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Genealogia da psicanálise

Henry (1985:343-345) – o inconsciente não tem existência teórica

O Símio do Homem

terça-feira 19 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

Rodrigo Vieira Marques

A elaboração sistemática das estruturas fundamentais do aparecer tal como se prosseguiu através das problemáticas inaugurais de Descartes  , de Schopenhauer   e de Nietzsche  , torna agora possível uma crítica radical da psicanálise, quer dizer, uma determinação filosófica do conceito de inconsciente. Sem dúvida que Freud   tinha consciência de que uma tal determinação – escapava por completo à psicanálise, ao intentar desembaraçar-se de modo agressivo de uma questão sobre a qual a disciplina que acabava de fundar repousa por completo: “A questão relativa à natureza desse inconsciente não é… mais judiciosa, nem mais rica de perspectivas que [aquela] relativa à natureza do consciente”. A originariedade da psicanálise está, portanto, recusando toda abordagem conceitual, dada como especulativa, do inconsciente, em construí-lo a partir de um material patológico incontestável, como a única chave possível desse dado analítico, como a lei de inteligibilidade do que, sem ela, seria apenas incoerência e enigma. Daí que vai apenas um passo entre duas coisas pretender que só o analista que se ocupou de algum modo pessoal e concretamente, através de sintomas e resistências, com o inconsciente em ato e o tocou assim como que com o dedo – “habituamo-nos a manejar o inconsciente como algo palpável…” – saiba do que fala e possa sorrir das refutações abstratas. Mas a decisão de descartar toda a legitimação teórica em nome de uma prática foi sempre suspeita e Freud   nunca pensou, parece-nos, que só um crente estivesse habilitado a tratar de religião.

O inconsciente não tem, então, outra existência teórica senão esta: ser o único princípio de explicação possível do material patológico, de tal [327] maneira, todavia, que a legitimação não dependa, de modo derradeiro, da pertença do princípio explicativo, mas do próprio material patológico enquanto tal, enquanto dado incontestável. Em que é que o material analítico é um dado incontestável? Enquanto aparece. Pode-se rejeitar verbalmente uma filosofia da consciência, pois é sobre a essência previamente desdobrada da própria consciência que repousa toda a problemática psicanalítica que se lhe pretende opor.

Assim também, os textos nos quais Freud   situa explicitamente na consciência o ponto de partida, ou antes, o lugar de seu trabalho teórico são os mais numerosos: “…o fato de ser consciente… é o ponto de partida de todas as nossas investigações”. É verdade que há como que uma dupla motivação desse começo inevitável. Uma é explícita e repete-se ao longo de toda a obra. É o caráter lacunar do dado consciencial, que permanece ininteligível neste estado e reclama para ser compreendido a intervenção de outros processos que não aparecem, mas que a análise se revela capaz de reconstruir. No Compêndio de psicanálise de 1938, Freud   dirá ainda: “todo o mundo está de acordo em pensar que os processos conscientes não formam séries fechadas sobre si mesmas e sem lacuna…”. Mas quando em presença de uma tal situação da filosofia da consciência, cedendo bruscamente todas as suas posições, se vê constrangida a confiar à subestrutura fisiológica o cuidado de preencher os vazios, de restabelecer a continuidade, de modo a ser o organismo a constituir o verdadeiro fundamento da vida consciencial reduzida, quer se queira ou não, a um epifenômeno, a psicanálise, pelo contrário, bate-se admiravelmente por reservar à psique o princípio de sua explicação. Ela não evita seguramente a grande clivagem do pensamento clássico entre o aparecer e o ser, sendo o primeiro, justamente, apenas a aparência do segundo, uma aparência que o oculta mais do que o revela ou que, na psicanálise, apenas o revela sob a forma de disfarces. Ao menos o ser é homogêneo na aparência, pertencendo como ela, à psique, de modo que a sua unidade, do homem e de sua vida fica salvaguardada. Mas o ser não é somente homogêneo à aparência que pretende fundar, ele é secretamente tributário dela, procede sempre dela e, finalmente, se encontra determinado por ela. Como diz, pois, Nietzsche  : “O que é para mim a ‘aparência’! Não, em verdade, o contrário de um ser qualquer – e que eu posso dizer de um ser qualquer que não consegue enunciar os atributos de sua aparência!”. Tal é o verdadeiro motivo que constrange [328] a problemática do inconsciente a ir buscar a sua origem e fundamento à consciência: já não é o caráter lacunar e enigmático do seu conteúdo, mas é a sua existência mesma enquanto aparece que é consciente, quer dizer, a própria consciência enquanto tal.

