Todo o vivido intencional, graças aos seus momentos noéticos, é precisamente um vivido noético; a sua essência é de esconder em si algo como um «sentido», quiçá um sentido múltiplo, e, com base nestas doações de sentido e em íntima ligação com elas, exercer outras funções que, graças a elas, se tornem precisamente «plenas de sentido». Estes momentos noéticos são, por exemplo, as conversões do olhar do eu puro em direção do objeto «visado» pelo eu em virtude da doação de sentido, em suma, na direção do objeto que, para ele, está «subjacente ao sentido»; é, além disso, a captação do objeto, a sua conservação enquanto o olhar se virou para outros objetos que penetraram no círculo do «visar»; acrescentemos também as funções de explicitação, de relacionação, de apreensão global, as múltiplas tomadas de posição da fé, da conjetura, da avaliação, etc. Tudo isto deve ser descoberto nos vividos considerados, sejam quais foram as suas diferenças de estrutura e as suas variações internas. Esta série de momentos citados a título de exemplos pode perfeitamente remeter para componentes reais dos vividos, não obstante remetem também, a título de sentido, para componentes não reais.
Em todo o caso, aos múltiplos data que compõem o estatuto real noético, corresponde uma multiplicidade de data susceptíveis de ser exibidos numa intuição verdadeiramente pura: formam um «estatuto noemático» correlativo, ou mais gravemente o «noema»; são estes termos que, doravante, empregaremos constantemente.
A percepção, por exemplo, tem o seu noema, a saber, no grau inferior, o seu sentido de percepção, isto é, o percepcionado como tal. Do mesmo modo, a recordação possui sempre o seu «recordado» como tal; possui-o precisamente enquanto seu, exatamente como é «visado» na recordação e acede «à consciência»; do mesmo modo ainda o juízo comporta o «julgado como tal», o agradar, o agradável como tal, etc. Era todos estes casos, o correlato noemático, isto é, o «sentido» (dando a esta palavra uma significação muito lata) deve ser tomado exatamente tal como reside a título «imanente» no vivido da percepção, do juízo, do prazer, etc, isto é, tal como nos é oferecido por este vivido quando interrogamos puramente este mesmo vivido.
A análise de um exemplo mostrará, em plena luz, em que sentido compreendemos estas declarações (conduziremos esta análise somente com os recursos da intuição).
Suponhamos que o nosso olhar se dirige com um sentimento de prazer a uma macieira em flor, num jardim, sobre o verde suave da relva, etc. Manifestamente, a percepção e o prazer que a acompanha não são o que ao mesmo tempo é percepcionado e agradável. Na atitude natural, a macieira é para nós um existente situado na realidade espacial transcendente, e a percepção, tal como o prazer, é um estado psíquico que nos pertence, a nós homens reais na natureza. Entre uma e outra realidade natural, entre o homem como realidade natural ou a percepção como realidade natural, e a macieira como realidade natural, existem relações que são igualmente uma realidade natural. Em certos casos, dir-se-á que em tal situação vivida a percepção é «pura alucinação», que o percepcionado, a saber esta macieira à nossa frente, não existe na realidade «verdadeira». Neste caso, a relação natural, que antes era visada como subsistindo realmente, é destruída. A percepção fica só, não está aí mais nada de real a que ela se relaciona.
Passemos agora à atitude fenomenológica. O mundo transcendente toma os seus «parêntesis», o seu ser real é submetido à epoche. Perguntamos, então, o que pode ser descoberto do ponto de vista eidético no complexo do vivido noético incluído na percepção e na avaliação agradável. Ao mesmo tempo que o conjunto do mundo físico e psíquico, a subsistência real da relação natural entre percepção e percepcionado é posta fora de circuito; e no entanto subsiste manifestamente uma relação entre percepção e percepcionado (como também entre o agradar e o agradável); esta relação acede ao grau de dado eidético na «pura imanência», a saber sobre o fundamento somente do vivido de percepção e de prazer fenomenologicamente reduzido, e tal como ele se insere no fluxo transcendental do vivido. É precisamente esta situação que nos deve ocupar, a situação puramente fenomenológica. É possível que a fenomenologia também tenha algo a dizer e talvez muito a dizer a respeito das alucinações, ilusões e, em geral, das percepções mentirosas; mas é evidente que estas percepções mentirosas, encaradas com o papel que desempenhavam no quadro da atitude natural, caiam sob a redução fenomenológica. Doravante, se se considera a percepção e mesmo um encadeamento de percepções que se prossegue de qualquer maneira (como quando contemplamos, passeando, a árvore em flor), não temos que nos perguntar, por exemplo, se lhe corresponde alguma coisa «na» realidade. Esta realidade tética, considerada relativamente ao juízo, para nós não está aí. Não obstante, tudo permanece, por assim dizer, como parece. O vivido da percepção, mesmo após a redução fenomenológica, é a percepção de «esta macieira em flor, neste jardim, etc»; de igual modo, o prazer depois da redução é o prazer que temos nesta mesma árvore. A árvore não perdeu o mínimo matiz de todos os momentos, qualidades, caracteres com os quais aparecia nesta percepção, e com os quais se mostrava «bela», «cheia de atrativo», etc, «neste» prazer.