Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Fenomenologia > Arendt (T:III.4) – isolamento e solidão

Arendt (T:III.4) – isolamento e solidão

quinta-feira 29 de abril de 2021

Roberto Raposo

O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. Isolamento e solidão não são a mesma coisa. Posso estar isolado — isto é, numa situação em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo — sem que esteja solitário; e posso estar solitário — isto é, numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por toda companhia humana — sem estar isolado. O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse   comum, é destruída. E, no entanto, o isolamento, embora destrua o poder e a capacidade de agir, não apenas deixa intactas todas as chamadas atividades produtivas do homem, mas lhes é necessário. O homem, como homo faber, tende a isolar-se com o seu trabalho, isto é, a deixar temporariamente o terreno da política. A fabricação (poiesis  , o ato de fazer coisas), que se distingue, por um lado, da ação (praxis  ) e, por outro, do mero trabalho, sempre é levada a efeito quando o homem, de certa forma, se isola dos interesses comuns, não importa que o seu resultado seja um objeto de artesanato ou de arte. No isolamento, o homem permanece em contato com o mundo como obra humana; somente quando se destrói a forma mais elementar de criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor, o isolamento se torna inteiramente insuportável. Isso pode acontecer num mundo cujos principais valores são ditados pelo trabalho, isto é, onde todas as atividades humanas se resumem em trabalhar. Nessas condições, a única coisa que sobrevive é o mero esforço do trabalho, que é o esforço de se manter vivo, e desaparece a relação com o mundo como criação do homem. O homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno político da ação é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans cujo necessário “metabolismo com a natureza” não é do interesse de ninguém. É aí que o isolamento se torna solidão. A tirania baseada no isolamento geralmente deixa intactas as capacidades produtivas do homem; mas uma tirania que governasse “trabalhadores”, como por exemplo o domínio sobre os escravos na Antiguidade, seria automaticamente um domínio de homens solitários, não apenas isolados, e tenderia a ser totalitária.

[ARENDT  , Hannah. Origens do Totalitarismo. Tr. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 (ebook), Parte III Capítulo 4]

Original

What we call isolation in the political sphere, is called loneliness in the sphere of social intercourse. Isolation and loneliness are not   the same. I can be isolated—that is in a situation   in which I cannot act, because there is nobody who will act with me—without being lonely; and I can be lonely—that is in a situation in which I as a person   feel myself deserted by all human companionship—without being isolated. Isolation is that impasse into which men are driven when the political sphere of their lives, where they act together in the pursuit of a common concern, is destroyed. Yet isolation, though destructive of power and the capacity for action, not only leaves intact but is required for all so-called productive activities of men. Man insofar as he is homo faber tends to isolate himself with his work, that is to leave temporarily the realm of politics. Fabrication (poiesis, the making of things), as distinguished from action (praxis) on one hand   and sheer labor on the other, is always performed in a certain isolation from common concerns, no matter whether the result is a piece of craftsmanship or of art. In isolation, man remains in contact with the world as the human artifice; only when the most elementary form of human creativity, which is the capacity to add something of one’s own to the common world, is destroyed, isolation becomes altogether unbearable. This can happen in a world whose chief values are dictated by labor, that is where all human activities have been transformed into laboring. Under such conditions, only the sheer effort of labor which is the effort to keep alive is left and the relationship with the world as a human artifice is broken. Isolated man who lost his place in the political realm of action is deserted by the world of things as well, if he is no longer recognized as homo faber but treated as an animal laborans whose necessary “metabolism with nature” is of concern to no one. Isolation then becomes loneliness. Tyranny based on isolation generally leaves the productive capacities of man intact; a tyranny over “laborers,” however, as for instance the rule over slaves in antiquity, would automatically be a rule over lonely, not only isolated, men and tend to be totalitarian.

ARENDT, Hannah. Totalitarianism. Orlando: Harcourt, 1976 (ebook)


Ver online : Hannah Arendt