Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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dissimulação

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

O deixar-ser [Seinlassen] do ente que dispõe o ser-aí com o ente em sua totalidade penetra e precede todo o comportamento [Verhalten  ] aberto que nele se desenvolve. O comportamento do homem é perpassado pela disposição de humor que se origina da revelação [Offenbarkeit  ] do ente em sua totalidade. Esta “em sua totalidade” aparece, entretanto, à preocupação e ao cálculo cotidiano como o imprevisível e o inconcebível. Este “em sua totalidade” jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertença ele quer à natureza, quer à história. Ainda que este “em sua totalidade” a tudo perpasse constantemente com sua disposição, permanece, contudo, o não-disposto (não-determinado) e o não-disponível (indisponível, indeterminável) e é, desta maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente e menos digno de nota. Aquilo que assim nos dispõe de maneira alguma é nada, mas uma DISSIMULAÇÃO do ente em sua totalidade. Justamente, na medida em que o deixar-ser sempre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, e com isto o desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade. O deixar-ser é, em si mesmo, simultaneamente, uma DISSIMULAÇÃO [Verbergung  ]. Na liberdade ek-sistente do ser-aí acontece a DISSIMULAÇÃO do ente em sua totalidade, é o velamento. [tr. Ernildo Stein  ; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

O velamento recusa o desvelamento à aletheia  . Nem o admite até como steresis   (privação), mas conserva para a aletheia o que lhe é mais próprio, como propriedade. O velamento é, então, pensado a partir da verdade como desvelamento, o não-desvelamento e, desta maneira, a mais própria e mais autêntica não-verdade pertencente à essência da verdade. O velamento do ente em sua totalidade não se afirma como uma consequência secundária do conhecimento sempre parcelado do ente. O velamento do ente em sua totalidade, a não-verdade original, é mais antiga do que toda revelação de tal ou tal ente. É mais antiga mesmo do que o próprio deixar-ser que, desvelando, já dissimula e, assim, mantém sua relação com a DISSIMULAÇÃO. O que preserva o deixar-ser nesta relação com a DISSIMULAÇÃO? Nada menos que a DISSIMULAÇÃO do ente como tal, velado em sua totalidade, isto é, o mistério. Não se trata absolutamente de um mistério particular referente a isto ou àquilo, mas deste fato único que o mistério (a DISSIMULAÇÃO do que está velado) como tal domina o ser-aí do homem. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

No deixar-ser desvelador e que simultaneamente dissimula o ente em sua totalidade acontece o fato de que a DISSIMULAÇÃO aparece como aquilo que está velado em primeiro lugar. Enquanto existe, o ser-aí instaura o primeiro e o mais amplo não-desvelamento, a não-verdade original. A não-essência original da verdade é o mistério. O termo não-essência não implica aqui ainda aquele traço de degradação que lhe atribuímos quando a essência é entendida como universalidade (koinon  , genos), como possibilitas (possibilitação) do universal e como seu fundamento. É que a não-essência visa aqui à essência pré-existente. Ordinariamente, entretanto, a “não-essência” designa a deformação da essência já degradada. Mas em todas estas significações a não-essência está sempre ligada essencialmente à essência, segundo as modalidades correspondentes, e jamais se torna inessencial no sentido de indiferente. Falar, entretanto, assim da não-essência e da não-verdade choca demasiadamente a opinião   ainda corrente e parece uma acumulação forçada de “paradoxos” arbitrariamente construídos. Já que é difícil afastar esta aparência, renunciamos a esta linguagem paradoxal apenas para a dóxa (opinião) comum. Para o bom entendedor certamente o “não” da não-essência original da verdade como não-verdade aponta para o âmbito ainda não-experimentado e inexplorado da verdade do ser (e não apenas do ente). [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

A liberdade enquanto deixar-ser do ente é em si mesma uma relação re-solvida, uma relação que não está fechada sobre si mesma. Todo comportamento se funda sobre esta relação e dela recebe a indicação que o refere ao ente e a seu desvelamento. Entretanto, esta relação com a DISSIMULAÇÃO se esconde a si mesma nesta relação enquanto dá primazia a um esquecimento do mistério e nele desaparece. Ainda que o homem se relacione constantemente com o ente, limita-se, contudo, habitualmente, a este ou àquele ente em seu caráter revelado. O homem se limita à realidade corrente e passível de ser dominada, mesmo ali onde se decide o que é fundamental. E se ele se decide alargar, transformar, se reapropriar e assegurar o caráter revelado do ente nos domínios mais variados de sua atividade, ele, contudo, procura as diretivas para tal nos estreitos limites de seus projetos e necessidades correntes. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

Instalar-se na vida corrente é, entretanto, em si mesmo o não deixar imperar a DISSIMULAÇÃO do que está velado. Sem dúvida, também na vida corrente existem enigmas, obscuridades, questões não decididas e coisas duvidosas. Mas todas estas questões, que não surgem de nenhuma inquietude e estão seguras de si mesmas, são apenas transições e situações intermediárias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais. Lá onde o velamento do ente em sua totalidade é tolerado sob a forma de um limite que acidentalmente se anuncia, a DISSIMULAÇÃO como acontecimento fundamental caiu no esquecimento. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

