IV — A problemática do sujeito.
A fenomenologia tomava pois o sentido de uma propedêutica às "ciências do espírito". Mas, a partir do segundo tomo das Investigações Lógicas esboça-se um salto que nos vai fazer entrar na filosofia propriamente dita. A "problemática da correlação", isto é, o conjunto dos problemas demonstrados pela relação do pensamento com seu objeto, uma vez aprofundada, deixa emergir a questão que constitui o seu núcleo: a subjetividade. É aqui provavelmente que a influência exercida por Brentano sobre Husserl (do qual havia sido aluno) se faz sentir; a observação chave da psicologia brentaniana era que a consciência é sempre consciência de alguma coisa, em outros termos que a consciência é intencionalidade. Se transferimos esse tema para o nível da eidética, isto significa que todo objeto em geral, o próprio eidos, coisa, conceito etc., é objeto para uma consciência, de tal modo que é necessário descrever presentemente a maneira pela qual eu conheço o objeto e segunda a qual o objeto é para mim. Poder-se-ia dizer que voltamos ao psicologismo? Chegou-se erroneamente a acreditar nisso.
A preocupação de fundar radicalmente o saber havia levado Husserl à eidética formal, isto é, a uma espécie de logicismo. Mas, a partir do sistema das essências, duas orientações se abrem: ou desenvolver a ciência lógica em mathesis universalis, quer dizer, constituir do lado do objeto uma ciência das ciências; ou então, em oposição, passar à análise do sentido para o sujeito dos conceitos lógicos utilizados por esta ciência, do sentido das relações que ela estabelece entre esses conceitos, do sentido das verdades que ela quer estabilizar, isto é, em resumo, pôr em discussão o próprio conhecimento, não para dele construir uma "teoria" mas para fundamentar com raízes mais profundas o saber eidético radical. Tomando consciência de que já na simples doação do objeto havia implicitamente uma correlação do eu e do objeto que devia remeter à análise do eu, Husserl escolheu uma segunda orientação. A radicalidade do eidos pressupõe uma radicalidade mais fundamental. Por quê? Porque o próprio objeto lógico me pode ser dado confusa ou obscuramente, porque eu posso ter de tais leis, de tais relações lógicas "uma simples representação", vazia, formal, operatória. Na sexta Investigação Lógica, Husserl mostra que a intuição lógica (ou categorial) não escapa a essa compreensão simplesmente simbólica a não ser quando é "fundada" na intuição sensível; trata-se de um retorno à tese kantiana segundo a qual o conceito sem intuição é vazio? Assim o creram os neokantianos.
Deste modo no segundo tomo das Investigações Lógicas distinguimos dois movimentos entrelaçados, um dos quais, introduzindo a análise do vivido como fundamento de todo conhecimento, parece conduzir-nos ao psicologismo; o outro, perfilando a compreensão evidente do objeto ideal sobre o fundo da intuição da coisa sensível, parece dobrar a fenomenologia sobre as posições do kantismo. Por outro lado, entre as duas vias definidas a cima, Husserl ingressa na segunda, e do "realismo" das essências parece deslizar para o idealismo do sujeito: "A análise do valor dos princípios lógicos conduz às investigações centradas no sujeito" (Lógica formal e transcendental, 203). Parece, portanto, que nesse estágio teremos de escolher entre um idealismo concentrado sobre o eu empírico e um idealismo transcendental à maneira kantiana: mas nem um outro podia satisfazer a Husserl , o primeiro porque torna incompreensíveis proposições verdadeiras, reduzidas pelo psicologismo a estados de consciência não privilegiados e porque derrama no próprio fluxo dessa consciência, tudo junto, aquilo que vale e aquilo que não vale, destruindo assim a ciência e destruindo-se a si mesmo enquanto teoria universal; o segundo porque explica somente as condições a priori do conhecimento puro (matemática ou física puras) mas não as condições reais do conhecimento concreto: a "subjetividade" transcendental kantiana é simplesmente o conjunto das condições que regulam o conhecimento de iodo objeto possível em geral, o eu concreto é remetido ao nível do sensível como objeto (motivo pelo qual Husserl acusa Kant de psicologismo) e o problema de saber como a experiência real entra efetivamente no quadro apriorístico de todo conhecimento possível para permitir a elaboração das leis científicas particulares permanece sem resposta, pelos mesmos motivos que na Crítica da Razão Prática a integração da experiência moral real nas condições a priori da moralidade pura permanece insolúvel, segundo confissão do próprio Kant . Husserl conserva, portanto, o princípio de uma verdade fundada no objeto do conhecimento, mas rejeita a separação deste e do sujeito concreto; é nesta etapa que se liga a Descartes .
