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Gadamer (VM): obscuridade

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Ao mesmo tempo, o autor tem clara consciência de que a arte da interpretação alcançou uma espécie de urgência nova e particular, já que a arte da interpretação proporciona, ao mesmo tempo, a justificação da interpretação. Esta não faz nenhuma falta enquanto o escolar tiver o mesmo conhecimento que o intérprete" (de maneira que a "compreensão" lhe seja evidente, "sem demonstração"), nem tampouco "quando existe uma boa confiança no intérprete". Nenhuma dessas duas condições parece-lhe ser mais cumprida em seu tempo, a segunda pelo fato de que (sob o signo do Aufklärung) "os alunos querem ver com os seus próprios olhos", e a primeira porque, ao se ter incrementado o conhecimento das coisas — isso se refere ao progresso da ciência — , a obscuridade das passagens que se procura compreender, se torna cada vez maior (parágrafo 668s). A necessidade de uma hermenêutica aparece, pois, com o desaparecimento do compreender-por-si-mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O limite dessa hermenêutica, fundamentada no conceito [195] da individualidade, mostra-se no fato de que Schleiermacher   não considera a tarefa da filologia e da exegese bíblica, a de compreender um texto composto em uma língua estrangeira e procedente de uma época passada mais problemática do que qualquer outro compreender. Evidentemente que também para Schleiermacher coloca-se uma tarefa especial, lá onde se tem de superar uma distância no tempo. Schleiermacher chama-o de "equiparação com o leitor original". Mas essa "operação do ser igual", a produção lingüística e histórica dessa igualdade não é para o verdadeiro ato do compreender, que, para ele, não é a equiparação com o leitor original, mas a equiparação com o autor, através da qual o texto é aberto como manifestação vital própria de seu autor. O problema de Schleiermacher não é o da obscuridade da história mas a obscuridade do tu. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sendo assim, o ideal da história universal tem de conquistar à concepção histórica do mundo uma problemática muito particular, na medida em que se interrompe na obscuridade. Falta ao nexo universal da história o caráter de ser concluído, que possui um texto para o filólogo, e que faz com que, por exemplo, uma biografia, mas também a história de uma nação do passado, que já desapareceu do cenário da história universal, e até mesmo a história de uma época já encerrada e que ficou para trás pareça converter-se em um conjunto de sentido acabado, um texto compreensível por si. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na realidade, a premissa da misteriosa obscuridade, onde se encontra uma consciência coletiva mítica anterior a todo pensar, é tão dogmático-abstrata como o de um estado perfeito de esclarecimento total ou de saber absoluto. A sabedoria originária não é mais que a outra face da "ignorância originária". Toda consciência mítica já é sempre um saber, e na medida em que se sabe de poderes divinos, já está posicionada além do simples tremer ante o poder (se é que se pode supor tal coisa num estágio originário), mas também além de uma vida coletiva presa a rituais mágicos (como se encontra, por exemplo, no velho oriente). A consciência mítica sabe de si própria, e nesse saber já não se encontra simplesmente fora de si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O pensamento-guia das discussões que se seguem é o de que a fusão dos horizontes que se deu na compreensão é o genuíno desempenho da linguagem. O certo é que, o que é linguagem é uma das coisas mais obscuras que há para a reflexão humana. O caráter lingüístico está tão extraordinariamente próximo de nosso pensar e na sua realização é tão pouco objetivo, que ele esconde, a partir de si próprio, o seu verdadeiro ser. No entanto, na nossa análise do pensamento espiritual-científico, nós alcançamos uma tal proximidade desse obscuro geral e que pesa sobre todas as coisas, que podemos nos sentir confiantes da orientação adquirida pela coisa em causa nesse caminho. A partir da conversação que nós mesmos somos, buscamos nos aproximar da obscuridade da linguagem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A partir dessa perspectiva, o centro da hermenêutica histórica assume um problema que até o presente ocupava uma posição marginal muito problemática, a saber, a questão do mito. Trata-se do mais obscuro dos problemas da metodologia histórica. Como interpretar cientificamente os mitos? Qual é o preconceito óbvio e fecundo que devemos levar em conta? O sentido dos mitos, o sentido dos contos é o mais profundo. Em que parâmetro mede-se sua interpretação? Não podemos pressentir aqui que não há nenhum método para interpretar mitos e contos? E isto não acaba nos levando à conclusão de que, no fim e na verdade, não somos capazes de interpretar os mitos e contos porque são eles que nos interpretam? Onde se manifestam, eles são de fato aquilo que é verdadeiramente sublime, aquilo que tudo sabe, que em toda obscuridade nos fala de uma forma simples e didática. Os mitos e contos parecem desde o princípio plenos de sabedoria de todas as coisas, e no entanto, possuem uma profundidade histórica própria. O espírito iniciado em seu mistério não é o espírito de nossa razão histórica. É por isso que nós, homens históricos, ficamos desconcertados diante daquilo que para as crianças é natural. Apesar disso, mesmo a nossa razão iluminista permanece ainda submissa à força do mito. A história espiritual da humanidade não é um processo de desendeusamento do mundo, não é uma dissolução do mito pelo logos, pela razão. Este esquema repousa no preconceito do esclarecimento histórico, quer dizer, na pressuposição ingênua de que a razão do ser racional representa uma base suficiente para a sua vitória e seu predomínio. Na verdade, a razão não pode possibilitar a si própria. Ela própria é uma possibilidade e uma oportunidade históricas. Não compreende a si mesma e muito menos a realidade mítica que a abarca e sustenta. