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A Fenomenologia no Brasil

Beneval de Oliveira: O “Ser Selvagem”

Na Historicidade de Merleau-Ponty

segunda-feira 4 de outubro de 2021

A Fenomenologia no Brasil, Beneval de Oliveira, Pallas, 1983

É indiscutível que o problema da historicidade na filosofia contemporânea está ligado ao desenvolvimento de um processo dialético e antes que ao puramente objetivo se procura investigar na subjetividade a origem desse processo.

Não foi à-toa que Nietzsche   ao fundamentar a sua filosofia da arte partiu do princípio de que o homem é um ir além de si mesmo, como tônica de sua “vontade de poder”. Assim, a problemática do homem está ligada à atividade criadora, à facticidade, a um fazer, a um produzir, ao poein grego, que se mostra como uma necessidade irrecorrível do ser humano, no circuito do mundo.

Não é muito diversa a tese de M. Heidegger na concepção ontológica e poemática do “Ser-Aí”, como ser no mundo, isto é, como “ser com outrem”, como coexistência humana.

A temática da historicidade está magnificamente assentada na filosofia de M. Merleau-Ponty  , que através de uma “ontologia do sensível”, mantendo-se fiel ao método fenomenológico, vai abordar questões vitais para a compreensão da problemática humana neste vasto setor da existência, ou seja do mundo da vida, Lebenswelt  .

Antes de tudo, como tão bem acentuou Creusa Capalbo, na sua tese de doutorado L’historicité chez Merleau-Ponty, esta historicidade se situa, desde o começo, na passagem de uma filosofia da consciência, isto é, da Erlebnis husserliana para uma filosofia do “Ser Selvagem” do qual é central a noção de Urstiftung.

É que Merleau-Ponty tem o sentido de uma filosofia global da existência (consciência e corpo) e dentro dessa concepção do homem integrado no mundo, parte para definições que convergem para a explicação de uma historicidade autêntica, que, a nosso ver, não pode deixar de satisfazer os espíritos mais exigentes, sempre que nos engajamos no modo de compreender a História, como ela realmente é. Porque jamais se poderá compreender a História se não partimos do estudo do próprio homem, que é o seu indiscutível agente, ligado obviamente, ao mundo cultural de que fez parte, pois é ilusório pensar que se possa compreendê-lo fora de seu meio geográfico, histórico e social. Assim, se a história individual pode ser estudada a partir da subjetividade, sua complementação no mundo objetivo não poderá ser feita se nos desvincularmos do social onde nos encontramos como ser no mundo, ou como ser com outrem, isto é, coexistindo com outros no mundo da vida.

Isto posto, podemos assinalar, citando Merleau-Ponty [1], descobrimos pois com o mundo, como berço das significações, o sentido de todos os sentidos e solo de todos os pensamentos, o meio de ultrapassar à alternativa do realismo e do idealismo, do acaso e da unidade primordial de todas as nossas experiências no horizonte de nossa vida e termo único de todos os nossos projetos”.

Entretanto, “a tradição do social, ou do mundano, não mata sua liberdade, mas, ao contrário, a cultura e a sociedade são formadoras do homem, mas de sua parte, é o homem quem as forma e as transforma. Vale-se, para tanto, da linguagem que tem o poder de significar os discursos atuantes e transformadores. De qualquer modo, a marcha para a realização do ser humano é o exercício de seu poder cultural que não é somente poder de se movimentar, mas também de se afetar e de se simbolizar através da palavra. De tal sorte que isto que está em questão é a instituição da pessoa, sua formação para o exercício de seu poder-ser este ou aquele, de se consagrar a um projeto que move sua vida”. [2]

Merleau-Ponty designa sob o termo de instituição “todos os acontecimentos de uma experiência que a dotam de dimensões duráveis, por relação aos quais toda uma série de outras experiências tendo sentido, formarão um contexto pensável ou uma história. Por consequência, a vida pessoal marcada pelo tempo que vai da vida à morte, apresenta as características de instituição: ela estabelece uma estrutura durável onde o ritmo de conservação dos antigos acontecimentos se liga à exigência de uma ultrapassagem, de um futuro”. [3]