V. — A redução
A inspiração cartesiana surge em A Ideia de Fenomenologia (1907) que se fará sentir nas Ideen I e, ainda, mas num grau menor, nas Méditations cartésiennes.
O sujeito cartesiano resultante das operações da dúvida e do cogito é um sujeito concreto, vivencial, não um quadro abstrato. Simultaneamente, esse sujeito é um absoluto pois tal é o sentido verdadeiro das duas primeiras meditações: ele se basta a si mesmo, não tem necessidade de nada para fundar seu ser. A percepção que esse sujeito possui de si mesmo "é e se mantém enquanto dura um absoluto, um "este", algo que é, em si, o que é, algo que me permite medir, como última medida, o que "ser" e "ser dado" pode e deve significar (Id. phen.). A intuição do vivido por si mesmo constitui o modelo de toda evidência originária. E nas Ideen I Husserl vai refazer o movimento cartesiano a partir do mundo percebido ou mundo natural. Nada há de espantoso nesse "deslize" do plano lógico ao plano natural - ambos são "mundanos" e o objeto em geral é tanto coisa como conceito. Não existe um deslize propriamente dito mas uma acentuação e é indispensável compreender corretamente que a redução se aplica em geral a toda transcendência (isto é a todo em si).
A atitude natural contém uma tese ou posição implícita pela qual eu encontro aqui o mundo e o aceito como existente. "As coisas corporais aí estão simplesmente para mim com uma distribuição espacial qualquer; elas estão "presentes" no sentido literal ou figurado de acordo com a atenção especial que lhes confiro… Os seres animados igualmente, tais como os homens, aí estão para mim de maneira imediata… Para mim os objetos reais estão ali, portadores de determinação, mais ou menos conhecidos, fazendo corpo com os objetos percebidos efetivamente, sem serem eles mesmos percebidos, nem mesmo presentes de modo intuitivo… Mas o conjunto desses objetos co-presentes à intuição de maneira clara ou obscura, distinta ou confusa, e que cobre constantemente o campo atual da percepção, não esgota sequer o mundo que para mim está "ali" de forma consciente a cada instante que estou desperto. Pelo contrário, ele se estende sem limites segundo uma ordem fixa de seres, ele é de um lado atravessado, de outro circundado por um horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada… Este horizonte brumoso incapaz para sempre de uma total determinação está necessariamente ali… O mundo… tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos, seu passado e seu futuro, conhecidos e desconhecidos, imediatamente vividos e privados de vida. "Enfim este mundo não é somente mundo de coisa, mas segundo a própria imediatez, mundo de valores, mundo de bens, mundo prático" (Ideen, 48-50). Mas esse mundo contém igualmente um âmbito ideal: se me dedico presentemente à aritmética esse mundo aritmético está ali para mim, diferente da realidade natural na medida em que ele só está ali para mim enquanto tomo a atitude do matemático, ao passo que a realidade natural sempre está ali. Enfim, o mundo natural é também o mundo da inter-subjetividade.
A tese natural, contida implicitamente na atitude natural, é aquilo que permite que eu "descubra (a realidade) como existente e a acolha, como ela se dá a mim, igualmente existente" (Ideen, 52-53). É evidente que posso pôr em dúvida os dados do mundo natural, recusar as informações que dele recebo, distinguir por exemplo aquilo que é "real do que é "ilusão" etc. Mas essa dúvida "não altera nada na posição geral da atitude natural" (ibid.); ela nos faz acceder a uma apreensão desse mundo existente mais "adequada", mais "rigorosa" do que a que nos dá a percepção imediata, funda a superação do perceber pelo saber científico, mas nesse saber a tese intrínseca à atitude natural se conserva, pois não há ciência que não postule a existência do mundo real do qual é ciência.
