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Deleuze (2005:105-106) – a metafísica está e deve ser ultrapassada
sábado 26 de outubro de 2024
Encontra-se muitas vezes, entre os autores modernos mais importantes, um pensamento que tem o duplo aspecto de uma constatação e de uma profecia: a metafísica está e deve ser ultrapassada. A filosofia, à medida que seu destino é concebido como metafísico, dá e deve dar lugar a outras formas de pensamento, a outros modos de pensar.
Esta ideia moderna é encontrada em contextos variados, que a dramatizam:
1e) Deus está morto (seria interessante fazer uma antologia de todas as versões de Deus-morto, de todas as encenações dessa morte. Por exemplo, a volta de bicicleta de Jarry [1]. Somente em Nietzsche pode-se encontrar uma dúzia de versões, e a primeira delas de maneira alguma é a da Gaia Ciência, mas a do Viandante e sua sombra, no admirável texto do guarda da prisão [2]. Mas, seja como for, a morte de Deus significa para a filosofia a abolição da distinção cosmológica entre dois mundos, da distinção metafísica entre essência e aparência, da distinção lógica entre verdadeiro e falso. A morte de Deus reivindica, pois, uma nova forma de pensamento, uma transmutação de valores).
2e) O homem também morre (deixa de crer na substituição de Deus pelo homem, de crer no homem-Deus que ficaria no lugar de Deus-homem. Com efeito, nada muda com a troca de lugar, [106] os velhos valores permanecem. E necessário que o niilismo vá até o fim de si mesmo, no homem que quer morrer, no último homem, o homem da era atômica anunciada por Nietzsche ).
3e) Esse algo distinto que está por vir é concebido como uma força que age desde já na subjetividade humana, mas se ocultando nela e também a destruindo. (Cf. “Algo me pensa” de Rimbaud.) A ação dessa força se efetiva segundo duas vias, a da história real e do desenvolvimento da técnica, e a da poesia e da criação poética de máquinas fantásticas imaginárias. Tal concepção reclama um novo pensador (um novo sujeito do pensamento, “morte ao Cogito’’), novos conceitos (um novo objeto pensado), novas formas de pensamento (que integrem o velho inconsciente poético e as potências mecânicas atuais, Heráclito e a cibernética). De certo modo, essa tentativa de ultrapassar a metafísica já é conhecida. Pode ser encontrada em graus diversos, em Nietzsche , em Marx , em Heidegger. O único nome geral que lhe convém foi o criado por Jarry, patafísica. A patafísica deve ser definida: “Um epifenômeno é o que se sobrepõe a um fenômeno. A patafísica… é a ciência do que se sobrepõe à metafísica, seja nela mesma, seja fora dela mesma, estendendo-se tanto para além desta quanto esta para além da física. Ex.: se o epifenômeno é usualmente o acidente, a patafísica será sobretudo a ciência do particular, embora se diga que somente há ciências do geral” [3]. Falemos para os especialistas: o Ser é o epifenômeno de todos os entes, que deve ser pensado pelo novo pensador, que é, ele próprio, epifenômeno do homem.
[A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). Editora Iluminuras, São Paulo, 2005]
Ver online : Gilles Deleuze
[1] A. Jarry, La Chandelle verte, “La Passion considerée comme course de côte” in Oeuvres complètes, I, Paris, Gallimard, coll. “Bibliothèque de la Pleiade”, 1987, p. 420-422.
[2] Gai Savoir, III, § 125; Humain, trop humain, II, 2a parte, § 84.
[3] Gestes et opinions du docteur Faustrol, patafísico, livro II, viii, in Oeuvres complètes, I, Paris, Gallimard, coll. “Bibliothèque de la Pleiade”, 1972, 668.