O homem erra. O homem não cai na errância num momento dado. Ele somente se move dentro da errância porque in-siste ek-sistindo e já se encontra, desta maneira, sempre na errância. A errância em cujo seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelo contrário, a errância participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem historial está abandonado. A errância é o espaço de jogo deste vaivém no qual a ek-sistência insistente se movimenta constantemente, se esquece e se engana sempre novamente. A DISSIMULAÇÃO do ente em sua totalidade, ela mesma velada, se afirma no desvelamento do ente particular que, como esquecimento da DISSIMULAÇÃO, constitui a errância. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

O desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a DISSIMULAÇÃO do ente em sua totalidade. É nesta simultaneidade do desvelamento e da DISSIMULAÇÃO que se afirma a errância. A DISSIMULAÇÃO do que está velado e a errância pertencem à essência originária da verdade. A liberdade, compreendida a partir da ek-sistência insistente do ser-aí, somente é a essência da verdade (como conformidade da apresentação) pelo fato de a própria liberdade irromper da originária essência da verdade, do reino do mistério da errância. O deixar-ser do ente se realiza pelo nosso comportamento no âmbito do aberto. Entretanto, o deixar-ser do ente como tal e em sua totalidade acontece, autenticamente, apenas então, quando, de tempos em tempos, é assumido em sua essência originária. Então a decisão enérgica pelo mistério se põe em marcha para a errância que reconheceu enquanto tal. Neste momento a questão da essência da verdade é posta mais originariamente. Então se revela, afinal, o fundamento da imbricação da essência da verdade com a verdade da essência. A perspectiva sobre o mistério, que se descerra a partir da errância, põe o problema da questão que unicamente importa: que é o ente enquanto tal em sua totalidade? Uma tal interrogação pensa o problema essencialmente desconcertante e por isso não dominado ainda em sua ambivalência: a questão do ser do ente. O pensamento do qual emana originariamente tal interrogação se concebe, desde Platão  , como “filosofia”, e recebeu mais tarde o nome de “metafísica”. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

Entretanto, o que o bom senso, antecipadamente justificado em seu âmbito próprio, pensa da filosofia, não atinge a essência dela. Esta somente se deixa determinar a partir da relação com a verdade originária do ente enquanto tal e em sua totalidade. Mas pelo fato de a plena essência da filosofia incluir sua não-essência e imperar originariamente sob a forma da DISSIMULAÇÃO, a filosofia, enquanto põe a questão desta verdade, é ambivalente em si mesma. Seu pensamento é a tranquilidade da mansidão que não se nega ao velamento do ente em sua totalidade. Mas seu pensamento é também, ao mesmo tempo, a decisão enérgica do rigor, que não rompe o velamento, mas que impele sua essência intacta para dentro da abertura da compreensão, e desta maneira, para dentro de sua própria verdade. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

O ensaio aqui apresentado conduz a questão da verdade para além dos limites tradicionais da concepção comum e auxilia a reflexão a se perguntar se a questão da essência da verdade não deve ser, ao mesmo tempo e primeiramente, a questão da verdade da essência. Porém, sob o conceito de “essência” a filosofia pensa o ser. A redução da possibilidade interna da conformidade de uma enunciação à liberdade ek-sistente do deixar-ser, reconhecido como seu “fundamento” e, ao mesmo tempo, o aceno para situarmos o começo essencial deste fundamento na DISSIMULAÇÃO e errância, apontam para o fato de que a essência da verdade não é absolutamente a “generalidade” vazia de uma universalidade “abstrata”, mas, pelo contrário, o único dissimulado da única história do desvelamento do “sentido” daquilo que designamos ser e que, já há muito tempo, costumamos considerar como o ente em sua totalidade. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]

A questão decisiva (Ser e Tempo  , 1927) do sentido, quer dizer (Ser e Tempo, p. 151), do âmbito do projeto, quer dizer, da abertura, ou ainda, da verdade do ser e não apenas do ente, fica propositalmente não-desenvolvida. Aparentemente o pensamento se movimenta no caminho da metafísica e, contudo, realiza, em seus passos decisivos — que conduzem da verdade como conformidade para a liberdade ek-sistente e desta para a verdade como DISSIMULAÇÃO e errância — , uma revolução na interrogação, revolução que já pertence à superação da metafísica. O pensamento ensaiado na conferência atinge sua plenitude na experiência decisiva de que somente a partir do ser-aí, no qual o homem pode penetrar, se prepara, para o homem historial, uma proximidade com a verdade do ser. Qualquer espécie da antropologia e toda subjetividade do homem enquanto sujeito não é apenas, como já acontece em Ser e Tempo, abandonada e procurada a verdade do ser como fundamento de uma nova posição historial, mas o curso da exposição se prepara para pensar a partir deste novo fundamento (a partir do ser-aí). As fases da interrogação constituem em si o caminho de um pensamento que, em vez de oferecer representações e conceitos, se experimenta e confirma como revolução da relação com o ser. [tr. Ernildo Stein; Heidegger: Sobre a Essência da Verdade]