Esta alusão às duas primeiras meditações de Descartes exprime que nem bem o radicalismo cartesiano foi retomado e Husserl denuncia sua insuficiência: a dúvida cartesiana relativa à coisa natural (pedaço de cera) continua sendo em si mesma uma atitude mundana, sendo tão-somente uma modificação dessa atitude sem corresponder portanto à exigência profunda de radicalidade. Prova disso será dada nas Méditations cartésiennes em que Husserl denuncia o pressuposto geométrico pelo qual Descartes assimila o cogito a um axioma do saber em geral, quando o cogito deve ser muito mais, uma vez que ele é o fundamento dos próprios axiomas; esse pressuposto geométrico revela a insuficiência da dúvida como processo de radicalização. À dúvida é preciso, portanto, opor uma atitude pela qual eu não tomo posição em relação ao mundo como existente ainda que essa posição seja afirmação natural de existência ou dúvida cartesiana, etc. É claro que eu, como sujeito empírico e concreto, continuo a participar da posição natural do mundo, "esta tese continua a ser algo de vivido", mas, não faço dela nenhum uso. Fica suspensa, fora de jogo, fora de circuito, entre parênteses; e por essa "redução" (epoche) o mundo circundante não é mais simplesmente existente, mas "fenômeno de existência" (Med. cart.)
VI. — O eu puro
Qual é o resultado dessa operação redutora? Na medida em que o eu concreto está entrelaçado com o mundo natural, é claro que está ele mesmo reduzido; em outros termos, eu devo me abster de toda tese a respeito do eu como existente; mas é igualmente claro que existe um eu, que justamente se abstém, e que é o próprio eu da redução. Esse eu é chamado eu puro e a epoche é o método universal pelo qual eu me apreendo como eu puro. Esse eu puro encerra um conteúdo? Não, no sentido em que ele não é um continente; sim, no sentido em que esse eu é alvo de alguma coisa; mas não se deverá aplicar a redução a esse conteúdo? Antes de responder a essa questão, convém constatar que à primeira vista a redução dissocia plenamente, de um lado o mundo como totalidade das coisas e de outro a consciência sujeito da redução. Procedamos à análise eidética da região coisa e da região consciência.
A coisa natural, por exemplo aquela árvore, me é dada dentro e por um fluxo incessante de esboços, de silhuetas. (Abschattungen). Estas silhuetas, através das quais se perfila a coisa, são vivências que se relacionam à coisa pelo seu sentido de apreensão. A coisa é como um "mesmo" que me é dado através das modificações incessantes e aquilo que faz com que ela seja coisa para mim (isto é em si para mim) é precisamente a inadequação necessária de minha apreensão dessa coisa. Mas essa ideia de inadequação é equívoca: enquanto a coisa se perfila através das silhuetas sucessivas, eu acedo a ela apenas unilateralmente, por uma de suas faces, mas simultaneamente me são "dadas" as outras faces da coisa, não "em pessoa", mas sugeridas pela face dada sensorialmente; em outros termos, a coisa tal como é dada pela percepção é sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, "ela indica com antecedência um diversificado de percepções cujas fases, passando continuamente uma para a outra, se fundem na unidade de uma percepção" (Ideen, 80). Assim, a coisa não pode jamais ser dada a mim como um absoluto, há portanto "uma imperfeição indefinida que depende da essência insuprimível da correlação entre coisa e percepção de coisa" (ibid). No curso da percepção os esboços sucessivos são retocados e uma silhueta nova da coisa pode vir a corrigir uma silhueta precedente, não havendo, entretanto, contradição, pois o fluxo de todas essas silhuetas se funde na unidade de uma percepção, mas ocorre que a coisa emerge através de retoques sem fim.
