Página inicial > Fenomenologia > QUINTÃO: êthos e éthos

Seguindo o Todo por toda Terra

QUINTÃO: êthos e éthos

Uma Fenomenologia do Arcaico nos Gregos

segunda-feira 26 de junho de 2017

Em Ser e Tempo  , na tradução brasileira, orientada pelo Prof. Emmanuel Carneiro Leão  , essa determinação ontológica do homem como um ser convivente é chamada de condição existencial humana. Só há convivência na existência, por isso ser existente implica em ser convivente. É assim, que as épocas surgem em diferentes compreensões do ser, as sociedades se estruturam em diversas expectativas, a vida de cada um se faz, em suas singularidades. É, assim, que surgem as diferentes maneiras de se pensar o mesmo. A integração, sempre atual, de cada relação existencial se abre, no horizonte futuro de novas possibilidades. Esse movimento de preservação na transformação é a tradição, que não se confunde com uma mera repetição. A coragem e a intrepidez se constituem na tensão com o impulso de repetição. O hábito e os costumes, decorrentes da repetição, não são criativos, mas retentivos e deformadores [1]. A tradição realiza essa tensão ontológica entre conservação e transformação. Essa diferença encontra-se na língua grega, instalada na relação que o homem vive entre êthos   (eta inicial) e éthos (epsilon).

Outhos (ômega inicial) palavra que o dicionário etimológico francês da língua grega de P. Chantraine diz ser proveniente do dialeto ático, homérico, é derivada do verbo eiouthein, normalmente usado no perfeito intransitivo, eioutha, com o sentido de ter o hábito, o costume de. O movimento de constante transformação do real aparece, marcadamente, nos seres vivos. Nenhuma transformação é pontual e definitiva, mas integra, cada vez, um ritmo próprio de vida. A transformação gera, em si mesma, uma inércia: a tendência de repetir uma mesma relação com os outros seres. Essa intensificação, na repetição, o grego registra em sua língua por um alongamento da vogal. Assim, êthos (eta inicial) diz essa intensificação comportamental. Essa tendência, em agir sempre da mesma maneira, pertence a todos os seres, inclusive o homem. Ethos (eta inicial), diz, então, a morada de cada ser, o padrão que normalmente um ser vivo realiza. Todo ser vivo tem seu ethos (eta inicial). Na Grécia, em geral, principalmente no período clássico, criou-se o costume de usar a palavra ethos (eta inicial), neste sentido, como referência ao modo de ser humano. O homem marca o ambiente, o espaço, as constâncias, as coordenadas em que ele se realiza, como mundo. O homem é ser do mundo. Ser-no-mundo é o ethos (eta inicial) de um ser errante, de um ser em constante transformação de si mesmo, pelo pensamento.

Jesus Cristo chama a atenção para uma diferença entre os animais e o homem. Para os animais, a morada, o ethos (eta inicial) de cada um se inscreve onticamente, isto é, os passarinhos têm seus ninhos, os ursos suas cavernas. Cada animal tem seu habitat, um lugar, um determinado ambiente, onde suas condições próprias de ser e viver são guardadas, por gerações. A liberdade no animal está condicionada aos limites e às possibilidades de sua espécie. Por isso, se um animal for retirados dessas condições morre. Mas, o homem vive em todo lugar e em lugar nenhum, pois sua morada não se inscreve onticamente, não é sua casa, sua cidade, seu país, sua cultura, mas uma dinâmica de ser, para si, sendo no outro. O homem é o único ser que não tem onde colocar a cabeça, diz Cristo. O lugar onde o homem se abriga não é este, nem aquele, mas o mistério. O homem se edifica numa referência, ontologicamente criativa, à Verdade do Ser [2], diz Heidegger. Deter-se e reter-se numa relação ôntica e imediata com o real é perder-se de si mesmo. Quando um animal é retirado de sua morada e morre, também, o homem morre com ele. Só que esta morte, a mais radical de todas, não se evidencia na onticidade do real e se oculta na racionalidade contemporânea. A gravidade dessa cegueira é o que Nietzsche   e Heidegger chamam de niilismo.

Em Hesíodo  , Os Dias e as Horas, êthos (eta inicial) significa o modo de ser habitual do homem, o modo como o homem habita a terra. Esta palavra é revestida, de um sentido primordial que provoca o homem a identificar, na habitualidade do êthos (eta inicial) humano, um modo de ser que é especular à dinâmica geradora do real. Este modo de ser chama-se pensamento, espírito. Em tudo que o homem é e não é, ele pensa. Este é seu êthos (eta inicial): pensar inclusive o ethos que é. Por isso, o homem é ético, no sentido originário da palavra. No entanto, embora a palavra moderna ética derive de êthos (eta inicial), passou para a história o sentido de éthos (epsilon inicial). Este parônimo grego, éthos (epsilon inicial) diz uma simples repetição, que se torna hábito costume, que pode ser modificado e alterado por qualquer revolução ideológica, sem nenhuma vinculação ontológica. Cabe ao pensamento radical encontrar o ethos (eta inicial) da ética. (2007, p. 203-205)


[1Tanto a retenção, quanto a deformação fazem parte do percurso humano

[2É o Aberto, a imensidão livre, em que as diferenças emergem e se dispõem.