Conforme já assinalamos, sendo a história um processo dialético, obviamente a instituição obedece a um estado de conservação e ultrapassamento. Diga-se de passagem que a instituição já é um estado de tensão dialética entre o instituinte e o instituído. Saliente-se, ipso fato, a instituição como obra humana tem sua fugacidade ou sua transitoriedade determinada pelo que ela significa no seu contexto histórico, pois “ela aparece e nasce para realizar uma certa tarefa que a sociedade exige. Mas como a sociedade é sempre tensional, pois está sob a influência da dialética, ocorre que a ação de um instituinte por vezes se torna válido para o instituído, sobrepujando-o e assim viabilizando novos modelos, novas formas de vida, novas mudanças, novos padrões políticos, econômicos e sociais.

O homem, por si próprio, está sob o influxo do desejo num estado de devenir eterno. O desejo é fundamentalmente o desejo que tem o indivíduo de instituir-se e de impor-se no seu relacionamento inter-humano, pois como tão bem salientou Merleau-Ponty “só há história para um sujeito e só há sujeito situado historicamente”. E mais adiante: “Não há uma significação única na história; o que fazemos tem sempre vários sentidos e é nisto que uma significação existencial da história se distingue tanto do materialismo como do espiritualismo”. [4]

De outro lado, “é preciso reconhecer que tudo é necessidade no homem e, por exemplo, não é por simples coincidência que o ser racional é também aquele que se mantém de pé ou possui um polegar que se opõe aos outros dedos, a mesma maneira de existir se manifesta aqui e lá”. [5]

Diz ainda Merleau-Ponty: “Tudo é contingência no homem, no sentido de que esta maneira humana de existir não é garantida a qualquer criança por alguma essência que teria recebido no seu nascimento e que deve constantemente se refazer nela através dos acasos do corpo objetivo. O homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural. Em outras palavras, não há na existência humana nenhuma posse incondicionada e logo nenhum atributo fortuito: A existência humana nos obrigará a rever nossa noção usual da necessidade e da contingência porque ela é a mudança da contingência em necessidade pelo ato de retomada.

Tudo o que somos, o somos numa base de situação de fato que fazemos ser nossa e que transformamos incessantemente por uma espécie de escape, que nunca é uma liberdade incondicionada” [6].

Já se vê, portanto, que o instituído é sempre ultrapassado e este ultrapassamento se baseia num desejo que advém de uma carência, de uma falta impregnada em seu ser, de uma necessidade que coloca o ser humano em movimento não só no sentido temporal  , como no sentido espacial da história.

Para Merleau-Ponty “a história é alguma coisa que se fez, a história não constituí seu próprio sentido pelo intermediário de uma razão imanente, ele reconhece, não obstante, a parte necessária que a liberdade humana deve trazer para que o sentido da história se faça. Esta última pode realizar ou não o sentido que se debuxa, que nela se propõe, pois que será somente atualizada se assumida pelas liberdades humanas que a fazem. Consequentemente, não podemos falar de um sentido total da história que se faça de forma necessária. Podemos, entretanto, assegurar, que se razão e acaso se ligam na história, deve ser possível captar as formas estáveis, de distinguir as regularidades que nela se manifestam, de lhes comparar às diversas épocas ocorridas no tempo.

E assim que se fala de uma direção na história ou de um progresso na história, captáveis pelos signos que indicam uma direção típica revelável nos acontecimentos através dos quais, em virtude da ação coletiva dos homens, brota o sentido; é neste entrecruzamento de resposta que levamos ao que a história nos propõe e da objetividade que aí se manifesta, instituindo um sentido e o progresso da história” [7].

Verifica-se, portanto, que o sentido da historicidade chamado vertical em Merleau-Ponty, tem um sentido profundo de abertura que se origina de um fundamento, de um instituinte que desabrocha num instituído. O “Ser Selvagem” caminha para uma constante recriação, para uma renovação, para uma desabrochar das coisas que tem como base a physis   grega que é luzimento, eclosão, claridade, transbordamento, abertura.