A própria vivência, pelo contrário, é dada a si mesma numa "percepção imanente". A consciência de si dá a vivência em si mesma, isto é, tomada como um absoluto. Isto não significa que a vivência seja sempre apreendida adequadamente em sua plena unidade: na medida em que é um fluxo, está sempre já longe passada quando a quero tomar; eis por que, como vivência, é retida, somente como retenção que posso apreendê-la e por que o "fluxo total de minha vivência é uma unidade de vivência impossível, por princípio, de ser apreendido numa percepção, deixando-nos inteiramente "ao sabor" dele" (Ideen, 82). A dificuldade particular, que é ao mesmo tempo uma problemática essencial da consciência, se prolonga no estudo da consciência do tempo interior, mas ainda que não haja adequação imediata da consciência a si mesma, verifica-se que toda vivência traz em si a possibilidade de princípio de sua existência. "O fluxo da vivência, que é meu fluxo, o do sujeito pensante, pode ser, na medida da nossa vontade, não apreendida, desconhecido quanto às partes já decorridas e a decorrerem, bastando que eu aplique o olhar sobre a vida que se desenrola na sua presença real e que nesse ato eu me apreenda a mim mesmo como sujeito puro dessa vida, para que eu possa dizer sem restrições e necessariamente: eu sou, esta vida é, eu vivo: cogito" (Ideen, 85).
Por conseguinte, o primeiro resultado da redução era obrigar-nos a dissociar nitidamente o mundano ou natural em geral de um sujeito não mundano; mas, prosseguindo na descrição, conseguimos hierarquizar de certo modo essas duas regiões do ser em geral: concluímos com efeito pela contingência da coisa (tomada como modelo do mundano) e pela necessidade do eu puro, resíduo da redução. A coisa e o mundo em geral) não são apodíticos (Med. Cart.), não excluem a possibilidade de se duvidar deles, portanto, não excluem a possibilidade de sua não-existência; todo o conjunto das experiências (no sentido kantiano) pode revelar-se simples aparência e ser apenas um sonho coerente. Nesse sentido a redução e já por ela mesma, enquanto expressão da liberdade do eu puro, a revelação do caráter contingente do mundo. O sujeito da redução, ou eu puro é, pelo contrário, evidente a si mesmo de uma evidência apodítica, o que significa que o fluxo de vivência que o constitui enquanto ele se aparece a si mesmo não pode ser questionado nem na sua essência, nem na sua existência. Esta apodicidade não implica numa adequação; a certeza do ser do eu não garante a certeza do conhecimento do eu; mas ela basta para opor a percepção transcendental da coisa e do mundo em geral à percepção imanente: "A posição do mundo que é uma posição "contingente" se opõe à posição de meu eu puro e de minha vivência egológica, que é uma posição "necessária" e absolutamente indubitável. Toda coisa dada em "pessoa" pode também não ser, nenhuma vivência dada "em pessoa" pode não ser (Ideen, 86). Esta lei é uma lei de essência.
Indagamos anteriormente: a redução fenomenológica deve aplicar-se ao conteúdo do eu puro? Compreendemos agora que essa indagação supõe um contra-senso radical, o mesmo que Husserl imputa a Descartes : consiste ele em admitir o sujeito como coisa (res cogitans). O eu puro não é uma coisa, pois ele não se dá a si mesmo como a coisa lhe é dada. Ele não "coabita pacificamente" com o mundo e não tem igualmente necessidade do mundo para ser; pois, imaginemos que o mundo seja aniquilado (reconhecemos de passagem a técnica das variações imaginárias que fixam a essência), "o ser da consciência seria certamente modificado…, mas não seria atingido na sua própria existência". Com efeito, um mundo aniquilado significaria somente para a consciência que visa este mundo o desaparecimento no fluxo de suas vivências de certas conexões empíricas ordenadas, desaparecimento que acarretaria o de certas conexões racionais reguladas pelas primeiras. Mas esse aniquilamento não implica a exclusão de outras vivências e de outras conexões entre as vivências. Em outro termos, "nenhum ser real é necessário para o ser da própria consciência. O ser imanente é, portanto, indubitavelmente, um ser absoluto, na medida em que nulla "res" indiget ad existendum. Por outro lado, o mundo das res transcendentes se refere totalmente a uma consciência, e de modo algum, a uma consciência concebida logicamente, mas a uma consciência atual" (ibid., 92).
