Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Agamben: Amor em Heidegger

sexta-feira 5 de janeiro de 2018

Como explicar, então, a ausência do amor da analítica do Dasein  ? Tanto mais porque, da parte de Hannah Arendt  , a relação tinha produzido um livro sobre o amor. Refiro-me à Doktordissertation, publicada em 1929, Der Liebesbegriff bei   Augustin  , em que não é difícil encontrar a influência de Heidegger. Por que Sein und Zeit   permanece tão silencioso sobre a questão do amor? Examinemos um pouco mais de perto a nota sobre o amor em Sein   und Zeit  . Encontra-se no parágrafo 29, que é dedicado à Befindlichkeit   e às Stimmungen. A nota não [256] contém uma única palavra de Heidegger, mas apenas duas citações, a primeira de Pascal  : “E daí deriva que em vez de dizer, falando das coisas humanas, que é necessário conhecê-las para amá-las, o que se tornou uma máxima, os santos, ao contrário, dizem, falando das coisas divinas, que é necessário amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela caridade, da qual eles fizeram uma de suas máximas mais úteis”; a segunda é de Agostinho: “Não se entra na verdade senão através da caridade” (no intratur in veritatem, nisi per caritatem). Ambas as citações — e a segunda em particular — afirmam uma espécie de primado ontológico do amor como acesso à verdade. Graças à publicação das últimas lições de Marburgo do segundo semestre de 1928, sabemos que a referência a esse papel fundamental do amor provém das conversas com Max Scheler   sobre o problema da intencionalidade. Escreve Heidegger: “Scheler foi o primeiro a mostrar, em particular no ensaio Liebe   und Erkenntnis  , que os comportamentos intencionais são de diferente natureza e que, por exemplo, o amor e o ódio fundam o conhecimento. Scheler retoma aqui motivações que estão presentes em Pascal e Santo Agostinho” (GA26  , 169). Tanto no ensaio citado por Heidegger como em um texto da mesma época, mas publicado postumamente sob o título de Ordo Amoris, Scheler insiste na condição originária do amor. Podemos aí ler: “Der Mensch   ist, ehe er ein ens cogitans   oder ein ens volens ist, ein ens amans” [O homem, antes de ser um ens cogitans ou um ens volens, é um ens amans”]. Heidegger está perfeitamente consciente da importância fundadora do amor, fundadora no sentido em que condiciona precisamente a possibilidade do conhecimento e do acesso à verdade. Por outro lado, nas lições do semestre de verão de 1928, a referência ao amor tem lugar no contexto de uma discussão sobre o problema da intencionalidade, na qual Heidegger critica a concepção corrente da intencionalidade como relação cognitiva entre um sujeito e um objeto. Esse texto é precioso porque, através de tal crítica, que não poupa seu mestre Husserl  , Heidegger mostra como, para ele, a noção de intencionalidade foi superada pela estrutura de transcendência que Sein und Zeit chama de In-der-Welt-Sein  . Na concepção da intencionalidade como relação entre um sujeito e um objeto, o que, para Heidegger, permanece inexplicado é justamente o que seria preciso explicar, ou seja, a relação em si mesma:

Essa falta de explicação repercute sobre a indeterminação do que está aí em relação […] Procurou-se recentemente conceber essa relação como uma relação de ser […] Com essa explicação não se esclarece nada, enquanto não se disser que gênero de ser está aqui em questão e enquanto o gênero de ser dos entes, entre os quais a relação deve se dar, permanecer obscuro […] O ser é aqui pensado, à maneira de Hartmann e de Scheler, como ser disponível [Vorhandensein  ]. Ora, essa relação não é nada, mas também não é algo da ordem do ente, no sentido de algo simplesmente disponível […] Um dos objetivos preliminares fundamentais de Sein und Zeit é o de esclarecer essa relação em sua essência original (GA26, 163-164).

Mais original ainda que a relação sujeito-objeto é, para Heidegger, a autotranscendência do In-der- Welt  - Sein, no qual o Dasein se abre ao mundo para além de toda subjetividade. Antes que algo como um sujeito ou um objeto possa se constituir, o Dasein — essa é uma das teses centrais de Sein und Zeit — está já aberto ao mundo: “Das Erkennen selbst   vorgängig gründet in einem Schon-sein-bei-der-Welt” [“O conhecer em si mesmo se funda previamente em um já-ser-junto-ao-mundo”] (SuZ, p. 61). E é só a partir dessa transcendência original que algo como uma intencionalidade pode ser compreendida quanto a seu modo de ser próprio.

Portanto, se Heidegger, reconhecendo plenamente o estatuto do amor, não trata tematicamente desse problema, é precisamente porque o modo de ser da abertura mais original de todo conhecimento (aquela que, segundo Agostinho e Scheler, tem lugar no amor) é, em certo sentido, o problema central de Sein und Zeit. Por outro lado, o amor, se quisermos compreendê-lo a partir dessa abertura, não pode mais ser concebido segundo a representação corrente, como uma [258] relação entre um sujeito e um objeto ou como a relação entre dois sujeitos. Ele deve antes encontrar seu lugar e sua articulação própria no Schon-Sein-bei-der-Welt que caracteriza a transcendência do Dasein.

Ora, qual é o modo de ser desse Schon-Sein-bei-der-Welt? Em que sentido o Dasein está sempre junto ao mundo e às coisas que o circundam antes ainda de conhecê-las? Como é possível para o Dasein se abrir a qualquer coisa sem fazer dela o correlato objetivo de um sujeito cognoscente? E como é possível que a própria relação intencional seja esclarecida quanto a seu modo de ser particular e em seu primado em relação ao sujeito e ao objeto?

É nesse contexto que Heidegger introduz a noção de facticidade (Faktizität  ). (2015, p. 256-259)


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