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Hebeche (2005:318-322) – indícios formais

quinta-feira 11 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A noção de “indícios formais” permite uma melhor compreensão da maneira como Heidegger lida com o método fenomenológico. O “indício formal” é concebido como uma preparação da explicação fenomenológica. Ele chama a atenção para os fenômenos da vida fática, de tal modo que, sem esse indício ou indicação prévia, não se teria acesso a esses fenômenos originários; nesse caso, ele funciona como um anúncio, por exemplo, quando se lê no mural “Conferência na sala 100”, ou “Concerto para piano”, ou “Precisa-se de pedreiro”. Essas informações não são a conferência, nem o concerto de piano, nem a construção, visto que a relação dessas atividades com os seus respectivos anúncios não é externa, pois sem estes ninguém [319] poderia dirigir-se para o concerto ou para a conferência, nem a construção poderia ser concluída. Assim, o que é indicado não pode mostrar-se a si mesmo. Porém, o indício formal, como o anúncio nos exemplos, não é uma referência externa ao seu objeto. Ele chama a atenção para o que se passa na vida fática, pois a tendência da filosofia é encobrir os fenômenos originários. A noção de “indícios formais” também é encontrada em Sere Tempo, quando então cede espaço para o método circular de investigação do sentido do ser. Heidegger responde à objeção de que essa circularidade seja viciosa. Não se trata de um círculo vicioso da lógica, mas, antes, de um círculo da compreensão. Ou seja, a elaboração de uma ontologia da existência só é possível porque ela pressupõe, ou melhor, ela é conduzida pela “ideia de existência”. No entanto no § 63 de SZ  , a noção de “indícios formais” é retomada junto com a da circularidade do método. Heidegger retoma essa noção para mostrar como a compreensão ontológica é concebida pelo que já se encontra na vida fática. Como se trata daquilo que já está presente na vida cotidiana? A “ideia de existência” já se encontra na linguagem ordinária em que se expressa a vida fática. Noutras palavras, as regras da análise da cotidianidade já se encontram na pressuposição (vorausgesetzten) [1] do conceito de existência. Sem as regras pressupostas do conceito de existência, que se encontram na vida cotidiana, a análise ontológica não teria nenhuma orientação. A dificuldade está em que a pressuposição desse conceito é ainda obscura e, no entanto, ela orienta a análise da própria cotidianidade. As regras do conceito de existência são paradoxalmente orientadoras, porque sem elas não se pode fazer nenhuma análise, mas também são obscuras, porque carecem de uma análise. Aqui está a posição constante de Heidegger: a cotidianidade (e as suas regras) é inautêntica. A questão é: de onde a análise da cotidianidade inautêntica retira suas regras? As alternativas de um reino platônico ou de uma generalização objetivista estão fechadas. A regra orientadora tem de se [320] encontrar na vida cotidiana, mas como a cotidianidade é inautêntica, então temos uma dificuldade: o caminho que orienta é “crepuscular” (dämmerig), isto é, anda-se aí no lusco-fusco, nem tudo está muito claro, embora o viajante possa orientar-se pelas silhuetas dos objetos. Sem essa orientação prévia — a pressuposição da ideia de existência — nada haveria para esclarecer. Diz então Heidegger: Não está tudo já iluminado, ainda que seja apenas crepuscularmente, pela luz da pressuposição da ideia de existência? De onde tira ela sua legitimidade? Teria carecido de orientação o primeiro projeto indicador dela? De modo algum [SZ  , p. 313]. Assim como o anúncio do concerto de piano ou da conferência chamavam atenção para esses eventos, a “ideia de existência” também chama a atenção previamente para a investigação a ser feita. Daí por que a ideia de existência é a pré-indicação existenciariamente não impositiva da estrutura formal da compreensão geral do ser-aí [SZ  , p.313]. O conceito de existência é uma pré-indicação (vorzeichnung), um pré-lineamento da estrutura formal da compreensão do ser-aí. Portanto esse “primeiro projeto indicador” já é concebido no projeto monocêntrico do ser-aí. Ele é retirado da linguagem ordinária em que se expressa a vida fática e se torna parte da autocompreensão do ser-aí. A “ideia de existência” é retirada da vida fática para adquirir legitimidade no ser-aí. Aliás, já nos primeiros cursos no pós-guerra a vida fática é pensada desde um ente singular. Da regra da pré-compreensão ontológica passa-se para a autocompreensão ontológica do ser-aí. Os “indícios formais” retirados de suas regras cotidianas tornam-se, nas palavras de Russelll, “particulares egocêntricos” [2]. Se em Heidegger o ontólogo vence o hermeneuta da vida fática, é porque a sua concepção da vida fática foi focalizada por sua herança da filosofia da consciência. A noção de ser-aí é introduzida à medida que se vão afastando essas regras pré-teóricas. Porém, elas não podem ser totalmente afastadas pelo risco de a [321] investigação ontológica perder o rumo. Em SZ   esses “indicativos” não mais se vinculam à hermenêutica da vida fática, mas à ontologia existencial. O conceito de “faticidade” — junto com o de “queda” e de “existência” — passa a fazer parte da cura, isto é, do ser do ser-aí. O caráter monocentrista desses “indícios formais” é explicitamente assumido quando Heidegger afirma:

A auto-interpretação pertence ao ser do ser-aí [SZ  , p.312].
 