Assim, a epoche tomada na etapa dos Ideen I tem uma significação dupla: de um lado negativa, porquanto isola a consciência como resíduo fenomenológico e é nesse nível que a análise eidética (isto é ainda natural) da consciência se opera; por outro lado, positiva porque faz emergir a consciência como radicalidade absoluta., Com a redução fenomenológica, o programa husserliano de um fundamento indubitável e originário se realiza numa nova etapa: da radicalidade eidética ela nos faz descer a uma radicalidade pela qual toda transcendência tem fundamento. (Lembremos que é preciso entender por transcendência o modo de apresentação do objeto em geral). Perguntamos como uma verdade matemática ou científica pode ser possível e, contra o ceticismo, vimos que ela só é possível pela posição de essência daquilo que é pensado; esta posição de essência fazia intervir apenas um "ver" (Schau) e a essência era tomada numa doação originária. Depois, meditando sobre essa própria doação e mais precisamente sobre a doação originária das coisas (percepção) descobrimos, aquém da atitude pela qual somos para as coisas, uma consciência cuja essência é heterogênea a tudo aquilo de que ela é consciência a toda transcendência, e pela qual o próprio sentido da transcendência é colocado. Tal é a verdadeira significação da colaboração entre parênteses: voltar o olhar da consciência sobre si mesma, inverter a direção desse olhar e retirar, ao suspender o mundo, o véu que ocultava ao eu sua própria verdade. Sua suspensão exprime que o eu permanece exatamente aquilo que ele é, isto é, "entrelaçado" com o mundo e que seu conteúdo concreto continua a ser o fluxo dos Abschattungen através do qual se desenha a coisa. "O conteúdo concreto da vida subjetiva não desaparece na passagem para a dimensão filosófica, mas revela-se ali em toda a sua autenticidade. A posição do mundo foi "posta fora de ação" e não aniquilada: ela permanece viva ainda que sob uma forma "modificada" que permite à consciência ser plenamente consciente dela mesma. A epoche não é uma operação lógica exigida petas condições de um problema teórico, ela é o passo que dá acesso a um modo novo da existência a existência transcendental como existência absoluta. Tal significação só pode realizar-se num ato de liberdade (Tuan-Duc-Thao, Phénoménologie et matérialisme dialectique, págs. 73-74. Tudo que se dissesse a favor desse livro notável seria insuficiente)."
VII. — Eu puro, eu psicológico, sujeito kantiano.
Não se trata, portanto, de uma volta ao subjetivismo psicologista, pois o eu revelado pela redução não é exatamente o eu natural psicológico ou psicofísico; não se trata tampouco de uma retomada da posição kantiana, pois o eu transcendental não é "uma consciência concebida logicamente, mas uma consciência atual."
1) Não se pode confundir eu transcendental e eu psicológico e sobre este ponto insistem as Méditations cartésiennes. É certo que, diz Husserl , "eu, que permaneço na atitude natural, eu sou também e a todo instante eu transcendental. Mas (acrescenta) só o percebo efetuando a redução fenomenológica". O eu empírico é "interessado no mundo", aí vive naturalmente; sobre a base deste eu a atitude fenomenológica constitui um desdobramento do eu, pelo qual se estabelece o espectador desinteressado, o eu fenomenológico. É esse eu do espectador desinteressado que examina a reflexão fenomenológica, sustentada ela própria por uma atitude desinteressada de espectador. É necessário, portanto, admitir simultaneamente que o eu de que se trata é o eu concreto, pois não existe também nenhuma diferença de conteúdo entre psicologia e fenomenologia e que não é o eu concreto, porquanto está separado do seu ser no mundo. A psicologia intencional e a fenomenologia transcendental partirão ambas do cogito, mas a primeira permanece no nível mundano enquanto que a segunda desenvolve sua análise a partir de um cogito transcendental que envolve o mundo em sua totalidade, inclusive o eu psicológico.
