Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Deleuze (1976:V.8) – o devir-reativo do homem e no homem

sábado 26 de outubro de 2024

Zaratustra não cessa de dizer a seus “visitantes”: vocês falharam, são naturezas falhas. É preciso compreender essa expressão no sentido mais forte: não é o homem que não consegue ser homem superior, não é o homem que falha ou malogra seu objetivo, não é a atividade do homem que falha ou malogra seu produto. Os visitantes de Zaratustra não se sentem como falsos homens superiores, sentem o homem superior que são como algo falso. O próprio objetivo é falhado, malogrado não em virtude de meios insuficientes, mas em virtude de sua natureza, em virtude do que ele é como objetivo. Não se falha o objetivo na medida em que não se o atinge; é como objetivo atingido que ele é também objetivo falhado. O próprio produto é malogrado, não em virtude de acidentes que sobreviriam, mas em virtude da atividade, da natureza da atividade da qual é o produto. Nietzsche   quer dizer que a atividade genérica do homem ou cultura só existe como o término suposto de um devir-reativo que faz do princípio dessa atividade um princípio que malogra, do produto dessa atividade um produto malogrado. A dialética é o movimento da atividade enquanto tal; é também essencialmente malograda e malogra essencialmente; o movimento das reapropriações, a atividade dialética, forma um todo com o devir-reativo do homem e no homem. Considere-se a maneira pela qual os homens superiores se apresentam: seu nojo, seu grito de angústia, sua “consciência infeliz”. Todos sabem experimentam o caráter falho do objetivo que atingem, o caráter malogrado produto que são. A sombra perdeu o objetivo, não que ela não o tenha atingido, mas o objetivo que atinge é, ele mesmo, um objetivo perdido. A atividade genérica e cultural é um falso cão de fogo, não que seja uma aparência de atividade, mas porque tem apenas a realidade que serve de primeiro termo ao devir reativo. É nesse sentido que os dois aspectos do homem superior são conciliados: o homem reativo como a expressão sublimada ou divinizada das forças reativas, o homem ativo como o produto essencialmente fracassado de uma atividade que fracassa essencialmente em seu objetivo. Devemos portanto recusar toda interpretação que apresente o super-homem como tendo sucesso ali onde o homem superior fracassa. O super-homem não é um homem que se ultrapassa e consegue se ultrapassar. Entre o super-homem e o homem superior a diferença é de natureza, tanto na instância que os produz respectivamente como no objetivo que eles atingem respectivamente. Zaratustra diz: “Vocês, os homens superiores, acreditam que eu esteja aqui para reparar o que fizeram mal feito?” Não podemos também seguir uma interpretação como a de Heidegger que faz do super-homem a realização e mesmo a determinação da essência humana. Pois a essência humana não espera o super-homem para se determinar. Ela é determinada como humana, demasiado humana. O homem tem como essência o devir reativo das forças. Mais do que isso, dá ao mundo uma essência, esse devir como devir universal. A essência do homem e do mundo ocupado pelo homem é o devir reativo de todas as forças, o niilismo e nada além do niilismo. O homem e sua atividade genérica, eis aí as duas doenças de pele da terra.

[GILLES DELEUZE  . NIETZSCHE   E A FILOSOFIA. Tradução de Nietzsche   et la philosophie. Paris: PUF, 1962. Tr. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Editora Rio, 1976]


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