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Arendt (RJ:125-127) – "há que haver escândalos…"
segunda-feira 20 de julho de 2020
Rosaura Einchenberg
O mal segundo Jesus é definido como o "obstáculo", skandalon [escândalo, tropeço], que os poderes humanos não podem remover, de modo que o malfeitor real aparece como o homem que nunca deveria ter nascido: "Seria melhor para ele que uma pedra de moinho fosse dependurada ao redor de seu pescoço e ele, lançado ao mar" [Mt 18,6]. O critério já não é o eu e o que o eu pode ou não pode suportar, aquilo com que pode conviver, mas a execução e as consequências da ação em geral. O skandalon é aquilo que não está em nosso poder reparar – pelo perdão ou pela punição – e o que, portanto, permanece como um obstáculo para todas as demais execuções e atos. E o agente não é alguém que, na compreensão platônica, pode ser reformado pela punição ou que, se estiver fora do alcance do aprimoramento, vai oferecer pelos seus sofrimentos um exemplo dissuasivo aos outros; o agente é um ofensor à ordem do mundo como tal. Para usar outra das metáforas de Jesus, ele é como a erva daninha, "o joio no campo", com o qual nada se pode fazer exceto destruí-lo, queimá-lo na fogueira. Jesus nunca disse o que é esse mal que não pode ser perdoado pelos homens ou por Deus, e a interpretação do skandalon, o obstáculo, como sendo o pecado contra o Espírito Santo, não nos esclarece muito mais a esse respeito, exceto que esse é o mal com o qual concordo sem reservas, que cometo voluntariamente. Acho essa interpretação difícil de se reconciliar com os ditos nos Evangelhos, em que a questão do livre-arbítrio ainda não é proposta. Mas o que é indubitavelmente enfatizado nesse ponto é o dano causado à comunidade, o perigo que surge para todos.
Parece-me óbvio que essa é a posição do homem de ação, distintamente da posição do homem cujo principal interesse e preocupação é pensar. O radicalismo de Jesus na questão do mal – um radicalismo ainda mais impressionante por estar intimamente ligado com o maior liberalismo possível para com todos os tipos de malfeitores, inclusive adúlteros, prostitutas, ladrões e publicanos – nunca foi aceito, ao que saiba, por nenhum dos filósofos que já tenha lidado com o problema. Basta pensar em Espinosa , para quem o que chamamos de mal não passa de um aspecto sob o qual a inquestionável bondade de tudo o que existe aparece aos olhos humanos, ou em Hegel , para quem o mal como o negativo é a força poderosa que impulsiona a dialética do vir a ser, e em cuja filosofia os malfeitores, longe de serem o joio entre o trigo, vão até aparecer como os fertilizantes do campo. Justificar o mal no sentido duplo de maldade e desgraça sempre esteve entre as perplexidades da metafísica. A filosofia no sentido tradicional, que é confrontada com o problema do Ser como um todo, sempre se sentiu obrigada a afirmar e encontrar um lugar apropriado para tudo o que existe. Voltarei uma vez mais para Nietzsche a fim de resumir esse lado do problema. Ele disse (Vontade de poder, n. 293): "A noção de uma ação a ser rejeitada, a ser repelida (verwerfliche Handlung), cria dificuldades. Nada do que acontece pode chegar ao ponto de ser rejeitado; não se deveria querer eliminá-lo, pois tudo está tão intimamente ligado com tudo o mais que rejeitar uma coisa significa rejeitar tudo. Uma ação rejeitada, isso significa um mundo rejeitado". A noção de que Nietzsche fala nesse trecho, a de que eu poderia dizer um não sem ressalvas a um acontecimento particular ou a uma pessoa particular, no sentido de que isso não deveria ter acontecido, ou que ela não deveria ter nascido, é uma noção abominada por todos os filósofos. E quando ele afirmou que: "[…] para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito" (Além do bem e do mal, n. 39), ele estava firmemente ancorado nessa tradição, só que traduziu em termos muito concretos as ideias um tanto abstratas de seus predecessores; que essas afirmações soavam heréticas aos seus próprios ouvidos, que eram ainda os ouvidos do filho de um pastor protestante, é outra questão. É verdade, entretanto, que ele vai além dessa tradição quando, no mesmo aforismo, menciona: "As pessoas más que são felizes - uma espécie de homens sobre a qual os moralistas se calam". Essa observação pode não ser particularmente profunda e parece que Nietzsche nunca voltou ao tema, mas ela atinge realmente o cerne de todo o problema, pelo menos do problema proposto em termos tradicionais.