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Sabemos o alcance do poder e a força impositiva que tem a moda. Ora, a palavra "moda" soa terrivelmente mal no âmbito da ciência. É evidente que pretenderíamos estar por cima das exigências da moda. Porém, a pergunta é justamente esta: não pertence à natureza da própria coisa que a moda habite também a ciência? Será que o modo em que conhecemos a verdade não implica necessariamente que cada passo que damos para frente nos distancia mais dos pressupostos de que partimos, os faz retornar à obscuridade do óbvio, e que justamente com isso dificulta infinitamente a suplantar esses pressupostos, experimentar outros novos, e com isso adquirir conhecimentos realmente novos? Dá-se algo como uma burocratização não somente da vida mas também das ciências. Perguntamos: Isso radica-se na natureza da própria ciência ou será uma espécie de doença cultural da ciência, semelhante a outros fenômenos patológicos de outras áreas, quando por exemplo nos admiramos dos blocos gigantescos de nossos prédios administrativos e de dependências de empresas seguradoras? Talvez radique-se na essência da própria verdade, como foi pensada primeiramente pelos gregos, e com isso também na essência de nossas possibilidades de conhecimento, como foram criadas primeiramente pela ciência grega. Como vimos acima, a ciência moderna nada mais fez do que radicalizar os pressupostos da ciência grega, decisivos para o conceito de logos, enunciado e [52] juízo. A investigação fenomenológica, marcada em nossa geração na Alemanha pelo pensamento de Husserl   e Heidegger, teve por interesse dar conta dessa questão, perguntando pelas condições de verdade do enunciado que ultrapassam o âmbito do lógico. Creio que se pode dizer, por princípio, que não pode haver enunciado que seja verdadeiro de modo absoluto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma "aplicação consciente" que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se "normativa", no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

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Só que, como um olhar no título de seu escrito já pode nos ensinar, enfoca-se, no fundo, falsamente Chladenius se se entende a sua hermenêutica como uma ante-forma da historiografia. Não somente porque o caso da "interpretação dos livros históricos" não é, para ele, o ponto mais importante — de qualquer modo, trata-se sempre do conteúdo objetivo dos escritos — mas também porque, para ele, todo o problema da interpretação se coloca, no fundo, como pedagógico e é de natureza ocasional. A interpretação se ocupa expressamente de "discursos e escritos racionais". Para ele, interpretar significa "acrescentar aqueles conceitos que são necessários para a compreensão plena de uma passagem". A interpretação, portanto, não deve "indicar a verdadeira compreensão de uma passagem", mas é determinada expressamente para resolver as obscuridades que impedem ao escolar a "compreensão plena dos textos" (Prefácio). Na interpretação é preciso que nos guiemos pela perspectiva do escolar (parágrafo 102). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Embora possa se dar também o caso inverso, de que "um autor possa ter tido em mente mais do que se pôde compreender", para ele a verdadeira tarefa da hermenêutica não é a de, afinal, juntar este "mais" à compreensão, mas compreender os próprios livros na sua significação verdadeira e objetiva. Como "todos os livros dos homens e seus discursos contêm em si algo de incompreensível" — ou seja, obscuridades que procedem da falta de transparência objetiva — é necessário chegar a uma interpretação correta: "Passagens estéreis podem se nos tornar fecundas", isto é, "dar ocasião a novas idéias". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas é isso nosso presente? Só Hegel   é para nós esse presente? De certo, não devemos restringir dogmaticamente a Hegel. Se ele falou de um final da história, a ser alcançado quando chegasse a liberdade para todos, isso significa que a história só acaba no sentido de que não cabe estabelecer um princípio superior ao da liberdade de todos. A progressiva escravidão geral que começou a estabelecer-se como um destino ineludível da civilização mundial não seria a seus olhos nenhuma objeção contra o princípio. Seria simplesmente "pior para os fatos". Frente a Hegel, podemos perguntar, no entanto, se o princípio primeiro e último em que acaba o pensamento filosófico do ser é o "espírito". O pensamento dos jovens hegelianos orientou-se pela crítica a esse postulado, e a meu ver foi Heidegger o primeiro a abrir uma possibilidade positiva que transcende a mera inversão dialética. Essa é sua tese básica: a "verdade" não é a plena desocultação (Unverborgenheit), cuja realização ideal seria em última instância a autopresença do espírito absoluto. Heidegger nos ensinou que a verdade deve ser concebida como desvelamento e velamento ao mesmo tempo. Os grandes ensaios da tradição, nos quais de certo modo sentimo-nos identificados com o que dizem, movem-se todos nessa tensão. O que se enuncia não é tudo. É só o não dito o que converte o dito em palavra que pode nos alcançar. Essa idéia parece-me conter um acerto irreprovável. Os conceitos em que se formula o pensamento emergem de um muro de obscuridades. São unilaterais, afirmativos, cheios de preconceitos. Basta lembrar-nos do intelectualismo grego, da metafísica da vontade do idealismo alemão, ou do metodologismo dos neokantianos e dos neopositivistas. Expressam-se a seu modo, mas desconhecendo-se a si mesmos. Estão presos nos pressupostos de seus conceitos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.