Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Arendt (CH:§34) – ação enquanto nascimento

terça-feira 28 de abril de 2020

Roberto Raposo

Na medida em que a moralidade é mais que a soma total de mores, costumes e padrões de comportamento consolidados pela tradição e validados à base de acordos — e tanto a tradição como os acordos mudam com o tempo — a própria moralidade não tem outro apoio, pelo menos no plano político, senão a boa intenção de neutralizar os enormes riscos da ação através da disposição de perdoar e ser perdoado, de fazer promessas e cumpri-las. Estes são os únicos preceitos morais que não são aplicados à ação a partir de fora, de alguma faculdade supostamente superior ou de experiências fora do alcance da própria ação. Pelo contrário: decorrem diretamente do desejo de conviver com outros na modalidade da ação e do discurso e são, assim, mecanismos de controle embutidos na própria faculdade de iniciar processos novos e intermináveis. Se é verdade que, sem a ação e o discurso, sem a manifestação constituída pelo nascimento, estaríamos condenados a voltear para sempre no ciclo incessante do processo vital, também é verdade que, sem a faculdade de desfazer o que fizemos e de controlar, pelo menos parcialmente, os processos que desencadeamos, seríamos vítimas de uma necessidade automática, com todas as marcas das leis inexoráveis que, segundo as ciências naturais de antanho, seriam as principais características dos processos naturais. Já vimos que, para seres mortais, essa fatalidade natural, embora gire em torno de si mesma e seja eterna, só pode representar a ruína. Se a fatalidade fosse, de fato, a característica inalienável dos processos históricos, seria também igualmente verdadeiro que tudo o que é feito na história está condenado à mesma ruína.

E, até certo ponto, isto é verdade. Entregues a si mesmos, os negócios humanos só podem seguir a lei da mortalidade, que é a única lei segura de uma vida limitada entre o nascimento e a morte. O que interfere com essa lei é a faculdade de agir, uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana que, por sua vez, como vimos, interrompe e interfere com o ciclo do processo da vida biológica. Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar. No entanto, assim como, do ponto de vista da natureza, o movimento retilíneo da vida do homem entre o nascimento e a morte parece constituir um desvio peculiar da lei natural comum do movimento cíclico, também a ação, do ponto de vista dos processos automáticos que aparentemente determinam a trajetória do mundo, parece um milagre. Na linguagem da ciência natural, é «o infinitamente improvável que ocorre regularmente». A ação é, de fato, a única faculdade milagrosa que o homem possui, como Jesus de Nazaré, que vislumbrou essa faculdade com a mesma originalidade e ineditismo com que Sócrates   vislumbrou as possibilidades do pensamento, deve ter sabido muito bem ao comparar o poder de perdoar com o poder mais geral de operar milagres, colocando a ambos no mesmo nível e ao alcance do homem.

Original

In so far as morality is more than the sum total of mores, of customs and standards of behavior solidified through tradition and valid on the ground of agreements, both of which change with time, it has, at least politically, no more to support itself than the good will to counter the enormous risks of action by readiness to forgive and to be forgiven, to make promises and to keep them. These moral precepts are the only ones that are not applied to action from the outside, from some supposedly higher faculty or from experiences outside action’s own reach. They arise, on the contrary, directly out of the will to live together with others in the mode of acting and speaking, and thus they are like control mechanisms built into the very faculty to start new and unending processes. If without action and speech, without the articulation of natality, we would be doomed to swing forever in the ever-recurring cycle of becoming, then without the faculty to undo what we have done and to control at least partially the processes we have let loose, we would be the victims of an automatic necessity bearing all the marks of the inexorable laws which, according to the natural sciences before our time, were supposed to constitute the outstanding characteristic of natural processes. We have seen before that to mortal beings this natural fatality, though it swings in itself and may be eternal, can only spell doom. If it were true that fatality is the inalienable mark of historical processes, then it would indeed be equally true that everything done in history is doomed.

And to a certain extent this is true. If left to themselves, human affairs can only follow the law of mortality, which is the most certain and the only reliable law of a life spent between birth and death. It is the faculty of action that interferes with this law because it interrupts the inexorable automatic course of daily life, which in its turn, as we saw, interrupted and interfered with the cycle of the biological life process. The life span of man running toward death would inevitably carry everything human to ruin and destruction if it were not for the faculty of interrupting it and beginning something new, a faculty which is inherent in action like an ever-present reminder that men, though they must die, are not born in order to die but in order to begin. Yet just as, from the standpoint of nature, the rectilinear movement of man’s life-span between birth and death looks like a peculiar deviation from the common natural rule of cyclical movement, thus action, seen from the viewpoint of the automatic processes which seem to determine the course of the world, looks like a miracle. In the language of natural science, it is the “infinite improbability which occurs regularly.” Action is, in fact, the one miracle-working faculty of man, as Jesus of Nazareth, whose insights into this faculty can be compared in their originality and unprecedentedness with Socrates  ’ insights into the possibilities of thought, must have known very well when he likened the power to forgive to the more general power of performing miracles, putting both on the same level and within the reach of man.

ARENDT  , H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§34]


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