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Considerações sobre a crise do senso comum

Barbuy: senso comum (9) - habitar

Revista Brasileira de Filosofia, vol. III, fasc. 4, 1953

quarta-feira 6 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 157-159.

9. Por que, pois, dirá Nietzsche   que não há mais horizontes ao redor? Talvez porque a terra não é mais o lugar em que se habita: habitar um lugar não é apenas estar nele; o habitar não é um ato físico, mas metafísico; o habitar um lugar supõe que haja possibilidade de habitar e supõe que exista o lugar; isto envolve a proximidade e a distância, a duração e o sentido das cousas.

Habitar é ter uma vizinhança, estar próximo do que se vive; habitar é estar num lugar, que não é um trecho do espaço, mas um espaço indivisível, fechado em si mesmo, formando um todo; mas, para que haja o espaço habitado, é preciso que se veja que o espaço é heterogêneo, que há outros lugares além daquele que se habita; há o espaço estranho e o espaço familiar; o lugar que se habita distingue-se de todos os demais, porque é o lugar que se vive, que se impregna da personalidade do habitante. O local habitado se confunde de tal modo com a família, que entre os romanos o termo locus   foi às vezes tomado como sinônimo de mãe e útero, em Virgílio e Plínio; a determinação do lugar em que se funda a cidade e a residência é um ato sagrado nas culturas antigas; o local determinado se identifica com os seus lares protetores; e assim também na tradicional doutrina da Igreja, cada indivíduo, cada domicílio, cada cidade, cada igreja e cada nação tem a marca do seu anjo. Os antigos acreditavam na [157] relação entre os caracteres da paisagem que se habita e os seres invisíveis que a povoam: por isso, os gregos não podiam separar os lugares dos deuses que os habitavam; montes, rios, florestas e lagos não eram acidentes geográficos mas habitações divinas. O habitar supõe esta unidade do visível e do invisível, da terra e do céu, do homem e de Deus. Mas, esta visão antiquada do habitar não pode subsistir quando se partem os elos da unidade cósmica e quando a ciência torna o espaço homogêneo, quando destrói o senso comum do espaço; a homogeneidade do espaço suprime o horizonte ao redor, torna iguais todos os espaços que se quadriculam em latitudes e longitudes; já não se habita o locus familiar dos lares, mas apenas se está em tal ou qual porção do espaço geométrico. A noção homogênea do espaço científico, abolindo países e paisagens, diversidades e vivências, coincide com a projeção desse espaço no mundo fabricado, onde tudo se torna uniforme, standard, trajos e moradias, leis e regimes, desenhando uma ideia científica da unidade do mundo, que é o oposto de toda verdadeira unidade. Porque realmente a unidade supõe a variedade, a adesão a princípios sucessivamente mais altos que se fundem num ápice espiritual, simbólico e superior.

Nenhuma época conheceu um sentimento de unidade mais forte que a época da cultura cristã, quando o alto da pirâmide visível — o Papado na ordem espiritual e o Imperium na ordem temporal   — coincidia com essa ideia de Cristandade, que depois degenerou no conceito da nacionalidade (justamente quando a nação começou a perder o sentido) vindo a decompor-se no conceito do Internacional. A Cristandade era uma unidade que não somente compreendia, como ainda supunha, toda sorte de diversidades, liberdades, mundos fechados, culturais, viventes: o que se denomina Idade Média é o modelo concreto da vivência da unidade do mundo, como céu e terra, como homem e Cristo. Inversamente, o internacional é o oposto do uno, porque é a negação do desigual, a planificação, a uniformização, a tecnificação, tudo quanto destrói o horizonte particular ao redor. O Imperium, o Papado, a Cristandade se assentavam na realidade da hierarquia universal. A grande condensação do espírito medieval, que são as Sumas de Santo Tomás, apresenta essa hierarquia descendo desde o Ato Puro até a matéria-prima, numa escala de seres que formam o elo da realidade do mundo, do homem e de [158] Deus. Anulada porém a existência do Deus vivo e concreto toda hierarquia se desfez e toda unidade desapareceu; o sucedâneo da unidade é essa ideia ’’de um mundo só” que é a negação de toda unidade, de toda variedade e que é o conceito despótico do internacional. O internacional é o espaço científico, homogêneo, indistinto, coletivo; é a liquidação de toda peculiaridade. Já não há mais um horizonte ao redor, um horizonte próximo. O sentimento da proximidade desapareceu com a uniformidade do espaço e com a supressão do locus; estamos sempre no mesmo trecho de espaço, porque todos os trechos são indistintos; não havendo mais proximidade, também não há mais distância; a supressão das distâncias pela técnica se dá no espaço projetado pela ciência; não há mais distância, nem proximidade, porque o próprio espaço se tornou irreal, o fruto de uma abstração, o resultado da negação da realidade e da unidade do mundo. Não há mais o lugar em que se habita e já não se habita lugar nenhum; tudo se tornou estranho, todos os espaços são uniformes, tudo está infinitamente alheio à alma humana. É o integral domínio da física, do estar, e não mais o domínio da metafísica, do habitar. Se não há lugar, nem habitação, mas apenas quadriculo do espaço mecânico, também não há duração e sentido nas cousas; a duração supõe a cousa vivida, não o objeto científico, que é sempre o mesmo, que é o geral e não o individual, que é o não-ser e não o ser; e o sentido supõe a duração porque só tem sentido o que dura, o que vive, o que se cumpre, o que se salva ou perde. Eis porque o louco de Nietzsche, vendo que Deus morreu no mundo, viu também que não há mais horizonte ao redor. Não se tem mais familiaridade, nem proximidade, nem distância, nem mesmo mundo e kosmos  . Por mais que se voe em velocidades siderais, nunca se sai do mesmo lugar, não se viaja, porque não há mais para onde viajar. Não há mais espaço nem duração, porque não há mais realidade. Por isso absolutamente não importa que algum fabricante de fórmulas descubra a quarta dimensão como espaço-tempo: isto não tem nada a ver com a realidade, porque nem sequer há mais realidade. Inútil é o esforço de todos os filósofos que buscam restaurar a metafísica e com ela o realismo. Para restaurar o realismo seria preciso antes de mais nada restaurar a realidade. [159]