[ARENDT , Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tr. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 191-192]
Original
Evil according to Jesus is defined as a “stumbling stone,” skandalon, which human powers cannot remove, so that the real wrongdoer appears as the man who should never have been born—”it were better for him that a millstone were hanged about his neck and he cast into the sea.” The criterion is no longer the self and what the self can or cannot bear to live with, but the performance and the consequences of the deed at large. The skandalon is what is not in our power to repair—by forgiving or by punishment— and what therefore remains an obstacle for all further performances and doings. And the agent is not somebody who, in the Platonic understanding, can be reformed through punishment or, if he is beyond improvement, will offer through his sufferings a deterrent example for others; the agent is an offender to the world order as such. He is, to take another of Jesus’ metaphors, like the weed, “the tares in the field,” with which one can’t do anything except destroy them, burn them in the fire. Jesus never said what this evil is that can’t be forgiven by men or God, and the interpretation of the skandalon, the stumbling stone, as being the sin against the Holy Ghost, does not tell us much more about it, except that this is the evil to which I wholeheartedly assent, which I commit willingly. I find this interpretation difficult to reconcile with the sayings in the Gospels, where the question of free will is not yet raised. But what is stressed here beyond doubt is the harm done to the community, the danger arising to all.
It seems obvious to me that this is the position of the man of action as distinguished from the position of the man whose main concern and preoccupation is thinking. Jesus’ radicalism in the question of evil—a radicalism all the more impressive as it is so intimately bound up with the greatest possible large-mindedness toward all sorts of wrongdoers, including adulterers, prostitutes, thieves, and publicans—has never been accepted, as far as I know, by any philosopher who ever touched upon the problem. You need only to think of Spinoza , to whom what we call evil is but an aspect under which the unquestionable goodness of everything that is appears to human eyes, or of Hegel , to whom evil as the negative is the powerful force that drives on the dialectic of becoming, and in whose philosophy the evildoers, far from being the tares among the wheat, will even appear as the fertilizers of the field. To justify evil in the two-fold sense of wickedness and misfortune has always belonged among the perplexities of metaphysics. Philosophy in the traditional sense, which is confronted with the problem of Being as a whole, has always felt obligated to affirm and find an appropriate place for everything that is. I shall again turn to Nietzsche in order to sum up this side of our problem: He said (Willto Power, no. 293), “The notion of an action to be rejected, to be cast away [verwerfliche Handlung], creates difficulties. Nothing that happens at all can be such as to be rejected; one should not want to eliminate it, for everything is so intimately connected with everything else that to reject one thing means to reject all. One outcast action, that means an outcast world.” The notion of which Nietzsche speaks here, that I could say an unqualified no to a particular event or to one particular person in the sense of “It shouldn’t have happened, he shouldn’t have been born,” is indeed a notion abhorred by all philosophers. And when he claimed that “the wicked and the misfortunate are in a more favorable position to discover certain parts of truth” (Beyond Good and Evil, no. 39), he was firmly anchored in this tradition except that he translated into very concrete terms the rather abstract ideas of his predecessors; that such statements sounded heretical in his own ears, which were still the ears of a Protestant minister’s son, is another matter. It is true, however, that he goes beyond this tradition when, in the same aphorism, he mentions “the wicked people who are happy—a species of men whom the moralists pass over in silence.” This observation may not be particularly deep and it seems Nietzsche never came back to it, but it actually hits the very center of the whole problem, at least of the problem posed in traditional terms.
"Some Questions of Moral Philosophy", in ARENDT , Hannah. Responsability and Judgement. New York: Schocken, 2003 (ebook) [RJ]
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