O indício formal da ideia de existência serviu de orientação para a compreensão do ser (Seinsverständnis) feita pelo ser-aí mesmo. Embora sem transparência ontológica (ontologische Durchsichtichkeit), entende-se que o ente que chamamos de “ser-aí” sou sempre eu mesmo em cada caso, e isso enquanto poder-ser (Seinkönnen) esse ser [SZ  , p.313].

Alguns anos depois Heidegger continua posicionando-se do mesmo modo no seu esforço para impedir a objetivação das palavras elementares da metafísica; elas fornecem indícios, mas que nunca são totalmente preenchidas por conteúdos objetivos; ao contrário, o que está em jogo é a exigência da transformação de si mesmo do ser-aí, isto é, na transformação da metafísica da sua autocompreensão. Heidegger afirma:

Porque os conceitos, uma vez que se deixam conquistar autenticamente, só deixam sempre interpelar discursivamente esta requisição por transformação, mas nunca podem eles mesmos provocar o acontecimento da transformação, eles são indícios. Eles apontam para o interior do ser-aí. Como o compreendo, porém, o ser-aí é sempre — meu. Eles são indícios formais porque, segundo sua essência e em meio a essa indiciação, eles sempre apontam em verdade para o interior de uma correlação do ser-aí singular no homem, mas nunca trazem consigo em seu conteúdo esta concreção [3].

[322] Dessa perspectiva monocêntrica a complexa trama dos conceitos psicológicos é retirada do fluxo da vida para então formar parte da “cura” como faticidade, queda e existência, momentos esses unidos pela unidade ekstática horizontal da temporalidade. Ora, em SZ  , a temporalidade é também concebida desde o ser-aí. Mas a complexidade do fenômeno da cura já se encontra expressa na linguagem ordinária. Essa complexidade se antecipa à psicologia, visto que as palavras psicológicas não são determinadas pela psicologia nem pela ontologia monocêntrica, mas pelas suas regras de uso na linguagem. A angústia não é um sentimento não direcionado à margem da linguagem, ou melhor, a angústia não é uma abertura vazia; ao contrário, ela tem certas funções na linguagem. Há, portanto, uma orientação prévia da angústia e que se encontra no modo como essa palavra é usada. São os distintos usos das palavras na linguagem que distinguem angústia, temor, medo, alegria, tédio ou desespero. A complexidade do fenômeno da cura encontra-se na rede de uso das palavras psicológicas. Essas regras são a orientação prévia. Sem elas não se poderia falar de auto-interpretação (Selbstauslegung) ou autoconsistência (Selbständigkeit) do si-mesmo. As regras de uso das palavras são o “originário”, e não há explicação para elas, ou, como diz Wittgenstein  , as regras são “onde a pá entorta” [4]

Com a noção de “indício formal” também se pretende evitar a generalização ou a formalização. Ou seja, antes de qualquer teoria a orientação prévia se encontra na vida fática. E, como vimos, sem essa orientação prévia não há projeto ontológico. Diz Heidegger:

Mas para tal, não há aqui uma orientação e regramento próprios (eigene Leitung und Regelung)? De onde os projetos ontológicos retiram a evidência da adequação fenomenal de seus “achados” (Befunde)? Onde o caminho (Wegweiser) encontra indicações para orientar o seu projeto a fim de alcançar o ser? [SZ  , p. 312]


Ver online : INDÍCIOS FORMAIS


HEBECHE, Luiz. O escândalo de Cristo : ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005


[1Wodurch regelten sich die Schritte der Analyse der uneigentlichen Alltäglichkeit, es sei denn durch de angesetzten Existenzbegriff? SZ,p.313. Essas regras retiradas da vida fática, porém, acabam por ser consideradas desde o ser-aí.

[2B. Russelll, Significado e Verdade, trad. Alberto Oliva, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978, p. 98-104.

[3Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica — mundo, finitude, solidão; trad. Marco Casanova, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 339. Modifiquei ligeiramente a tradução.

[4“Como posso seguir a regra?" — Se isso não é uma pergunta pelas causas, é então uma pergunta pela justificação para o fato de que eu ajo assim segundo a regra. Se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura e a minha pá entortou. Estou, portanto, inclinado a dizer: “é assim que eu ajo". Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (PLI) § 217.