A vida é um fluir que flui na coexistência do Mitsein   e este Mitsein é certamente um relacionamento que se movimenta na existência social na qual se desenrola a história. Então, a História deve ser compreendida, estudada e significada por meio de nossas experiências que são vividas no fluxo do tempo.

Razão por que Merleau-Ponty assinala que não devemos andar com a História em cima da cabeça, como se ela fosse uma teorética ou uma fonte abstrata de teorias, doutrinas ou conceitos. Reduzida às proporções humanas todos os fatos históricos têm a sua significação, “palavras, gestos, atitudes, ações, que se traduzem na arte, na política, na economia, na religião.

Não vamos omitir o sentido dialético de todo esse relacionamento que está em permanente mobilidade, em constante alteração, no sentido de substituir isto por aquilo, de mudar personagens e estruturas, de trocar regimes e governos.

No fundo da história está sempre o estado tensional da sociedade. Nesta porfia tudo nela se integra: o fator econômico, o fator político, o fator religioso, em tudo há uma dinâmica que é caracterizada em vários sentidos e direções, o que lhe permite dar-lhe as mais diferentes significações e estas não podem desvincular-se da realidade existencial que se cifra no corpo e na consciência.

Pode, assim, como anota Merleau-Ponty ganhar a história uma interpretação existencial, sem que nos preocupemos com a ambiguidade que está nas coisas.

Pergunta Merleau-Ponty: Deve-se compreender a história, a partir da ideologia, ou da política, ou da religião, ou então da economia”? Deve-se compreender, observa ele, todas as maneiras ao mesmo tempo; tudo tem um Sentido, encontramos sob todas as relações a mesma estrutura do ser. Todas essas perspectivas são verdadeiras com a condição de que não as isolemos, de que caminhemos até o fundo da história e de que aprendamos o único núcleo de significação existencial que se explicita em cada perspectiva” [8].

Dentro desta temática vale mencionar a contribuição do Prof. José Sotero Caio [9] que após salientar “a consciência engajada” como marca fundamental da filosofia de M. Merleau-Ponty, situa-o, baseado em A. De Waelhens  , como um verdadeiro campeão de “uma filosofia da ambiguidade”. Com efeito, esta filosofia constitui muito bem o sentido de sua obra, que é o obrar da natureza humana toda ela calcada na imprevisibilidade, “pois, enquanto houver homens o futuro será aberto, não haverá o relativo senão das conjeturas metódicas e não um saber absoluto”, como pretendia o panlogista Hegel  .

Enfim, o mundo é um inacabamento e a vida humana uma infinidade de meios possíveis que está moldada nas suas relações intersensoriais.

BIBLIOGRAFIA

1) CAPALBO, Creusa — L’historicité chez Merleau-Ponty — Revue Philosophique de Louvain — Tome 73 — Aoüt 1975 — 535 pp.

2) DE WAELHENS A. — Une Philosophie   de l’Ambiguité — L’existencialisme de Maurice Merleau-Ponty. Publs. Univs. de Louvain, Louvain — Belgique.

3) MERLEAU-PONTY, Maurice — A Fenomenologia da Percepção. 1972. Livraria Freitas Bastos — Rio de Janeiro. Traduzido do francês por Reginaldo de Piero — 465 pp.


La Structure du Comportement — 1942 — P.U.F. — Paris. 251 pp.

4) SOTERO CAIO, José — O Conceito de Historicidade em Merleau-Ponty face ao terrorismo — Boletim de Filosofia n, 3 — Instituto de Filosofia e Ciências Sociais — Universidade Federal do Rio de Janeiro — 77 pp.


[1Merleau-Ponty — A Fenomenologia da Percepção — p. 433

[2Creusa Capalbo — L’historicité chez Merleau-Ponty — Revue Philosophique de Louvain — Tome 73 — Aoüt 1975

[3Apud Ibid. — p. 512

[4Merleau-Ponty — Ibid p. 184

[5Merleau-Ponty, La structure du comportement. Paris — P.U.F. — 1942

[6Merleau-Ponty — Ibid. p. 65

[7Apud Creusa Capalbo — Op. Cit. P. 529

[8Merleau-Ponty — Op. cit. p. 403

[9Sotero Caio, José — Boletim de Filosofia, n. 3 junho de 1981