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Filosofia Contemporânea

Carneiro Leão (2013:33-34) – pensar o conhecido

A Fenomenologia de Edmund Husserl e a Fenomenologia de Martin Heidegger

domingo 12 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Filosofia Contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013

Heidegger está de acordo que a fenomenologia de todo fenômeno nasça, provenha e se constitua no doar-se de uma intuição originária. Mas não está de acordo que esta intuição seja de conteúdo reflexivo. Ela se dá, sem dúvida, na reflexão, mas não como reflexão, pois não sendo conteúdo algum, já antecede ontologicamente toda reflexão e acontece, como advento do ser numa dis-posição originária, numa Grundbefindlichkeit, da pré-sença. Por isso mesmo, para Heidegger, a filosofia não é, primordialmente, uma construção de conhecimento, é uma experiência de pensamento, do mesmo nível ontológico da religiosidade, da mitologia, da poesia, da vida e da morte e de toda mentalidade, no sentido de todos os processos mentais e não mentais do homem.

Se, para o conhecimento, o grande desafio está em conhecer o desconhecido, para o pensamento, o desafio é pensar o conhecido. Todo pensamento só pensa o já pensado no e pelo não pensado. Neste sentido, o já pensado é o que há de mais escondido e velado no e pelo conhecimento que gera. Se, para o conhecimento, esclarecer está em levar o obscuro para o claro, no pensamento se dá o contrário, esclarecer é levar o claro para o escuro, desmascarando o já sabido, ao revelar o não sabido. É nisto que reside toda a ironia socrática do não saber no saber. Quem busca a verdade no esclarecimento, na iluminação, no êxtase, nunca haverá de encontrá-la, pois todo esforço nunca estancia, sempre distancia a verdade da não verdade. Eis porque quem procura nunca encontra. Todo êxtase ou é sempre entase ou é ilusão. É o conselho que nos deixou Sto. Agostinho  : “noli foras ire, in te ipsum redi, in interiore hominis habitat veritas E, numa homilia da Ressurreição, Sto. Ambrosio se espanta com o esforço de Maria Madalena, buscando, no jardim do sepulcro, o cadáver de Jesus de Nazaré: “procuras fora o que está dentro? Buscas entre os mortos quem está [33] vivo”? Na fenomenologia, trata-se de ver com os olhos de todo o ser que se acha e se tem aos olhos. O fenômeno grita em cada esquina e clama pelas praças afora. Está por toda parte, na sarjeta e no ferro velho, na vida e na morte, no monte de lixo e no monturo de estrume. Dá-se abertamente em plena claridade, seja do meio dia, seja da meia noite. Basta abrir os olhos para dentro e para fora, como faz a rosa à luz da manhã, nas palavras de um médico do século XVII, que, em suas andanças de arauto, se chamava de Angelus Silesius  , mensageiro da Silésia. O ser não está atrás do que é e está sendo. Por detrás do sendo, não há nada, nem ser, nem sendo, somente Nada.

De certa feita, chegou a Friburgo na Alemanha, um japonês da Escola de Kioto com uma pergunta e a fez a Heidegger: que é isso, fenomenologia? A resposta foi: é coisa bem simples; o fenômeno tal como ele mesmo é, tal como se dá e acontece em si mesmo, é nisto que está toda a fenomenologia. Mais importante do que conhecer o que não se conhece, é saber o que já se conhece. Na fenomenologia, não está em jogo outra coisa do que aquilo que já sempre se sabe. Não há, nem se dá nada de diferente do fenômeno. Trata-se sempre do fenômeno, como ele mesmo é. E como é o fenômeno? O fenômeno é, sendo outro. Na fenomenologia, chega-se lá onde já sempre se estava e não se estava. O propósito é vir a ser o princípio que, desde sempre, já se é. Tal como nos disse, há mais de 2 milênios, a famosa expressão de Aristóteles: to ti en einai. que Boécio traduziu para o latim de toda a Idade Média, numa fórmula curiosa: quod quid erat me; o que já sempre era ser. É a mais antiga definição de fenomenologia. Para a fonte, nunca se poderá ir e chegar, pelo simples fato de já se provir dela. Para a fonte só é possível mesmo retornar. É o que, no testemunho de Platão, Heráclito   de Efeso já sabia, e sabia com um sabor originário: “não se entra duas vezes no mesmo rio”!


Ver online : Emmanuel Carneiro Leão