Original

L’élaboration systématique des structures fondamentales de l’apparaître telle qu’elle s’est poursuivie à travers l’analyse des problématiques inaugurales de Descartes  , de Schopenhauer   et de Nietzsche  , rend maintenant possible une critique radicale de la psychanalyse, c’est-à-dire une détermination philosophique du concept d’inconscient. Qu’une telle détermination ait totalement manqué à la psychanalyse, Freud   en avait sans doute conscience lorsqu’il tenta de se débarrasser de façon agressive d’une question sur laquelle la discipline qu’il venait de fonder repose tout entière : « La question relative à la nature de cet inconscient n’est… pas plus judicieuse ni plus riche de perspectives que [celle] relative à la nature du conscient » [1]. L’originalité de la psychanalyse c’est donc, en refusant toute approche conceptuelle, donnée comme spéculative, de l’inconscient, de construire celui-ci à partir d’un matériel pathologique incontestable, comme la seule clé possible de ce donné analytique, comme la loi d’intelligibilité de ce qui, sans elle, ne serait qu’incohérence et énigme. De là à prétendre que seul l’analyste qui a eu affaire en quelque sorte personnellement et concrètement, à travers symptômes et résistances, à l’inconscient en acte et l’a ainsi comme touché du doigt — « nous avons pris l’habitude de manier [344] l’inconscient comme quelque chose de palpable… » [2] — sait de quoi il parle et peut sourire des réfutations abstraites, il n’y a qu’un pas. Mais la décision d’écarter toute légitimation théorique au nom d’une pratique est toujours suspecte et Freud   n’a, semble-t-il, jamais pensé que seul un croyant était habilité à traiter de religion.

L’inconscient n’a donc d’existence théorique que celle-ci : être le seul principe d’explication possible du matériel pathologique, de telle manière toutefois que la légitimation ne tient pas ultimement à la pertinence du principe explicatif mais au matériel pathologique lui-même en tant que tel, en tant que donné incontestable. En quoi le matériel analytique est-il un donné incontestable ? En tant qu’il apparaît. On peut rejeter verbalement une philosophie de la conscience, c’est sur l’essence préalablement déployée de la conscience elle-même que repose toute la problématique psychanalytique qu’on prétend lui opposer.

Aussi bien les textes où Freud   situe explicitement dans la conscience le point de départ ou plutôt le lieu même de son travail théorique sont-ils les plus nombreux : « … le fait d’être-conscient… est le point de départ de toutes nos recherches » [3]. Il est vrai qu’il y a de ce commencement inévitable comme une double motivation. L’une est explicite et se répète tout au long de l’œuvre. C’est le caractère lacunaire du donné conscientiel, lequel demeure inintelligible en cet état et réclame pour être compris l’intervention d’autres processus qui eux n’apparaissent pas mais que l’analyse se révèle capable de reconstruire. Dans l’Abrégé de psychanalyse de 1938, Freud   dira encore : « tout le monde s’accorde à penser que les processus conscients ne forment pas des séries fermées sur elles-mêmes et sans lacune… » [4]. Mais alors qu’en présence d’une telle situation la philosophie de la conscience, cédant brusquement toutes ses positions, se voit contrainte de confier à la substructure physiologique le soin de combler les vides, de rétablir la continuité, en sorte que l’organisme constitue le véritable [345] fondement de la vie conscientielle réduite, qu’on le veuille ou non, à un épiphénomène, la psychanalyse au contraire se bat admirablement pour garder à la psyché le principe de son explication. Elle n’évite assurément pas le grand clivage de la pensée classique entre l’apparaître et l’être, le premier n’étant justement que l’apparence du second, une apparence qui le cache plutôt qu’elle ne le révèle ou qui ne le révèle, dans la psychanalyse, que sous la forme de déguisements. Du moins l’être est-il homogène à l’apparence, appartenant comme elle à la psyché, en sorte que l’unité de celle-ci, de l’homme et de sa vie, est sauvegardée.

Seulement l’être n’est pas seulement homogène à l’apparence qu’il prétend fonder, il en est secrètement tributaire, relève toujours d’elle et se trouve finalement déterminé par elle. Car, comme dit Nietzsche   : « Qu’est-ce que pour moi l’ « apparence » ! Non pas en vérité le contraire d’un être quelconque — et que puis-je dire d’un être quelconque qui ne revienne à énoncer les attributs de son apparence ! » [5]. Tel est le motif véritable qui contraint la problématique de l’inconscient à chercher son origine et son fondement dans la conscience : non point le caractère lacunaire et énigmatique du contenu de celle-ci, mais son existence même en tant qu’il apparaît, qu’il est conscient, c’est-à-dire la conscience elle-même en tant que telle.


Ver online : Philo-Sophia


HENRY, Michel. Genealogia da psicanálise. O começo perdido. Tr. Rodrigo Vieira Marques. Curitiba: Editora UFPR, 2009.

HENRY, M. Généalogie de la psychanalyse: le commencement perdu. 2e éd ed. Paris: Pr. Univ. de France, 2003.


[1Ma vie et la psychanalyse, trad. M. Bonaparte, Paris, NRF-Gallimard, coll. « Idées », 1950, p. 57; GW, xiv, p. 57.

[2Introduction à la psychanalyse, trad. S. Jankélévitch, Paris, « Petite Bibliothèque Payot », 1978, p. 260; GW, xi, p. 288.

[3Métapsychologie, op. cit., p. 76 ; GW, X, p. 271.

[4Trad. A. Berman, Paris, PUF, p. 19 ; GW, xii, p. 79-80.

[5Le gai savoir, op. cit., p. 79.