2) Estaremos, por conseguinte, diante do sujeito transcendental kantiano? Muitas passagens tanto nas Ideen I como nas Méditations cartésiennes dão-nos tal impressão e não foi por acaso que o criticista Natorp manifestou sua concordância com as Ideen I (Husserls Ideen zun einer reinen Phänomenologie, Logos, VII, 1917-18). Tais sugestões provém principalmente do fato de Husserl insistir sobre o ser absoluto da consciência, a fim de evitar que se creia que esse eu não passa de uma região da natureza (o que é o próprio postulado da psicologia). Ele demonstra que, pelo contrário, a natureza só é possível pelo eu: "A natureza só é possível a título de unidade intencional motivada na consciência por meio de conexões imanentes… O domínio das vivências enquanto essência absoluta… é essencialmente independente de todo ser pertencente ao mundo, à natureza e não tem necessidade dele nem para a sua existência. A existência de uma natureza não pode condicionar a existência da consciência, pois uma natureza se manifesta ela mesma como correlato da consciência" (Ideen, 95-6). Os criticistas (Natorp , Rickert, Kreis, Zocher) se apoiam nessa filosofia transcendental, mostram que para Husserl assim como para Kant a objetividade depende do conjunto dessas condições a priori e que o grande problema fenomenológico é o mesmo que o da Crítica: como é possível um dada? Quanto ao aspecto intuicionista, e especialmente quanto a esta pura apreensão da vivência por ela mesma na percepção imanente, não resta dúvida de que para Kreis sua origem está num pressuposto empirista: como, com efeito, poderia ocorrer que um sujeito, que é apenas o conjunto das condições a priori de toda objetividade possível, seja também um fluxo empírico de vivência apto a apreender sua indubitabilidade radical numa presença originária para si? Kant escrevia: "Fora da significação lógica do eu, não possuímos nenhum conhecimento do sujeito em si, que está na base do eu como de todos os pensamentos, na qualidade de substrato." O princípio de imanência husserliano resulta de uma psicologia empirista, é incompatível com a constituição da objetividade. Salvo essa ressalva, Husserl seria um bom kantiano.
Num artigo célebre (Die phanomenologische Philosophie E. Husserls in der gegenwartigen Kritik, Kantstudien, 1933. Referendado por Husserl ) E. Fink , na ocasião assistente de Husserl , responde a esses comentários de forma propícia a esclarecer nosso problema: a fenomenologia não se coloca o problema da origem do mundo, problema que se propunham as religiões e as metafísicas. Sem dúvida o problema foi eliminado pelo criticismo porque era sempre colocado e resolvido em termos aporísticos. O criticismo substituiu-o pelo das condições de possibilidade do mundo para mim. Mas essas condições são por si mesmas mundanas e toda a análise kantiana fica no nível eidético apenas, isto é, mundano. É, portanto, evidente que o criticismo comete um erro de interpretação sobre a fenomenologia. Esse erro é especialmente manifesto no que concerne à questão da imanência e da "fusão" do sujeito transcendental com o sujeito concreto. Na realidade não existe fusão, mas, ao contrário, desdobramento; pois aquilo que é dado anteriormente a toda construção conceituai é a unidade do sujeito; e o que é incompreensível no criticismo em geral é que o sistema das condições o priori da objetividade seja um sujeito, o sujeito transcendental. Na realidade o sujeito perceptivo é o mesmo que constrói o mundo, no qual entretanto ele está pela percepção. Quando se explora na perspectiva de seu entrelaçamento com o mundo, para distingui-lo desse mundo, utiliza-se o critério da imanência; mas a situação paradoxal provém do fato de que o próprio conteúdo dessa imanência é tão-somente o mundo enquanto visado, intencional, fenômeno, ao passo que esse mundo é colocado como existência real e transcendente pelo eu. A redução que provém desse paradoxo permite-nos precisamente apreender como existe para nós um em si, isto é, como a transcendência do objeto pode ter um sentido de transcendência na imanência do sujeito. A redução devolve ao sujeito sua verdade de constituinte das transcendências, implícita na atitude alienada que é a atitude natural.
