdade» (GA7, A questão da técnica, op. cit, p. 37 ). A técnica é a época do extremo esquecimento do ser, ou ainda a do «abandono longe do ser (die Seinsverlassenheit  )» (GA7, Superação da metafísica, ibid., p. 104). Ela desdobra-se no vazio deixado pelo ser, e a azáfama ou a errância junto do ente podem ser interpretadas como uma tentativa desesperada para encher esse vazio. «Como o vazio do ser», diz Heidegger, «… jamais pode ser enchido pela plenitude do ente, só resta, para lhe escapar, organizar sem cessar o ente para tornar possível, de um modo permanente, a ordenação entendida como a forma sob a qual a ação sem objetivo é posta em segurança» (Ibid., p. 110). Deste ponto de vista, a técnica seria «a organização da penúria» (Ibid., p. 110). Não é, porém, de crer que o perigo inerente à essência da técnica, isto é, o abandono longe do ser, devesse ser sentido como tal, bem pelo contrário. Pertence, com efeito, à essência do perigo dissimular—se a si mesmo, e é mesmo esta auto-dissimulação do perigo que constitui aos olhos de Heidegger «o que há de mais perigoso no perigo» (GA11, A viragem, op. cit., p. 142). Porque diz respeito ao próprio ser, o perigo ligado à essência da técnica não é um perigo qualquer, mas o perigo por excelência, ou o perigo supremo — a ordenação (Das Ges-tell), enquanto destino (Geschick  ) do desvelamento, é o perigo (Die Gefahr  ).


Ver online : Alain Boutot