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Araújo de Oliveira (1996:211-212) – temporalidade e linguagem
quinta-feira 8 de fevereiro de 2024
A forma específica de temporalidade do homem enquanto cuidado só se revela, plenamente, na morte: “o mundo do estar-aí se estrutura a partir do cuidado que tem uma forma específica de temporalidade que se manifesta na morte. Somente da morte compreende-se um poder-ser-to tal que, entretanto, nunca se realiza: ou ainda não somos totais, ou então, quando totais, não mais nos podemos compreender” [1]. A temporalidade emerge, assim, como o sentido do ser do eis-aí-ser e, por conseguinte, como o horizonte de sentido do próprio ser. A temporalização do ser, em seus três momentos constitutivos, constitui o horizonte último de compreensão do ser do eis-aí-ser. O eis-aí-ser é fundamentalmente ontológico; significa agora dizer que ele é abertura original, verdade original, na medida precisamente em que o evento da temporalização é a priori de toda compreensão do ser [2].
Ora, para Heidegger, é aqui o lugar originário da linguagem: linguagem só pode ser adequadamente pensada a partir da temporalização do tempo enquanto evento de revelação. A compreensão heideggeriana do tempo é mediada pela analítica existencial, portanto o tempo se dá, fundamentalmente, desde o que fazer prático do homem com o mundo, isto é, com os utensílios, com os outros entes [3]. A temporalidade emerge, assim, como o próprio sentido do cuidado, [211] com seus três êxtases fundamentais: futuro (ser-adiante-de-si-mesmo), passado (já-ser-em), presente (estar-junto-das-coisas) e seus esquemas, o que supera a concepção metafísica de tempo toda ela orientada para o presente. O tempo deixa de ser simples sucessão de momentos para emergir como horizonte de compreensão do ser-aí [4].
Enquanto ser da temporalidade, o eis-aí-ser é compreensão de si. O que se compreende é sempre linguisticamente articulado e comunicável [5]. Toda sentença sobre os entes radica, em última análise, no desvelamento do ser enquanto verdade originária. O desvelamento do ser na abertura do eis-aí-ser passa, então, pela linguagem que emerge, já aqui, em Ser e Tempo , como o trazer à palavra a compreensão originária do ser [6]. Heidegger, como já foi dito, considera justificada uma teoria do discurso; porém, a partir da analítica da existência, ele tematiza a condição de possibilidade de toda teoria do discurso, dentro, contudo, de um paradigma novo para a filosofia, o que implica a rejeição de qualquer tipo de ontologia primeira, seja a ontoteologia (discurso sobre Deus), seja a cosmologia (discurso sobre o mundo natural). Não se trata mais de fundamentar, mas de compreender, e o eis-aí-ser é o lugar onde a compreensão do ser emerge [7].
[Araújo de Oliveira, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996]
Ver online : Manfredo Araújo de Oliveira
[1] E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 69.
[2] R. Hosokowa, “‘Sein und Zeit’ als ‘Wiederholung’ der Aristotelischen Seinsfrage”, in: Phil. Jahrbuch 94 (1987), pp. 362-371, aqui p. 368.
[3] E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 105: “O encurtamento hermenêutico não representava apenas uma operação teórica sem precedentes na história da filosofia, mas significava, sobretudo, também uma operação prática: o homem não seria mais contemplador de um sistema espelhado em sua mente do qual ele faria parte. O encurtamento hermenêutico entregava ao homem a instauração de seu mundo, a produção de seu universo, o universo do sentido. Mas isso não como novo demiurgo, espectador imparcial, e sim como estar-aí, por definição jogado na praxis do ser-no—mundo, somente se compreendendo na operação de sentido brotado no manejo dos objetos, dos artefatos, dos utensílios”. Para distinguir, contudo, claramente a postura de Ser e Tempo e a postura de Marx, Stein afirma a intenção básica de Heidegger: aplicando as distinções de Habermas sobre os “atos de fala”, pode-se dizer que os enunciados de Ser e Tempo são descritivos, isto é, têm como pretensão a verdade.
Elaboram, portanto, uma teoria compreendedora do homem. Nesse sentido, não apresentam um sentido prescritivo, de convocação à praxis, como é o caso em Marx: E. Stein, op. cit. pp. 108-109. Cf. M. Heidegger, Uber den Humanismus, op. cit., p. 111. G. Prauss, Erkennnen und Handeln in Heideggers “Sein und Zeit”, Friburgo/Muni-que, 1977. O. Pöggeler, Philosophie und Politik bei Heidegger, Friburgo/Munique, 1972. F. Fédier, Heidegger. Anatomia de um escândalo, Petrópolis, 1989, pp. 105ss.
[4] E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 115: “Aqui reside a grande descoberta de Heidegger: o tempo se dá num compromisso prático do homem com o lidar com o ente disponível, com o utensílio, o artefato, a obra. Esse é o existencial sem o qual não se dariam os outros dois modos de ser do estar-aí: a representação do ente puramente subsistente e o compreender-se em direção do existir. Daí a apreensão da temporalidade como o sentido do cuidado (Sorge) com os três êxtases: futuro, passado, presente, e os esquemas desses êxtases (Um-zu, Wozu, Womit)”.
[5] M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., §§ 31-34.
[6] Cf. a tentativa de J. B. Lötz de um diálogo com Heidegger a partir da filosofia escolástica: J. B. Lötz, “Aletheia und Orthotes. Versuch einer Deutung im Lichte der Scholastik”, in: Sein und Existenz, op. cit., pp. 120-134. B. Rioux, “La notion de vérité chez Heidegger et Saint Thomas d’Aquin”, in: Saint Thomas d’Aquin aujourd’hui, Paris, 1963, pp. 197-217.
[7] E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 104: “É a introdução de uma nova teoria que se distancia da tradição metafísica que recusa o esquema sujeito-objeto para pensar a realidade, sobretudo a do homem que produz uma totalidade a partir da imanência da condição humana e recusa as totalidades introduzidas de fora — a partir de Deus ou a partir do mundo natural. Nova teoria que pretende pensar o homem em sua condição prática, como ser-no-mundo, num processo de compreensão produtora de sentido, e que, portanto, supera a teoria da tradição, antes contempladora do mundo, antes edificadora de uma moral para o homem, antes visionária de uma nova história”.