VII. — A intencionalidade.
Se o objeto pode ter o sentido de transcendência no próprio seio da imanência do eu é, em resumo, porque não existe, para sermos exatos, imanência na consciência. A distinção, entre os dados imanentes e os dados transcendentes sobre a qual Husserl funda a primeira separação da consciência e do mundo é ainda uma distinção mundana. Na realidade a epoche fenomenológica revela um caráter essencial para a consciência, a partir do qual se esclarece o paradoxo que sublinhamos há pouco. A intencionalidade com efeito não é somente esse dado psicológico que Husserl herdou de Brentano , mas é ela que torna possível a própria epoche: perceber este cachimbo sobre a mesa é ter não uma reprodução em miniatura deste cachimbo no espírito como pensavam os associacionistas, mas visar o objeto cachimbo em si. A redução colocando fora de circuito a doxa natural (posição espontânea da existência do objeto) revela o objeto enquanto visado, ou fenômeno, o cachimbo agora é apenas algo à nossa frente (Gegenstand) e minha consciência aquilo para que existem coisas à nossa frente. Minha consciência não pode ser pensada se imaginariamente lhe retiramos aquilo de que ela é consciência, não se pode sequer dizer que ela seria então consciência de nada, pois esse nada seria de imediato o fenômeno do qual ela seria consciência; a variação imaginária operada sobre a consciência nos revela perfeitamente seu ser próprio que é ser consciência de algo. Pelo fato de ser a consciência intencionalidade torna-se possível efetuar a redução sem perder aquilo que é reduzido: reduzir é no fundo, transformar todo dado em algo que nos defronta, em fenômeno, revelar assim os caracteres essenciais do Eu: fundamento radical ou absoluto, fonte de toda significação ou força constituinte, liame de intencionalidade com o objeto. Bem entendido, a intencionalidade não tem apenas um caráter perceptivo; Husserl distingue diversos tipos de atos intencionais: imaginações, representações, experiência de outrem, intuições sensíveis e categorias, atos da receptividade e da espontaneidade etc.; em suma todos os conteúdos da enumeração cartesiana: "Quem sou eu, eu que penso? Uma coisa que duvida, que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente." Por outro lado, Husserl distingue o eu atual no qual existe consciência "explícita" do objeto e o Eu não-atual, no qual a consciência de objeto está implícita, "potencial". A vivência atual (por exemplo o ato de apreensão atenta) é sempre limitada por uma área de vivências não-atuais, "o fluxo da vivência não pode jamais ser constituído de puras atualidades" (Ideen, 63). Todas as vivências atuais ou não-atuais são igualmente intencionais. Não se deve, portanto, confundir intencionalidade e atenção. Existe, pois, uma intencionalidade desatenta, implícita. Teremos oportunidade de retomar esse ponto, essencial para a ciência psicológica: contém em suma toda a tese fenomenológica referente ao inconsciente.
Vemos, pois, que podemos, com Husserl , falar de uma inclusão do mundo na consciência, pois a consciência não é somente o polo Eu (noesis) da intencionalidade, mas igualmente o polo isto (noema); mas é necessário sempre precisar que esta inclusão não é real (o cachimbo está no quarto) mas intencional (o fenômeno cachimbo está na minha consciência). Esta inclusão intencional, revelada em cada passo particular pelo método de análise intencional, significa que a relação da consciência com seu objeto não é o de duas realidades exteriores e independentes, porquanto de um lado o objeto é Gegenstand, fenômeno que remete à consciência para a qual ele aparece, e de outro lado a consciência é consciência deste fenômeno. Sendo a inclusão intencional, é possível fundar o transcendente no imanente sem degradá-lo. Assim, a intencionalidade é por si mesma uma resposta à indagação: como pode haver um objeto em si para mim? Perceber o cachimbo é precisamente visá-lo como existente real. Assim, o sentido do mundo é decifrado como sentido que eu dou ao mundo, mas esse sentido é vivido como objetivo, eu o descubro, sem o que ele não seria o sentido que tem o mundo para mim. Colocando em nossas mãos a análise intencional, a redução nos permite descrever rigorosamente a relação sujeito-objeto. Essa descrição consiste em fazer operar a "filosofia" imanente à consciência natural e não em esposar passivamente o dado. Ora, esta "filosofia" é a própria intencionalidade que a define. A análise intencional (donde o seu nome) deve, pois, definir como o sentido do ser (Seinssinn) do objeto é constituído; pois a intencionalidade é um visar, mas é igualmente por sua vez um dar sentido. A análise intencional se apodera do objeto constituído como sentido e revela essa constituição. Assim; nas Ideen II, Husserl procede sucessivamente às constituições da natureza material, da natureza animada e do Espírito. Não é preciso dizer que a subjetividade não é "criadora" pois ela por si mesma é apenas Ichpol, mas, por sua vez, a "objetividade" (Gegenstandlichkeit) só existe como polo de uma visada intencional que lhe confere seu sentido de objetividade.