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ENSAIOS E CONFERÊNCIAS

GA7: Habitar

CONSTRUIR, HABITAR, PENSAR

segunda-feira 27 de fevereiro de 2017, por Cardoso de Castro

Excerto da tradução brasileira de Marcia Schuback  

Parece que só é possível habitar o que se constrói. Este, o construir, tem aquele, o habitar, como meta. Mas nem todas as construções são habitações. Uma ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica são construções e não habitações; a estação ferroviária, a autoestrada, a represa, o mercado são construções e não habitações. Essas várias construções estão, porém, no âmbito de nosso habitar, um âmbito que ultrapassa essas construções sem limitar-se a uma habitação. Na autoestrada, o motorista de caminhão está em casa, embora ali não seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Na usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Essas construções oferecem ao homem um abrigo. Nelas, o homem de certo modo habita e não habita, se por habitar entende-se simplesmente possuir uma residência. Considerando-se a atual crise habitacional, possuir uma habitação é, sem dúvida, tranquilizador e satisfatório; prédios habitacionais oferecem residência. As habitações são hoje bem divididas, fáceis de se administrar, economicamente acessíveis, bem arejadas, iluminadas e ensolaradas. Mas será que as habitações trazem nelas mesmas a garantia de que aí acontece um habitar? As construções que não são uma habitação ainda continuam a se determinar pelo habitar uma vez que servem para o habitar do homem. Habitar seria, em todo caso, o fim que se impõe a todo construir. Habitar e construir encontram-se, assim, numa relação de meios e fins. Pensando desse modo, porém, tomamos habitar e construir por duas atividades separadas, o que não deixa de ser uma representação correta. As relações essenciais não se deixam, contudo, representar adequadamente através do esquema meio-fim. Construir não é, em sentido próprio, apenas meio para uma habitação. Construir já é em si mesmo habitar. Quem nos diz isso? Quem nos oferece de fato uma medida para dimensionarmos o vigor essencial do que seja habitar e construir? O acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem. Isso só acontece, porém, quando prestamos atenção ao vigor próprio da linguagem. Enquanto essa atenção não se dá, desenfreiam-se palavras, escritos, programas, numa avalanche sem fim. O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo a senhora do homem. Talvez seja o modo de o homem lidar com esse assenhoreamento que impele o seu ser para a via da estranheza. É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão. Dentre todos os apelos que nos falam e que nós homens podemos a partir de nós mesmos contribuir para se deixar dizer, a linguagem é o mais elevado e sempre o primeiro.

O que diz então construir? A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir, "buan", significa habitar. Diz: permanecer, morar. O significado próprio do verbo bauen (construir), a saber, habitar, perdeu-se. Um vestígio encontra-se resguardado ainda na palavra "Nachbar", vizinho. O Nachbar (vizinho) é o "Nachgebur", o "Nachgebauer", aquele que habita a proximidade. Os verbos buri, büren, beuren, beuron significam todos eles o habitar, as estâncias e circunstâncias do habitar. Sem dúvida, a antiga palavra buan não diz apenas que construir é propriamente habitar, mas também nos acena como devemos pensar o habitar que aí se nomeia. Quando se fala em habitar, representa-se costumeiramente um comportamento que o homem cumpre e realiza em meio a vários outros modos de comportamento. Trabalhamos aqui e habitamos ali. Não habitamos simplesmente. Isso soaria até mesmo como uma preguiça e ócio. Temos uma profissão, fazemos negócios, viajamos e, a meio do caminho, habitamos ora aqui, ora ali. Construir significa originariamente habitar. Quando a palavra bauen, construir, ainda fala de maneira originária diz, ao mesmo tempo, que amplitude alcança o vigor essencial do habitar. Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã "bin", eu sou nas conjugações ich bin, du bist, eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede. O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que pertence "bin", "sou", responde: "ich bin", "du bist" (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo-, proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. A construção de navios, a construção de um templo produzem, ao contrário, de certo modo a sua obra. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir -construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir permanece, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, "habitual". Isso esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos ’de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação. Essas atividades acabam apropriando-se com exclusividade do termo bauen (construir) e com isso da própria coisa nele designada. O sentido próprio de construir, a saber, o habitar, cai no esquecimento.

Parece que esse acontecimento refere-se a uma transformação semântica ocorrida no mero âmbito das palavras. Na verdade, porém, aí se abriga algo muito decisivo: o fato de não mais se fazer a experiência de que habitar constitui o ser do homem, e de que não mais se pensa, em sentido pleno, que habitar é o traço fundamental do ser-homem.


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