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Considerações sobre a crise do senso comum

Barbuy: senso comum (8) - cosmologia

Revista Brasileira de Filosofia, vol. III, fasc. 4, 1953

quarta-feira 6 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 156-157.

8. A luta entre o heliocentrismo e o geocentrismo não se desenrolou no plano da física, mas no da Metafísica. Não foi por um progresso da ciência que se viu que a terra girava em torno do sol; foi pela morte da Metafísica que a terra deixou de ser a habitação do espírito humano convertendo-se numa simples massa que gira em torno do sol. Copérnico mesmo declara ter encontrado o fundo de sua opinião   já expressa desde a antiguidade por Nicetas de Siracusa que, segundo Cícero, acreditava no movimento da terra, sendo isto admitido por outros, segundo Plutarco. Cinco séculos antes de Cristo, Filolau, discípulo de Pitágoras, expôs a teoria de que a terra se move do oriente para o ocidente e juntamente com os outros planetas gira em torno do sol; e no século terceiro a.C Aristarco de Samos descobria que a terra se move sobre si mesma e em torno do sol, inventando ainda um método que permitia calcular as distâncias relativas da terra ao sol e à lua. Repetindo e precisando essas teorias, o trabalho de Copérnico foi publicado em 1543, passando desapercebido durante perto de trinta anos; sua aceitação só se dilatou realmente no século seguinte, quando se desenvolvia plenamente a tendência a tratar os problemas em termos físicos e não metafísicos. Não havia em Copérnico nenhuma inovação fundamental, sendo sua descoberta velha no mínimo de dezoito séculos; mas servia de instrumento para deslocar o centro do mundo da entidade metafísica de Deus para a entidade física do sol. Os gregos não deram a Filolau e Aristarco uma importância tão grande, ainda que muitos pudessem estar convencidos da autenticidade de suas teorias; porque, o fato de girar a terra em torno do sol não podia para eles significar que o sol fosse o centro do sistema, desde que suspendiam o mundo no centro do divino, de onde, como transluz em Aristóteles, vinha descendo a hierarquia das cousas, estando cada qual no seu lugar e não se podendo confundir o plano do ser com o plano das massas e dos corpos. Assim a chamada Idade Média se serviu de Ptolomeu sem maiores preocupações, porque nunca lhe teria acudido discutir se o centro do sistema planetário era a terra ou o sol; tratava-se apenas de viver esta verdade, que o centro de toda a realidade é Deus, pouco importando que a terra gire ao redor do sol ou inversamente. Certo, ninguém contesta as descobertas de Copérnico, Galileu   e Newton  ; mas o que se contesta é a extensão dessas [156] descobertas como explicativas de uma realidade que elas não atingem. A terra pode muito bem ser um planeta insignificante e girar ao redor do sol, sem que com isto se prove que ela não é o centro do mundo; o mundo não é apenas um conjunto de corpos e a importância dos corpos não está no seu volume; o mundo como tal, no seu sentido de mundus, de kosmos  , é o lugar onde habitamos, onde o espírito do Criador deixou o traço mais vivo de sua obra; o mundo é o conjunto de Crisipo vivido, e não uma prospecção científica; e o homem pode ser um caniço, uma poeira na poeira da terra, mas é, como disse Pascal  , em seu conhecido aforismo, um caniço pensante, e nisto reside a sua superioridade. Foi quando Deus deixou de ser o centro da vida que a velha e rica teoria do heliocentrismo se tornou a expressão da miséria do espírito humano. “Já não há mais horizontes ao redor: e a terra foi desvinculada dos elos que a aproximavam do seu sol”.