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Fuchs (2018:58-60) – Memória intercorporal

terça-feira 6 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

O exemplo do diagnóstico psiquiátrico já nos levou a situações, que são com certeza maximamente significativas para nós homens: o encontro concreto, corpóreo com os outros, a situação intercorporal. Ela é determinada em tal medida pelas experiências prévias com os outros, que nós também podemos falar de uma memória intercorporal, que se acha em todo e qualquer encontro implícita e que é efetiva na maioria das vezes de uma maneira pouquíssimo consciente.

Logo que entramos em contato com outros homens, nossos corpos interagem uns com os outros, tateiam-se constantemente, desencadeiam sensações sutis uns nos outros. Eles se compreendem, sem que possamos dizer exatamente por meio do que e como isso acontece. Merleau-Ponty   designou essa esfera do contato involuntário como “intercorporeidade”. Também faz parte dessa esfera a primeira impressão que obtemos de um homem. Ele não apenas apreende de maneira segura a figura exterior de seu corpo, mas algo de seu modo essencial de ser, de seu estilo pessoal, sem que nós possamos explicitar suas características em particular. A personalidade de um homem ganha expressão em sua corporeidade, ou seja, em sua entrada em cena, em seus gestos e em seu jeito, em sua postura, em seu modo de andar ou em sua voz.

Tais posturas e modos de comportamento corporais estão indissoluvelmente articulados com padrões de interação; eles também expressam sentimentos, posicionamentos e ligações com os outros. Assim, por exemplo, a postura submissa em relação a uma pessoa dotada de autoridade também contém ao mesmo tempo componentes da postura e do movimento (parte posterior do corpo curvada, ombros encolhidos, obstrução do movimento), componentes de interação (distância respeitosa, voz baixa, aquiescimento) e componentes sentimentais (respeito, humildade, temerosidade). Todas as nossas interações baseiam-se em tais prontidões comportamentais corporais [58] uniformes, emocionais, que entraram em nossa carne e em nosso sangue e se tornaram algo como andar e escrever. Elas se tornaram aquilo que eu denomino estrutura corporal da personalidade. A postura envergonhada, submissa, por exemplo, de um homem dependente, sua voz fraca, sua mímica infantil, sua flexibilidade e temerosidade fazem parte de um padrão de postura e de expressão, que constitui essencialmente sua personalidade. Mesmo as nossas posturas fundamentais, nossas reações típicas e nossos padrões de relacionamento — em uma palavra: nossa personalidade está, com isto, ancorada em nossa memória corporal.

Com base nos avanços das pesquisas do desenvolvimento psicológico, podemos reconstruir hoje melhor o desenvolvimento da memória intercorporal. Essas pesquisas mostraram que o desenvolvimento motor, o desenvolvimento emocional e o desenvolvimento social na primeira infância não transcorrem por vias separadas, mas estão estreitamente articulados por meio da disposição de esquemas afetivo-motores uniformes. As interações sociais primevas se sedimentam como esboços de comportamentos, como “micropráticas corporais” (Downing 2004) na memória corporal. Essa memória forma um extrato de experiências repetidas, prototípicas com a mãe e outras pessoas de referência, elaborando esse extrato e transformando-o em padrões de interação diádicos, em “schemes of being-with” or “acting-with!’ (Stern 1998a): eu-com-minha-mãe-mamando, eu-com-meu-pai-jogando-bola etc. Daí emerge aquilo que Daniel Stern denomina um saber relacional implícito (Stern 1998b): um saber corporal sobre como se lida com os outros — sobre como se tem com eles prazer, como se expressa alegria, como se desperta atenção, como se evita rejeição etc. Ele diz respeito, portanto, ao como das relações interpessoais, não ao quid (isto é, aos acontecimentos particulares ou às propriedades de uma pessoa). Trata-se de uma memória temporalmente organizada, em certa medida “musical”, uma memória para o ritmo, a dinâmica e os “subtons”, que vibram concomitantemente na interação com os outros de maneira inaudível. [59]

Esta comunicação se sedimenta na criança em determinadas expectativas e prontidões para o comportamento, ou seja, em esquemas interativos-emocionais-corporais. Crianças mostram claramente com mais frequência alegria e interesse no contato com os outros, quando elas realizaram essas trocas com sua mãe (Beebe et al. 1997). Mas mesmo prontidões para reações sentimentais como medo ou vergonha são transportadas para a criança, quando os pais se comportam de tal modo, como se o mundo fosse perigoso e hostil. Assim, padrões de comportamento que se exploram e se expandem são bem desenvolvidos ou são, contudo, obstaculizados, dependendo do encorajamento ou da restrição por meio de pessoas de referência na infância. Não é apenas o andar ereto ou a fala que as crianças aprendem mimeticamente a partir dos outros, mas também prontidões mais sutis do comportamento e da lida. Meu andar pode assumir mais tarde uma semelhança com o do meu pai a ponto de ser confundido com o dele. As experiências com minha mãe podem determinar concomitantemente como eu encontro uma mulher completamente diferente; e sem que eu esteja consciente disso, minha mãe vive concomitantemente na situação. A intercorporeidade primeva tem, portanto, consequências bem amplas: como resultado de um processo de aprendizado, que se assemelha à aquisição de capacidades motoras, os homens configuram e encenam mais tarde suas ligações de maneira correspondente aos padrões, que eles extraíram de suas primeiras experiências. As primeiras interações transformam-se em estilos implícitos de ligação e marcam, com isto, as estruturas fundamentais do espaço relacionai, no qual um homem vive durante toda a sua vida.


Ver online : Thomas Fuchs


FUCHS, Thomas. Para uma psiquiatria fenomenológica: Ensaios e conferências sobre as bases antropológicas da doença psíquica, memória corporal e si mesmo ecológico. Tr. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2018