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MacDowell: Tradition - Tradição
terça-feira 11 de abril de 2017
A tradição é entendida aqui como a mentalidade comum, a interpretação do mundo e da vida geralmente recebida. O espírito humano emerge, a partir desta tradição, e cresce no seu seio. É de acordo com ela que ele se entende, de início, e em certa medida, sempre. Esta compreensão dita as suas possibilidades de ser e as regula. Sob o domínio da tradição o homem perde a faculdade de interrogar e de escolher. Entretanto, a tradição, de início e de ordinário, longe de manifestar o que ela transmite, o encobre. Todo e qualquer conceito ou frase, haurido originalmente dos fenômenos, está exposto, enquanto comunicado sob a forma de proposição, à possibilidade de degeneração. Na proposição o ente está descoberto de um determinado modo e esta descoberta é posta ao alcance de todos. Quem recebe esta comunicação entende o ente em questão através da proposição. Mas, ao ouvi-la, e repeti-la, ele pode julgar-se dispensado de realizar, por si mesmo, numa experiência pessoal, o descobrimento do ente. Na medida em que isto acontece, os conceitos são transmitidos numa compreensão sempre mais vazia, sob a forma de teses estereotipadas, sem apoio no terreno vivo e fértil dos fenômenos. Destarte, o que tinha servido, no princípio, para uma manifestação talvez genuína e, em todo caso, original, do ente, torna-se, no curso da tradição, um véu mais ou menos opaco que desfigura ou intercepta de todo a visão original dos fenômenos. E esta degeneração, a que está exposta qualquer descoberta do ente por ocasião de sua comunicação, mais que uma simples possibilidade, constitui a lei ordinária da tradição. De fato, aquilo que é repetido por todos torna-se, por isso mesmo, algo de trivial e evidente. Todo mundo sabe de que se trata e esta compreensão mediana e medíocre nos basta. Ninguém se dá ao trabalho de observar as próprias coisas, de verificar, por si mesmo, nas "fontes", o sentido original das palavras e das proposições recebidas da tradição, de pôr em questão a autenticidade da interpretação tradicional dos fenômenos. Deste modo, a tradição não só esconde sob a capa de uma compreensão vazia os fenômenos que ela pretende manter descobertos, mas também, em virtude desta pretensão, incute a desnecessidade de redescobri-los.
O império da tradição estende-se também à região mais fundamental e característica do ser do eis-aí-ser, i. e., ao entender ontológico e à sua elaboração. O esquecimento da questão do sentido de ser na história da Metafísica é, justamente, o caso mais relevante da tendência da tradição a impedir o livre acesso aos fenômenos fundamentais. É verdade que a Filosofia nasce da admiração e é próprio do filósofo pôr em questão aquilo que a todo-mundo parece evidente. A história da Filosofia ocidental depois de Aristóteles apresenta, sem dúvida, magníficos exemplos de investigação original e fecunda do ser do ente.
Mas o seu questionar não atingiu jamais o nível dos próprios fundamentos da Metafísica. Moveu-se sempre sobre o pressuposto, não reconhecido como tal, da interpretação do sentido de ser fornecida pela tradição. O filosofar de Descartes , de Kant ou de Hegel , longe de constituir um começo absoluto, revela-se, à luz da questão do sentido de ser, como a transplantação acrítica de preconceitos antigos.
Não é na "dependência" para com o passado que reside a insuficiência de tais projetos filosóficos, mas sim no deixar de perceber tal condicionamento, através da ilusão de um começo absoluto. As possibilidades fáticas de existir autêntico - e entre elas a da investigação ontológica genuína - abrem-se sempre ao eis-aí-ser, tanto quanto as inautênticas, a partir da herança do passado. O autêntico reportar-se do eis-aí-ser ao seu passado e, em particular, à história da compreensão do ser na Metafísica não consiste, porém, na determinação exata do que disseram os outros, através dos métodos científicos do historiador e do filólogo. Esta reflexão explícita sobre a história do homem e de suas ideias, ansiosa de objetividade, mostra-se cega para as condições mais elementares da hermenêutica filosófica, condições que só podem ser estabelecidas à base da determinação ontológica do sentido da própria historicidade da existência.
Ver online : A GÊNESE DA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE M. HEIDEGGER