Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Boutot (IFH:74-77) – A essência ontoteológica da metafísica

terça-feira 30 de maio de 2017

Após a viragem, Heidegger não procura mais encontrar nos seus predecessores as premissas da sua própria interrogação em direção ao ser, mas denuncia o esquecimento a que o conjunto do pensamento ocidental, desde Platão  , e mesmo já anteriormente, relegou o ser. Esta inflexão da interpretação revela em Heidegger uma mudança de atitude face à metafísica, doravante considerada como um pensamento fundamentalmente esquecido do ser, que, por conseguinte, não deveria ser repetida, depois de o ter destruído ou des-construído, mas deveria ser simplesmente abandonada a si mesma.

A metafísica, que reina sem concessões sobre a filosofia ocidental, desde Platão, é conduzida por uma questão essencial: que é o ente? Como o seu nome indica, a metafísica ultrapassa meta o ente physis   em direção ao seu ser, ela procura saber o que constitui a essência ou a entidade (Seiendheit  ) do ente. Mas esta ultrapassagem pensa o ser a partir e em benefício do ente, e deixa o ser impensado enquanto ser. Representa o ser, de modos diversos, quase como um ente, quer seja como uma realidade transcendente à maneira das ideias platônicas, quer como uma essência imanente a cada coisa. Ignora o «Há», o advento do ser, e a diferença ontológica. Na metafísica, o ser continua a faltar. Para a metafísica, nada (nihil  ) tem a ver, afinal, com o ser enquanto tal, e é por isso que Heidegger pode dizer que «a metafísica enquanto metafísica é um autêntico niilismo» (Nietzche II, Paris, Gallimard, 1971, p. 275; GA6T2  ).

Enquanto ciência do ente, e não do ser enquanto tal, a metafísica é, necessariamente, dimorfa. «A metafísica», diz Heidegger, «representa de uma dupla maneira a entidade do ente: por um lado, a totalidade dos seus traços mais gerais (on katholou  , koinon  ), mas ao mesmo tempo, e por outro lado, a totalidade do ente no sentido do ente mais elevado e, portanto, divino on katholou, akrotaton, theion  » (Que é a metafísica?, Prefácio, Questions I, Paris, Gallimard, 1968, p. 40). A metafísica é ao mesmo tempo ontologia e teologia. Enquanto ontologia, a metafísica investiga os predicados mais gerais que pertencem a todo o ente enquanto ente. Enquanto teologia, a metafísica procura fundar o ente no seu ser, e investigar a causa primeira, a ultima ratio fornecendo a razão de ser de cada coisa. Ciência ao mesmo tempo fundamental e fundadora, «a metafísica, pensada de um modo mais claro e mais verdadeiro, é uma onto-teo-logia» (A constituição onto-teo-lógica da metafísica, ibid., p. 293). O dimorfismo da metafísica não é, por certo, uma descoberta de Heidegger. Já tinha sido reconhecido por Aristóteles  , mas a sua origem e a sua necessidade nunca tinham sido notadas antes, e isto por uma razão fundamental. Na sua conferência A Constituição Ontoteológica da Metafísica, Heidegger faz repousar a estrutura ontoteológica da metafísica sobre a diferença ontológica, quer dizer sobre a diferença do ser e do ente. Não havendo acesso ao ser como tal, nem à diferença do ser e do ente, ou seja, ao ser enquanto diferença, a metafísica encontra-se na incapacidade de discernir a proveniência da sua estrutura ao mesmo tempo una e dual.

Ainda que o esquecimento do ser e da diferença do ser e do ente seja um evento interior à própria essência do ser, e seja, deste ponto de vista, tão antigo quanto o próprio pensamento ocidental, só começou, porém, a exercer o seu poder e a alargar o seu reino no Ocidente a partir de Platão. Desde esse momento, a verdade do ser, que procurava dizer-se nos primeiros pensadores da Grécia, encontrou-se inteiramente ocultada, e os filósofos posteriores só confirmaram, agravando—a, esta ocultação inicial. (Alain Boutot  , Introdução à Filosofia de Heidegger)


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